2021, o ano literário africano
O ano que está prestes a findar será registado, sem qualquer dúvida, como o ano literário de África. A razão é chocante, no sentido exaltante do adjetivo: os autores africanos conquistaram todos – todos! – os prémios literários mais importantes do ano. Eis a lista completa:
The Nobel Prize – Abdulrazak Gurnah (Tanzânia);
The German Book Trade Peace Prize – Tsitsi Dangarembga (Zimbabwe);
The Neustadt International Prize for Literature – Boubacar Boris Diop (Senegal);
The Camões Prize – Paulina Chiziane (Moçambique);
The Prix Goncourt – Mohamed Sarre (Senegal);
The Booker Prize – Damon Galgut (África do Sul).
A opção pela língua de Shakespeare para designar os prémios acima mencionados é apenas uma provocação, que cada um interpretará como quiser. Posto o que, tentemos olhar de perto os referidos prémios e os seus ganhadores. Uma análise “proto-semiótica” superficial das caras dos premiados confirmará algo que muitos, por vezes, esquecem: África tem várias caras. A principal é negra, mas de várias origens (bantus, khoisan, nilóticos, etc.); tem caras brancas, quer no norte quer no sul; tem descendentes da Ásia, do chamado Médio Oriente até à Índia; tem mestiços, frutos de diversas misturas.
Segunda observação: de todos os autores africanos que, este ano, levaram os principais prémios literários do mundo, apenas a moçambicana Paulina Chiziane (negra) e o sul-africano Damon Galgut (branco) vivem no continente; todos os outros vivem fora de África.
Estas duas primeiras observações permitem, creio, desmistificar certos estereótipos em relação à África e aos africanos alimentados, principalmente, fora do continente. Alguns deles são reproduzidos por bons motivos, pois os milhões de negros que hoje são discriminados pelas classes dominantes dos países para onde os seus antepassados foram levados como escravos precisam de motivos reais, mas também simbólicos, para alimentar a sua luta ingente. Sabemos todos que os mitos também desempenham esse papel. Entretanto, é preciso cuidado para não inventar mitos que podem menorizar e enfraquecer as lutas que é imperioso travar para acabar com todas as injustiças.
Outra leitura a fazer tem a ver, especificamente, com o facto de a maioria dos escritores africanos que, em 2021, ganhou os prémios literários em causa viver fora do continente. Esse facto confirma que morar no exterior, em especial nos grandes centros, abre outras oportunidades aos escritores africanos, por razões que vão das debilidades dos sistemas de educação e ensino ou da exiguidade do mercado literário nos seus países de origem até às variadas possibilidades de acesso (não só ao ensino ou eventualmente ao mercado, mas às condições de vida em geral, incluindo cultural) que os mesmos passam a ter, quando se fixam no estrangeiro. Goste-se ou não, a literatura continua a ser uma atividade elitista.
De todo o modo, o comentário que acabo de fazer não é a única razão para a espécie de “boom” que parece estar a acontecer com as literaturas africanas. É justo acrescentar que esse crescente sucesso se deve também às lutas sociais travadas em todo o mundo pelos diferentes grupos historicamente segregados e discriminados, entre eles as diásporas negras espalhadas em diversas partes do mundo, em especial na Europa e nos Estados Unidos.
Por fim, o sucesso literário dos autores africanos ocorrido no ano que está a terminar terá de obrigar-nos a repensar algumas supostas verdades e “bandeiras” que costumamos agitar, muitas vezes por inércia. Será acertado, por exemplo, continuar a dizer que os escritores negros são marginalizados pelo “sistema” (não esquecer os apostos: branco, masculino e xenófobo) em todo o mundo? Não creio, francamente, que essa generalização continue a fazer sentido neste caso. É preciso, sempre, contextualizar a análise.
Para resumir, direi que a situação dos escritores negros naturais de África, mesmo residentes no estrangeiro, ou mesmo a dos escritores afro-americanos (estadunidenses), não é exatamente igual à dos escritores negros sul-americanos, principalmente. Estes últimos, como é o caso dos autores negros brasileiros, ainda continuam a ser fortemente marginalizados, muito mais do que aqueles. O tema merece um artigo à parte, que talvez venha a escrever futuramente.
Seja como for, há uma pergunta que, sendo este artigo publicado num jornal português, tenho de fazer: quantos escritores africanos são regularmente publicados em Portugal? A verdade, empiricamente verificável, é que editoras portuguesas publicaram até agora um número quase nulo desses autores. A imprensa sequer os conhece, salvo um ou dois. A demonstração de ignorância em relação a Abdulrazak Gurnah, prémio Nobel deste ano, por exemplo, chegou a ser patética.
Previsivelmente, a situação começará a mudar mais ou menos em breve. Puxando a brasa ao meu cacusso, para parodiar a portuguesíssima expressão que, ao invés de “cacusso”, menciona um peixinho chamado “sardinha”, espero que as editoras locais comecem por olhar para a produção literária dos países africanos, a começar pelos de língua portuguesa, não só por não ser necessário tradução, mas também porque a realidade desses países tem muitos pontos de contacto, por razões óbvias, com a história e a realidade de Portugal.
Não faz sentido, de facto, que as grandes editoras portuguesas aguardem o aval de Paris, de Londres ou de Nova Iorque para começarem a prestar mais atenção aos autores africanos. Mesmo para conhecerem a produção dos escritores africanos que escrevem em outras línguas que não o português, podem consultar as dezenas de excelentes revistas, jornais, saites (querido editor, deixe passar este neologismo) e blogues literários que existem atualmente em África. Terão boas surpresas.
O mercado literário (isto é, as editoras, a imprensa cultural, os críticos, as livrarias, os agentes, os produtores culturais e os organizadores de festivais) que preste atenção à “profecia” do angolano Agualusa, nas suas redes sociais, a propósito do facto de, em 2021, os africanos terem ficado com todos os prémios literários importantes: “A partir de agora vai ser como a maratona – ficamos com tudo!”
27/11/2021