50 anos do Golpe de Estado no Chile (III)

 50 anos do Golpe de Estado no Chile (III)

A 11 de Setembro de 1973, o palácio de La Moneda, é bombardeado pelas forças militares de Pinochet. (mnews.world)

Foi no dia 22 de Maio de 1960 que acordei de madrugada abalado pelo maior terramoto do século passado. O país sobreviveu, como sempre, habituado aos fenómenos telúricos que o caracterizam… Mas esse abalo foi, para mim e para os meus irmãos, todos ainda crianças, o salto brusco da infância para uma juventude prematura.

A irrupção brutal deste fenómeno foi a quebra violenta de uma vida quotidiana e tranquila. Os edifícios ruíram, parte da nossa casa também. E tivemos de buscar refúgio na casa da minha avó, durante algumas semanas. Dormíamos vestidos, para uma rápida fuga para o exterior, quando voltavam as réplicas. A escola fechou e, como ela, também os teatros e os cinemas… O único divertimento e “lugar de abrigo” foi, durante esses longos meses – quase quatro meses de um retorno à “normalidade” – a rádio e os programas de teatro radiofónicos.

Valdivia, no Chile: maior tremor de terra já registado. (Créditos fotográficos: Bettmann/ colaborador/Getty Images – exame.com)

A rua foi o lugar mais seguro para as nossas brincadeiras. Brincar sobre ruínas e destroços era o cenário de novas aventuras e de inspiração… Levou um tempo voltarmos à segurança dos espaços fechados, voltarmos ao interior de casa e de outros edifícios. Entretanto, soubemos da morte de alguns conhecidos e amigos. E também soubemos de pessoas que tinham perdido tanto como nós… O terramoto também nos habituou às perdas, às coisas perdidas e irrecuperáveis, às coisas que ficaram para trás e às paisagens urbanas desaparecidas.

(pstu.org.br)

Lembro-me, agora, destes acontecimentos porque o segundo terramoto nas nossas vidas ocorreu no dia 11 de Setembro de 1973. Num dia sangrento, perdemos tudo aquilo a que nos tínhamos habituado em democracia. As perdas foram enormes: a nossa casa, a família, os amigos, os estudos universitários, o teatro e, sobretudo, a minha cidade… Voltámos a dormir vestidos. Voltámos a procurar refúgio. Mais uma vez, teatros, escolas e universidades se fecharam para voltarem a abrir mais tarde e com novas regras intervencionadas pela junta militar. Também houve mortos e muitos desaparecidos. Ainda há uma longa lista de quase duas mil pessoas acerca das quais ninguém quer dar respostas, principalmente por parte dos militares, sobre o seu destino.

Depois de ter estado preso em duas oportunidades, a única saída era partir para o exílio e procurar sobreviver, procurar uma nova vida, numa nova terra… Sobreviver é aquilo que fazemos, todos os que partimos. Mais do que viver, sobrevivemos. Mas, para nós, não há um manual de sobrevivência. O essencial parecia ser esquecer. Porém, como diz Benedetti1, “o esquecimento está cheio de memória”. E, assim, colocados perante a fórmula, esta, parece um paradoxo.

Vivi a minha infância e, na minha cidade (Concepcìón), rodeado de descendentes de alemães – amigos, companheiros de liceu, professores, médicos e artistas. A colónia alemã no Chile estende-se, principalmente, no Sul do país, em resultado da imigração que data desde o século XIX. Hoje, estima-se que os descendentes dessa primeira geração sejam, aproximadamente, 500 mil pessoas2. Assim sendo, a minha primeira etapa do exílio na BRD (na, então, Bundesrepublik Deutschland ou República Federal Alemã – RFA), parecia natural. No ano de 1974, ali vivi, trabalhei, estudei e, dentro das possibilidades, fiz teatro! Os meus pais, Rafael e Gabriela e os meus irmãos Rafael e Marcelo, bem como as minhas cunhadas, Sylvia e Teresa, fizeram da RFA uma segunda Vaterland (ou pátria), durante quase vinte anos. Três dos meus sobrinhos aí nasceram e cresceram. Expresso, pois, o nosso agradecimento ao estado e ao povo alemão, pela sua solidariedade, que é enorme!

15 de janeiro de 1975: o dia em que Angola se tornou independente. (Créditos fotográficos: Arquivo –noticiasmagazine.pt)

Portugal foi um feliz destino, para mim, em Janeiro do ano de 1975. Transcorreram quase cinquenta anos desde esse momento, marcado pela Revolução de Abril. Às cidades do Funchal e do Porto devo tudo aquilo que se pode traduzir na reconquista de uma vida e das etapas perdidas. O meu profundo agradecimento a todos os amigos, colegas, companheiros, alunos, camaradas e a todas as instituições artísticas, teatrais e de educação superior e profissional, que fizeram possível para que o meu esquecimento continuasse a ser memória.

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Epílogo

Um grupo de parlamentares chilenos – entre eles, Gonzalo Winter3 – entregou, há dias, à embaixadora dos Estados Unidos da América (EUA), em Santiago, um exemplar do livro “Pinochet Desclassificado”. Trata-se de uma obra que reúne documentos, dos quais todos tínhamos conhecimento, sobre a ingerência dos EUA no golpe militar, que derrubou o governo, legitimamente eleito, de Salvador Allende.

(© iStock)

A Câmara de Deputados do Chile aprovou solicitar, ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (Ministério das Relações Exteriores ou Cancillería), a entrega de todos os arquivos secretos sobre a intervenção dos EUA antes, durante e depois do golpe de Estado militar no Chile. Após meio século, ainda há informação oculta sobre o papel dos EUA neste atentado à democracia. O Chile tem o direito de conhecer a totalidade desses arquivos, pela sua memória e verdade. Gonzalo Winter e Diego Ibáñez, do partido político Convergência Social, solicitaram acções para a desclassificação deste material.

(Direitos reservados)

Seguindo a informação avançada pela Editora Catalonia, lemos: “Dias depois do golpe militar no Chile, o presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, e o seu conselheiro de Segurança Nacional, Henry Kissinger, felicitaram-se mutuamente. ‘Na época de Eisenhower teríamos sido tratados como heróis’, observou Kissinger. A transcrição dessa conversa, mantida oculta durante décadas, é um dos mais de 25 mil documentos dos Estados Unidos sobre o Chile, desclassificados graças ao trabalho de mais de 40 anos do historiador americano Peter Kornbluh. Apoiando-se em arquivos secretos de organizações como a CIA, o Departamento de Estado e o Conselho de Segurança Nacional, Kornbluh reconstrói[,] neste livro[,] como a Casa Branca tentou impedir a assunção de Salvador Allende à Presidência, graças ao papel fundamental desempenhado pelo empresário chileno Agustín Edwards. E como o apoio à ditadura de Augusto Pinochet foi promovido por Kissinger, o mentor da intervenção no Chile. Um apoio que continuou mesmo após o atentado ordenado por Pinochet que assassinou Orlando Letelier e Ronni Moffitt em Washington, [no ano de] 1976. Os documentos revelam também como a Casa Branca começou a se distanciar do ditador[,] em 1986, quando o fotógrafo Rodrigo Rojas  [–] a quem  Kornbluh conheceu quando criança em Washington [–] foi queimado vivo por soldados chilenos. E narra o rompimento entre os Estados Unidos e Pinochet [nas] vésperas do plebiscito de 1988, quando o general quis a[c]tivar um plano sangrento para ignorar a sua derrota. 50 anos após o golpe de 1973, esta edição a[c]tualizada com novos documentos constitui um [registo] histórico fundamental para a compreensão da grande tragédia da história recente do Chile”. “É difícil para outro americano ter-se aprofundado com tanta perseverança e rigor na reconstrução da intervenção dos Estados Unidos no Chile”, observa ainda a Editora Catalonia.

O golpe de Estado militar do general Augusto Pinochet derrubou o Governo socialista de Salvador Allende e instaurou uma ditadura que se prolongou até 1990. (Créditos fotográficos: Carlos Barria – Reuters – rtp.pt)

Notas:

(revistaprosaversoearte.com)

1 Com base na Wikipédia, adiantamos que Mario Benedetti foi um poeta, escritor e ensaísta uruguaio. Integrante da Geração de 45, a qual pertencem também Idea Vilariño e Juan Carlos Onetti, entre outros.  

2 Em tradução livre e recorrendo novamente à Wikipédia, damos conta de que a imigração alemã para o Chile ocorreu, principalmente, no século XIX por imigrantes alemães e austro-húngaros, que se estabeleceram naquele país como colonos. Graças à lei de imigração selectiva, promulgada em 1845, mais de seis mil famílias de estados pertencentes à então chamada Confederação Alemã – a Alemanha começou a existir como país em 1871 e o Império Austro-Húngaro em 1867 – estabeleceram-se no Chile. Os oriundos da Federação Alemã estabeleceram-se nas áreas de Valdivia e Osorno, enquanto os austro-húngaros se estabeleceram em Llanquihue, no Sul do país (totalizando 30 mil colonos entre alemães e austro-húngaros). De acordo com o censo de 2002, a população de imigrantes alemães naquela época era de 5.906 pessoas.

Puerto Varas: antiga colónia alemã, com vista para vulcões. (Créditos fotográficos: Travelight – viagens.sapo.pt)

3 – Gonzalo Rodolfo Winter Etcheberry (nascido em Santiago, a 6 de Janeiro de 1987) é um advogado e político chileno, membro do partido político Convergência Social (CS). Desde Março de 2018, actua como parlamentar da República representando o distrito 10 da Região Metropolitana de Santiago.

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14/09/2023

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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