Cara Dra. Luísa Quintela,


Permita-me que comece este postal a lembrar um grande amigo e um grande viajante – o meu amigo Zé Martins – que partiu para o Oriente Eterno muito cedo, antes de chegar aos sessenta anos, idade que eu já passei há muito.

O Zé Martins, de seu nome completo José Alberto de Castro Fernandes Martins, foi um jornalista de reconhecidíssimos méritos e tinha um projecto literário do qual, um dia, e por sermos amigos, revelou-me o título: “Praça Vermelha, Meu Amor”.

Não sei se o Zé Martins chegou sequer a começar essa narrativa. Nem sei que forma literária quereria dar-lhe. Admito que tenha visitado a Praça Vermelha de Moscovo, sendo como foi um viajante compulsivo, mas também admito que quisesse reportar uma viagem apenas imaginada.

Ele que escrevia como poucos e escreveu em tantos jornais, como os que fundou na Figueira da Foz – Mar Alto e Barca Nova – e outros, nacionais, de que destaco o República, o Diário de Lisboa, o Diário Popular e o Jornal de Notícias, deixou-nos cedo demais e sem ter concluído aquele projecto literário.

Todos, sem excepção, podemos ter de ir de viagem num momento inoportuno para os projectos sonhados, incluindo aqueles que agendamos para tentar adiar a nossa inevitável partida. Quando penso no Zé Martins, de quem tenho imensa saudade, perco-me nestas reflexões.

É um tema – justifico-me – oportuno para ser abordado num Domingo de Páscoa como o que vivi ontem, em Trieste, cidade onde mora o vento Bora, mesmo considerando a minha tristeza por já não acreditar na ressurreição, seja ela qual for. Oportuno também para lembrar-me de que tenho projectos no prelo, incluindo aquele nosso de uma escrita a quatro mãos para o semanário AltoMinho, onde ambos colaboramos.

Voltando à “Praça Vermelha, Meu Amor”, a narrativa inacabada do Zé Martins (narrativa  que ficou, pelo menos, com o título), vou citar Mario Desiati, escritor e poeta italiano que li, por estes dias, num suplemento do jornal em papel que compro quando estou em Itália: la Repubblica.

Mario Desiati, o qual viveu em Berlim sem dominar completamente a língua alemã, escreveu na revista dLUI, de Maio de 2022 (saída com a edição do la Repubblica de 16 de Abril), que podemos viajar sem sair do quarto e que, para este exercício, a língua alemã até tem uma palavra própria: “Kópfkino” – um substantivo neutro que poderá ser traduzido para o Português por “cinema imaginário”.

A primeira citação de “Viagens na Minha Terra”, de Almeida Garrett, remete-nos para o escritor francês Xavier de Maistre e para o êxito literário deste, “Voyage autour de ma chambre”, publicado nos finais de século XVIII: “Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de Inverno, em Turim, que é quase tão frio como São Petersburgo – entende-se.”

As voltas que um postal dá. Até aqui, já referi Moscovo, Figueira da Foz, Trieste, Turim, São Petersburgo, Berlim. E destas cidades só visitei fisicamente a Figueira e Trieste, de onde, aliás, lhe envio este postal, que é uma recente aguarela minha da cidade. Claro que aquelas viagens do Kópfkino também funcionam. Por isso, tenho esperança de poder ir, por essa via, a Vladivostok, mesmo durante esta guerra que nos aflige.

Entretanto, termino a prometer, para breve, o arranque daquele nosso projecto a quatro mãos para o AltoMinho. Será em moldes diferentes do que já fiz, nos idos de 1986, durante uma Bienal Universitária de Coimbra (BUC), com o saudoso Júlio Pinto, quando eu trabalhava no Jornal de Notícias e o Júlio Pinto no Diário Popular.

E será também diferente do que fizeram Pablo Neruda e Federico Garcia Lorca na célebre conferência “à la Limon”, proferida no PEN Clube de Nova Iorque. Mas não deixará de ser um bom desafio.

Até breve,

Júlio Roldão

18/04/2022

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Júlio Roldão

É jornalista desde 1977. Nasceu no Porto, em 1953, e estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e pelo Círculo de Artes Plásticas (CAPC), tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.

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