50 anos do Golpe de Estado no Chile (II): morte de Victor Jara e de Jorge Peña Hen
Homem do teatro, da música e da poesia, Victor Jara foi torturado, assassinado e enterrado clandestinamente. O seu corpo mutilado foi descoberto no dia 16 de Setembro de 1973.
Como todos os chilenos da minha geração, tive a experiência de o conhecer pessoalmente, assisti aos seus concertos e vi os espectáculos encenados por ele. Já me referi, neste espaço, à sua formação no teatro e na dança.
Passados 50 anos, o Supremo Tribunal do Chile condenou, no recente dia 28 de Agosto, militares na reserva, a penas até 25 anos de prisão, pelo rapto e assassinato do icónico cantor e compositor Víctor Jara, dias depois do golpe de Estado de Augusto Pinochet.
Será feita, finalmente, justiça sobre este crime? Quando faltam, apenas, quatro dias para o aniversário do sangrento golpe militar que derrubou Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, o mais alto tribunal chileno proferiu a sentença final pelo crime de Jara, uma das vozes mais reconhecidas da música popular na América Latina.
A este respeito, a agência de notícias global AFP divulga: “Sete ex-oficiais devem cumprir entre oito e 25 anos de prisão, conforme determinou o tribunal que decidiu aumentar as penas inicialmente fixadas, após análise do recurso de revisão apresentado pelos arguidos.”
E a agência AFP prossegue: “No mesmo caso, os juízes também os condenaram pelo assassinato e sequestro do ex-diretor penitenciário Littré Quiroga, que foi detido com Jara no então chamado Estádio Nacional, que hoje leva o nome de Víctor Jara e que chegou a abrigar cinco mil pessoas detidas.”
Entre os muitos assassinados, destaca-se também Jorge Peña Hen (1928-1973), músico, professor e compositor. No ano de 1964, criou a primeira orquestra sinfónica infantil do Chile e da América Latina, bem como os primeiros grupos instrumentais infantis, até fundar a Escola Experimental de Música La Serena, estatal e gratuita. Este projecto, apoiado por decreto ministerial especial em 1965, permitiu integrar o ensino e a prática colectiva da música no plano curricular nacional, desde o quarto ano do ensino básico até ao final do ensino secundário.
Em setembro de 1973, logo após o golpe militar de Augusto Pinochet, foi acusado de colocar armas nos estojos dos violinos infantis. Jorge Peña Hen foi feito prisioneiro e mantido incomunicável na prisão de La Serena (no Norte do Chile), acusado de posse de armas e de treinamento paramilitar. Foi detido por agentes do corpo de Carabineros (polícia) de La Serena, transferido para a delegacia e, depois, para a prisão daquela cidade, onde foi visitado pela sua família. Durante os dias de confinamento, compôs uma melodia num pequeno pedaço de papel onde escreveu utilizando palitos de fósforo queimados.
Como regista a Wikipédia, Jorge Peña Hen foi executado com outras 14 pessoas, como documenta um comunicado da Jefatura de Plaza no jornal El Día, de 17 de Outubro de 1973.
Em Junho de 1999, o juiz Guzmán Tapia ordenou a prisão de cinco militares na reserva – incluindo um general – pela sua participação na Caravana da Morte1. Em Março de 2006, o juiz Víctor Montiglio ordenou a prisão de treze ex-oficiais do Exército pela sua participação nos assassinatos, sob acusação de homicídio. Em 17 de Julho de 2006, a Suprema Corte do Chile retirou a Pinochet a imunidade como ex-presidente, pelo seu suposto envolvimento no caso, revertendo uma resolução anterior. Finalmente, em 28 de Novembro de 2006, o juiz Víctor Montiglio processou o ex-ditador Augusto Pinochet pelo caso e ordenou a sua prisão domiciliar.
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Cineasta Patricio Guzmán: Prémio Nacional das Artes da Representação 2023
Pelo seu “Compromisso com a verdade”, o realizador chileno Patricio Guzmán obteve o Prémio Nacional de Artes da Representação 2023. O júri destacou que a sua “extensa obra audiovisual tem um compromisso essencial com a justiça social e um compromisso muito profundo com a verdade e a memória”. O júri decidiu, por unanimidade, atribuir o Prémio Nacional de Artes Cénicas e Audiovisuais 2023 ao cineasta, argumentista, investigador, produtor, teórico de cinema e professor Patricio Guzmán Lozanes, considerando: “É um autor cujo olhar pessoal nos convoca a todos, e faz dele um cineasta de renome mundial. A sua visão une-nos e torna-nos grandes como país.”
Nascido em Santiago em 1941, Patricio Guzmán, desde muito jovem, interessou-se pelo documentário. Estudou cinematografia no Instituto de Cinema da Universidade Católica do Chile e, posteriormente, na Escola de Cinematografia de Madrid.
O seu filme mais conhecido é “A Batalha do Chile”, que aborda o último ano do governo de Salvador Allende e que foi filmado até ao mesmo dia do golpe de Estado, tendo sido editado anos depois. As suas obras cinematográficas também incluem “Em Nome de Deus”, “O Cruzeiro do Sul”, “Memória Obstinada” e “O Caso Pinochet”. Dois dos seus últimos filmes já passaram, afortunadamente, na RTP2.
“O Botão de Nácar” (de 2015) e “A Nostalgia da Luz” (de 2010) são, ambos os filmes, documentos de uma pesquisa poética sobre os desaparecidos da ditadura pinochetista. No primeiro, a investigação parte de um fragmento de metal ao qual se aderiu, como uma rémora ou como um botão. Ao longo do filme, vamos descobrir que esse botão é o que resta de um prisioneiro desaparecido que foi jogado ao mar, amarrado a um peso, como uma âncora, para nunca mais aparecer.
Acedendo à página electrónica filmin.pt, deparamos com a sinopse deste documentário de Patricio Guzmán: “O oceano contém toda a história da Humanidade, as vozes da terra e as que vêm do espaço. A água é também a maior fronteira do Chile e guarda o segredo de dois botões que foram encontrados nas suas profundezas. Com 2670 milhas de costa, o Chile é o maior arquipélago do mundo e tem paisagens espetaculares: vulcões, montanhas e glaciares. Também aí se ouvem as vozes dos primeiros indígenas da Patagónia, os primeiros colonos ingleses e as dos prisioneiros políticos. Alguns dizem que a água tem memória. Este filme mostra que também tem voz.”
Relativamente ao filme “A Nostalgia da Luz”, ficamos a saber que, no deserto de Atacama, límpido todo o ano, estão os observatórios mais apreciados por cientistas de todo o Mundo. São cinco os grandes observatórios internacionais: Cerro Tololo, Pachón, Las Campanas, La Silla e o maior observatório óptico do Mundo, a plataforma VLT de Paranal en la Cordillera de la Costa.
Foi, precisamente, neste árido e límpido deserto que a ditadura pinochetista na intenção de fazer desaparecer os corpos dos opositores ao regime, os dinamitou para impossibilitar a respectiva identificação e o reconhecimento por parte dos familiares.
Por sua vez, a sinopse do documentário “Nostalgia da Luz” esclarece-nos: “Um filme sobre a distância entre o céu e a terra, entre a luz do cosmos e os seres humanos e as idas e voltas que se criam entre eles. No Chile, a três mil metros de altura, astrónomos do mundo inteiro encontram-se no deserto de Atacama para observar as estrelas. Neste lugar, a transparência do céu permite ver os confins do Universo. Na terra, o solo preserva os restos intactos, mumificados para sempre, de exploradores, mineiros, índios e prisioneiros políticos da ditadura. Enquanto os astrónomos procuram vida extraterrestre, um grupo de mulheres intransigentes remove pedras à procura dos restos dos seus familiares, vítimas da brutal ditadura chilena.”
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Nota:
1 – A Caravana da Morte é o nome dado a uma delegação do Exército chileno que percorreu o país em 1973. Por ordem do General Augusto Pinochet, tinha a missão de “agilizar e de rever” os processos das pessoas detidas após o golpe militar. A operação terminou com o assassinato e o desaparecimento forçado de 97 presos políticos.
07/09/2023