26% dos nossos magistrados acreditam em suborno de juízes
Segundo o inquérito da Rede Europeia de Conselhos de Justiça (RECJ) sobre a perceção de corrupção na Justiça, que contou com as respostas de 15.821 juízes de 27 países, 26% dos 494 magistrados judiciais portugueses inquiridos disse acreditar que, nos últimos três anos, houve juízes a aceitar, a título individual, subornos ou a envolverem-se em outras formas de corrupção. Porém, a ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, relativizou, a 23 de agosto, em Coimbra, os dados desse estudo europeu, alegando que dizem respeito a 2021, “um ano excecional”.
“Foi uma situação absolutamente excecional”, disse a ministra à agência Lusa no final de uma visita à sede e delegação regional do Centro do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), adiantando que o relatório se reporta a 2021, ano muito particular em que houve ocorrências excecionais que envolveram magistrados. E sublinhou que tais ocorrências não poderiam deixar de marcar a perceção que, do ponto de vista do senso comum, as pessoas têm, pois “os juízes também são pessoas como nós, que vivem inseridos na sociedade”.
Conforme o referido inquérito da RECJ, insistimos na observação de que 26% dos 494 magistrados judiciais portugueses acredita que, nos últimos três anos, houve juízes a aceitar, a título individual, subornos ou a envolverem-se em outras formas de corrupção. Neste aspeto, Portugal ficou apenas atrás da Itália (36%) e da Croácia (30%), igualando a percentagem da Lituânia (26%).
A Associação Sindical de Juízes Portugueses (ASJP), através do seu presidente, Manuel Soares, tinha expressado preocupação perante os dados deste estudo sobre a independência dos magistrados e exigido uma resposta do Conselho Superior da Magistratura (CSM) a esta perceção de corrupção na Justiça, o que o CSM recusou depois uma “leitura apressada” dos resultados do inquérito, assegurando que iria estar atento e agir perante eventuais atos corruptivos.
***
Na verdade, o presidente da ASJP considera “preocupantes” os dados de tal estudo sobre a independência dos magistrados e pretende resposta do CSM à perceção de corrupção na justiça, pois, como sustentou, em declarações à Lusa, “não podemos ter um conjunto significativo de juízes a considerar que existem problemas de corrupção judicial sem fazermos aquilo que é suposto: tomarmos medidas – seja no plano preventivo, seja no plano repressivo – para contrariar esta perceção, se ela tiver contacto com a realidade”. Por isso, considera importante “uma intervenção imediata dos conselhos superiores”.
A ASJP está preocupada não apenas com o resultado deste estudo, mas também com o que parece um silêncio ou inação dos conselhos. Por isso, o passo seguinte tem de ser a perceção exata do que os conselhos pretendem fazer para “verificar se existe um problema, qual a sua dimensão e como deve ser tratado”.
Manuel Soares, sublinhando que este alerta é, simultaneamente, “interno e externo”, lembra que, na sequência da Operação Lex, que levou à expulsão do juiz Rui Rangel e à aposentação compulsiva de Fátima Galante, a ASJP apresentara ao CSM um conjunto de medidas de reforço dos mecanismos de prevenção e deteção de casos de corrupção judicial, mas aquele órgão de gestão e disciplina dos juízes não revelou abertura. E, em relação a este inquérito, defende que não se pode olhar para ele “de braços cruzados e assobiar para o lado”, pelo que não é resposta adequada o CSM fechar as portas à discussão, achando que os problemas não têm importância, que têm importância mas se resolvem sozinhos ou que as pessoas se esquecem dos problemas e eles desaparecem.
O presidente da ASJP lamenta que o regulamento das obrigações declarativas dos juízes não tenha culminado na entrega dessas declarações, assumindo “embaraço, estranheza e discordância” por o CSM não ter concluído tal processo quase dois anos após a respetiva lei e por o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF) não ter concretizado o respetivo regulamento.
Está a ser feito, também desta vez, o que não deve ser feito, isto é, os conselhos serem omissos, lentos, conservadores e não cumprirem as suas obrigações, quando devem mostrar à sociedade que o assunto lhes diz respeito, que estão preocupados e que tomam medidas. E o presidente da ASJP é categórico ao indicar: “Não quero amanhã mais um ‘caso Rangel’, porque depois já não podemos dizer que fomos apanhados desprevenidos. Se isso acontecer, a culpa é nossa.”
Portanto, conclui que “um inquérito com estes resultados torna impossível que os órgãos de gestão das magistraturas não atuem”. Ao invés, pode-se pensar que o problema não está na corrupção, mas nos que têm a obrigação de tratar disso e não o fazem. E acha exigível que atuem, pois “todos os cidadãos compreendem que é preciso tomar mais medidas”.
***
Como o inquérito da RECJ se reporta ao ano de 2021 – e a ministra da Justiça sublinhou-o –, vem a talho de foice recordar uma sondagem da Aximage para o DN, o JN e a TSF, divulgada a 30 de abril, cujos resultados revelam um clima de descrença generalizada na política stricto sensu e na justiça, com desfavor para esta, pois dois terços dos cidadãos não confiam nos tribunais nem nos juízes. Nem os políticos são devidamente fiscalizados (opinião de 83% dos inquiridos), nem a justiça tem a capacidade de investigar os casos de corrupção na política (opinião de 62%). Assim, os resultados da sondagem revelam que os “tribunais e juízes” são a instituição em que os portugueses menos confiam – avaliação em que o Ministério Público (MP) e a Procuradoria-Geral da República (PGR) também são bastante maltratados.
A 12 de abril, Rui Rio recorreu ao tremendismo retórico. Poucos dias após o despacho do juiz Ivo Rosa relativo à Operação Marquês – que fez cair, pelas prescrições e pela falta de provas, a maior parte das acusações a José Sócrates e a Ricardo Salgado –, o então líder do Partido Social Democrata (PSD) denunciava uma Justiça que “o povo não entende” e que é “o pior exemplo da doença do regime”.
A julgar pelos resultados do barómetro de abril da Aximage, o então líder social-democrata estava em sintonia com a grande maioria dos portugueses. E, na sessão comemorativa do 25 de Abril da Assembleia da República, o combate à corrupção, a criminalização do enriquecimento ilícito, a impunidade dos poderosos e a descrença na justiça, dominaram os discursos, da direita à esquerda, com exceção do Partido Socialista (PS).
Porém, apesar de o PS não se referir ao tema na sessão do 25 de Abril, o Conselho de Ministros do dia 29 de abril de 2021 aprovou a Estratégia Nacional contra a Corrupção.
O trabalho de campo da sondagem terminou a 25 de abril, pelo que não reflete o destaque que os partidos da oposição deram ao tema nas comemorações da revolução. Os portugueses já tinham formado uma opinião negativa e, mesmo que a sondagem não tenha perguntas concretas sobre o caso, parece clara a contaminação da avaliação pela Operação Marquês, seja da justiça em si, seja da eficácia do seu combate à corrupção.
Quanto à fiscalização junto dos políticos e dos detentores de altos cargos públicos, mais de quatro quintos dos portugueses acham que não está a fazer-se, destacando-se os inquiridos com idades entre 50 anos e 64 anos e os que têm rendimentos mais elevados (nove em cada 10) e os eleitores bloquistas e liberais (fazem quase o pleno). E, quanto à capacidade de a justiça investigar a corrupção nos políticos e nos altos cargos públicos, quase dois terços dizem que ela não existe. Os mais pessimistas são os homens (mais 9% do que as mulheres), a faixa etária dos 35 anos aos 49 anos e os que estão no topo das classes sociais (sete em 10) e os eleitores da nova direita liberal e radical (oito em 10).
A sondagem também avaliou o grau de confiança dos cidadãos em instituições que têm algum papel na legislação, na fiscalização, na denúncia, na investigação ou no julgamento de casos de corrupção. Mas o resultado é penoso para tribunais e juízes, em quem os portugueses menos confiam: 62% faz uma avaliação negativa (destacando-se quatro quintos dos inquiridos com 65 anos ou mais), contra apenas 15% que admite uma confiança grande ou muito grande.
A confiança no MP é pequena ou muito pequena para 42% da população (31% faz uma avaliação positiva), enquanto a PGR recebe nota negativa de 35% dos inquiridos (27% assinala uma avaliação positiva). Nestes dois últimos casos, a análise por segmentos indica que há exceções: entre os mais novos (de 18 anos a 34 anos) e os mais pobres, são em maior número os que confiam no MP e na PGR. Quando o ângulo incide sobre as escolhas partidárias, a PGR merece o benefício da dúvida nos eleitores do PS e do PSD. Mais à Esquerda (no Bloco de Esquerda e na CDU – Coligação Democrática Unitária), a confiança é menor. E onde a desconfiança é mais forte é à Direita (apoiantes dos partidos Chega e Iniciativa Liberal), tanto no MP como nos juízes.
Têm vantagem na avaliação: o Presidente da República, com 65% a julgar a sua atuação muito boa ou boa – o que se deverá à sua posição cimeira e à sua linguagem clara –, 21% a julgá-la média e 12% a considerá-la negativa; e as forças policiais, com 73% a observar a sua atuação positiva, mercê da sua intervenção e do seu trabalho. Porém, salientam-se em avaliação negativa, embora não seja essa a opinião maioritária: os partidos em geral, com 45%; os órgãos de comunicação social, com 43%; a Assembleia da República, com 39%; e o Governo, com 30%.
***
Não se pode dizer que o problema seja meramente pontual ou exclusivamente de perceção. Bem queríamos que não fosse estrutural. Porém, cabe aos operadores da justiça mostrar, pelos atos e pela arte de bem comunicar, que a justiça funciona com celeridade, com eficácia e com equidade. Com efeito, como se vê pela sondagem, a nossa má perceção da justiça não é uma invenção europeia.
29/08/2022