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O homem que joga tangram
As sete figuras entraram-lhe em casa não sabe como, não sabe quando. Lembra-se, criança, de descobrir o jogo na gaveta do pichichi – como o Galrão, o vendedor, chamara ao móvel –, dentro de uma caixinha quadrada.
Pouco liga ao achado. Rumor de tédio, hora de inquietação, uma noite vai espreitar. E acha interessante o despojamento dos recursos, em contraste com a claridade de tanta silhueta engendrada com aquilo.
Peça acima, peça abaixo, peça a peça, tenta resolver um dos casos. E de tal modo se complica o evidente que logo desiste, sem fixar o nome da humilhação.
Com frequência, às escondidas de si próprio, reincide nas tentativas, nos abandonos, nos desânimos. O insucesso de tanto manuseio um dia revela-lhe a solução de um dos negros desafios. Tal e qual. Golpe de sorte, na certa. Um a um, de novo visita os problemas. Alguns deixa a meio, outros – insistência de horas, teimosia de semanas – os vai desvendando.
Retém, enfim, a nomeação da porfia: tangram.
No devaneio do jogo, faz-se homem. Concretiza estudos, procria. Escreve livros, planta árvores. E sempre o rumor de tédio, a inquietação, a noite, ele a soltar as peças do velho jogo, a inventar cavalos com crinas de cristal, extravagantes máquinas voadoras, passarinhos. E a fugir para um mundo com nova geometria. Construído de triângulos, um quadrado, um paralelogramo. Pequeninos.
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In “o homem que”
08/12/2022