Querida Beatriz Villar,

É muito provável, querida Beatriz Villar, que ontem tenha entrado para a História da Música em Portugal como sendo a primeira mulher a cantar num canal de televisão generalista um fado de Coimbra.

O fado de Coimbra é muito diferente do fado de Lisboa. Há uns anos, na Lousã, numa festa do jornal Trevim, ouvi o Dr. Manuel Louzã Henriques explicar essa diferença. Ainda estudante de Coimbra mas já jornalista, registei essa lição pensando reportá-la no jornal onde trabalhava, o que nunca aconteceu. 

O Dr. Louzã Henriques falou, lembro-me, da matriz intelectual do fado de Coimbra, desenhado para ser cantado na rua e para poder ser ouvido ao longe, bem diferente do fado de Lisboa, mais vocacionado para espaços intimistas, em certas épocas quase escondidos, já que a ditadura não suportava o chamado fado operário.

Mais tarde, em meados dos anos 80, quando deixei Coimbra e mudei-me para o Porto, colaborei numa iniciativa artística da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, “Três noites de Coimbra” que encheram o portuense Teatro Carlos Alberto, uma das quais dedicada ao fado de Coimbra. 

Quer na festa do jornal Trevim quer na noite de Coimbra no Porto, ainda ninguém sonhava com a possibilidade de o fado de Coimbra poder ser cantado por mulheres. Este avanço só viria a acontecer um pouco mais tarde, sendo a actuação de ontem, da Beatriz Villar, no “Got Talent Portugal”, um marco assinalável.

A Beatriz, como viu e ouviu quem ontem, ao serão, seguiu a RTP1, cantou bem e foi bem acompanhada. Mas tão importante como cantar bem é essa justíssima ousadia de romper com falsas regras atribuídas à canção de Coimbra. O fado de Coimbra era cantado só por homens, quando a universidade era quase exclusivamente frequentada por homens.

O fado de Coimbra pode ser cantado por mulheres. Pode e deve ser também cantado por mulheres, pois ganhará muito com isso. E eu hoje, querida Beatriz Villar, levanto-me para bater palmas à sua actuação. E assim quebro outra falsa regra: a de que o fado de Coimbra só deve ser aplaudido com pigarro.

Sinceramente,

Júlio Roldão

14/02/2022

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Júlio Roldão

É jornalista desde 1977. Nasceu no Porto, em 1953, e estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e pelo Círculo de Artes Plásticas (CAPC), tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.

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