11 de Setembro de 1973: o dia que ensanguentou as “calles”

 11 de Setembro de 1973: o dia que ensanguentou as “calles”

Para o jornalista chileno Daniel Hopenhayn, autor do livro “Así se torturó en Chile”, a direita chilena esconde o Pinochet. (outroladodanoticia.com.br)

“Obrigaram-me a tomar drogas, sofri estupro e assédio sexual com cães, introduziram-me ratos vivos pela vagina. Obrigaram-me a ter relações com o meu pai e o meu irmão, que estavam detidos”. Este é o relato de uma das 3399 mulheres vítimas de tortura e de violação durante a longa e sangrenta ditadura de Augusto Pinochet1.

Está plasmado no extenso relatório sobre as vítimas e foi tornado público no livro “Assim se torturou no Chile (1973-1990)”, do jornalista Daniel Hopenhayn. A obra de Hopenhayn, publicada em 2019, resume as centenas de páginas do relatório da Comissão Nacional para a Prisão Política e Tortura, que o repórter chileno leu, de fio a pavio.

Pinochet morreu em 2006 e nunca foi julgado pelos crimes que cometeu. (Direitos reservados)

O golpe fascista aconteceu ao raiar do dia 11 de Setembro de 1973. Faz hoje 50 anos. Pinochet prendeu, torturou e matou milhares de pessoas. O músico Victor Jara2 foi um dos que morreu às mãos dos torcionários. Outros, acossados, tiveram de partir para o exílio. Pablo Neruda3 (Prémio Nobel da Literatura, em 1971), o escritor Luís Sepúlveda4 (que integrou a guarda pessoal do presidente Salvador Allende)5 e o encenador Roberto Merino (nascido em 1952), colaborador no jornal sinalAberto e meu querido amigo, integram a extensa lista daqueles que foram obrigados a abandonar o país.

Vincent Bevins é um jornalista norte-americano que cobriu o Sudeste Asiático para o Washington Post, noticiando a partir de toda a região e prestando especial atenção às consequências do massacre de 1965 na Indonésia.  (Créditos fotográficos: Martinus Rimo – novoslivros.pt)

Foi a CIA, a inteligência norte-americana, que pariu o facínora que, há 50 anos, cobriu de sangue as “calles” daquele país da América do Sul e derrubou o governo de Salvador Allende, eleito pelo voto popular. O golpe arruinou o país e fez dele campo de experiência económica para os ultraliberais dos “Chicago Boys”6. A cumplicidade assassina da CIA é escancarada por Vincent Bevins, jornalista norte-americano, no seu livro “O Método Jacarta” (editado pela Temas e Debates, em 2022).

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“Vem aí o Jacarta!”

A obra de Bevins resulta da análise que fez “a diversos documentos desclassificados pelo governo dos EUA”. O jornalista também entrevistou testemunhas e sobreviventes. A análise aos documentos desclassificados e os testemunhos permitiram-lhe concluir que a política externa dos Estados Unidos da América (EUA) tinha um “programa de assassínio maciço”, que começou na Indonésia, em 1962, e se replicou no Brasil e no Chile. Sobre o golpe que derrubou o governo de Allende, escreve Bevins: “Em 1973, Allende caiu. Morreu, e o mesmo aconteceu ao sonho chileno do socialismo democrático. No lugar deste, emergiu um violento regime anticomunista, que cooperava com o Brasil e os Estados Unidos para formar uma rede de extermínio internacional… Nos meses antes de 11 de Setembro, o Chile tinha muito em comum com o Brasil em 1964. Grupos do sector privado financiavam grupos da oposição, grupos pró-‘tradição’ e pró-‘família’ organizavam manifestações, e os meios de comunicação de direita espalhavam receios de supostas conspirações de esquerda. A CIA relatava, no final de 1972, que grupos de oposição no Chile recebiam ‘auxílio económico e armas como metralhadoras e granadas de mão’ da ditadura brasileira.”

O fotojornalista brasileiro Evandro Teixeira registou o enterro de Pablo Neruda, que ocorreu 12 dias depois do golpe militar de Augusto Pinochet. (Direitos reservados)

A carnificina de “11 de Setembro” já tinha sido ensaiada antes. Em Junho. Mas falhou. Carlos Prats7, chefe das Forças Armadas, recusou alinhar com os militares às ordens da Frente Nacionalista Patria y Libertad (FNPL) – esta organização paramilitar também era conhecida, simplesmente, por “Pátria y Libertad” (PyL). Seguiram-se dias de intensa contestação por parte da direita mais radical do Chile, da imprensa ao seu serviço, nas ruas e no Congresso onde Domingo Godoy Matte, do Partido Nacional, atirou: “Estarán aqui hasta que se produza el Yacarta.” (Estarão aqui até que aconteça o Jacarta.)

Prats foi substituído por Pinochet na chefia das Forças Armadas e o golpe militar aconteceu. Allende foi sucessivamente avisado, mas só se apercebeu de que “o método Jacarta” estava em marcha quando o Palácio de La Moneda começou a ser bombardeado. Pela rádio, disse, então, aos seus apoiantes: “Pagarei com a vida a minha lealdade ao povo. E digo-vos que tenho a certeza de que a semente que plantámos na consciência de milhares e milhares de chilenos não poderá ser cortada para sempre […] Viva Chile! Viva el pueblo! Viva los trabajadores!” (Pode aceder, aqui, ao texto completo do último discurso de Salvador Allende, em 11 de Setembro de 1973.)

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Notas:

O juiz Baltasar Garzón, em 2012. (brasil.elpais.com)

1 – O ditador morreu em Dezembro de 2006, sem ser condenado. Manteve-se como chefe supremo das Forças Armadas e foi senador vitalício no parlamento chileno. Pinochet foi detido pela Scotland Yard, em Londres, onde se encontrava para tratamento médico, em 16 de Outubro de 1998. A prisão do ex-ditador obedecia a um mandado de busca e apreensão internacional, que visava a sua extradição para Espanha, país onde seria julgado por crimes contra os Direitos Humanos. Contudo, o pedido feito pelo juiz espanhol Baltasar Garzón não surtiu efeito. Ficou detido em prisão domiciliária, na capital britânica e acabou por ser libertado. Alegadamente, por razões médicas. A então primeira-ministra Margaret Thatcher, grata pelo apoio do ditador na Guerra das Malvinas, que o considerou “um amigo que ajudou a combater o comunismo”, recusou a sua extradição. Ironia das ironias:  Augusto Pinochet morreu a 10 de Dezembro de 2006, exactamente, no Dia Internacional dos Direitos Humanos, estabelecido pela Organização das Nações Unidas.

2 – Poeta, cantor, director artístico, compositor, militante do Partido Comunista, o professor Victor Jara (1932-1973) soube do golpe na universidade. Foi imediatamente detido, com outros alunos e professores, e encarcerado no Estádio do Chile. Foi morto a tiro no dia 16 de Setembro de 1973. Porém, foi necessário esperar até Agosto de 2023 para que o Supremo Tribunal do Chile condenasse sete militares na reserva pelo seu sequestro e homicídio. Cada um dos elementos do bando e o director do Serviço Prisional foram condenados a 25 anos de prisão.

As canções do músico Victor Jara, torturado e morto pela ditadura do general Pinochet, ainda embalam os manifestantes que lutam por reformas sociais no Chile. (oglobo.globo.com)

3 – Pablo Neruda (1904-1973) foi pseudónimo de Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto e, mais tarde, nome legal do poeta que ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 1971. Neruda foi diplomata, senador pelo Partido Comunista do Chile e conselheiro do Presidente Allende. Quando regressou a Santiago, depois de receber o “Nobel”, Allende convidou-o a ler o seu discurso no Estádio Nacional, o que fez perante 70 mil pessoas. O primeiro editor de Neruda foi Manuel Carlos Jorge Nascimento, português da ilha do Corvo (1885-1966), que se notabilizou como “O Livreiro de Santiago”. “Veinte Poemas de Amor y Una Canción Desesperada” (de 1924) foi editado por Nascimento, que também publicou “Desolacion” de Gabriela Mistral – a, igualmente, poeta chilena que venceu o “Nobel” em 1945. Já neste ano (2023), peritos internacionais afirmaram que o poeta morreu envenenado, pois a bactéria encontrada nos restos mortais do escritor “estava no seu corpo no momento da morte”, ocorrida 12 dias após o golpe militar de 1973.

4 – Luis Sepúlveda (1949-2020) morreu infectado pela covid-19, a 16 de Abril de 2020, após ter participado na edição desse ano do “Corrente d’Escritas”, o celebrado festival literário (ou encontro anual de escritores de expressão ibérica) que, decorre durante o mês de Fevereiro, na Póvoa de Varzim.

Luis Sepúlveda na editora “Arca das Letras”, em 2004. (Direitos reservados)

Sepúlveda integrou a guarda pessoal do Presidente Allende. Após o golpe de Pinochet viveu entre Hamburgo e Paris, fixando-se, mais tarde, em Gijón, nas Astúrias (Espanha). Em Fevereiro de 2004, recebi-o na “Arca das Letras”, num debate moderado pelo jornalista e escritor César Príncipe. O encontro com Sepúlveda contou com centenas de participantes.

Salvador Allende (upload.wikimedia.org)

5 – Salvador Allende (1908-1973) foi presidente da República do Chile, entre 1970 e o dia 11 de Setembro de 1973, quando foi deposto por Augusto Pinochet, que, então, era chefe das Forças Armadas. Allende, médico e político fundou o Partido Socialista do Chile. Foi eleito presidente pelo voto popular. Foi, também, o primeiro marxista que liderou um país da América. Suicidou-se no Palácio de La Moneda, durante o golpe militar de Pinochet.

6 – Como nos informa a Wikipédia, “Chicago Boys foi um grupo de, aproximadamente, 25 jovens economistas chilenos que formularam a política económica da ditadura do general Augusto Pinochet”. Nesse contexto, foram “os pioneiros do pensamento Neoliberal, antecipando no Chile, em quase uma década, medidas que só mais tarde seriam adoptadas por Margaret Thatcher, no Reino Unido”.

O general Carlos Prats foi assassinado pela DINA – polícia política
chilena – na madrugada de 30 de Setembro de 1974, nos marcos da
“Operação Condor”, com a explosão de uma bomba colocada no seu
automóvel, em Buenos Aires, para onde havia fugido após o golpe
de Estado de 11 de Setembro do ano anterior.
(historica.fandom.com)

7 – Carlos Prats González  nasceu no ano de 1915, em Talcahuano, cidade portuária que integra a província de Concepción, no centro geográfico do Chile, e morreu em Buenos Aires, a 30 de Setembro de 1974 – a cidade argentina onde se exilou depois de ter recusado participar no derrube de Salvador Allende. Foi nomeado comandante-chefe das Forças Armadas pelo Presidente Eduardo Frei Montalva (1964-1970), logo após o assassinato de seu antecessor e amigo general René Schneider, tendo sido reconduzido no cargo por Salvador Allende, de cujo governo foi também ministro do Interior e ministro da Defesa, além de ter sido vice-presidente da República. Constitucionalista e legalista, recusou-se a participar em qualquer golpe de estado, razão pela qual se viu obrigado a renunciar, abrindo assim o caminho para o sangrento golpe militar de Augusto Pinochet.

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Fontes consultadas:

“Assim se Torturou no Chile (1973-1990)”, livro do jornalista Daniel Hopenhayn, que reúne os principais relatos das vítimas da ditadura de Augusto Pinochet que depuseram na Comissão Nacional sobre a Prisão Política e Tortura entre 2003 e 2004.

“O Método Jacarta”, livro de história política escrito pelo autor e jornalista norte-americano Vincent Bevins.

E a enciclopédia livre Wikipédia.

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11/09/2023

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Soares Novais

Porto (1954). Autor, editor, jornalista. Tem prosa espalhada por jornais, livros e revistas. Assinou e deu voz a crónicas de rádio. Foi dirigente do Sindicato dos Jornalistas (SJ) e da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP). Publicou o romance “Português Suave” e o livro de crónicas “O Terceiro Anel Já Não Chora Por Chalana”. É um dos autores portugueses com obra publicada na colecção “Livro na Rua”, que é editada pela Editora Thesaurus, de Brasília. Tem textos publicados no "Resistir.info" e em diversos sítios electrónicos da América Latina e do País Basco. É autor da coluna semanal “Sinais de Fogo” no blogue “A Viagem dos Argonautas”. Assina a crónica “Farpas e Cafunés”, na revista digital brasileira “Nós Fora dos Eixos”.

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