50 anos do Golpe de Estado no Chile (IV)

 50 anos do Golpe de Estado no Chile (IV)

Salvador Allende cumprimenta o meu pai, Rafael Merino, e Marcel Cerda (na foto, da esquerda para a direita), ambos dirigentes e militantes do Partido Socialista Chileno. (Direitos reservados)

“Yo me voy. Estoy triste: pero siempre estoy triste.
Vengo desde tus brazos. No sé hacia dónde voy.

… Desde tu corazón me dice adiós un niño.
Y yo le digo adiós.”
(“Farewell” – Pablo Neruda)

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Nas últimas semanas e por causa do cinquentenário do golpe militar no Chile, fui escrevendo algumas recordações que são motivadas pelo trágico acontecimento de 1973. Falei de cinema e da ditadura, dos músicos Victor Jara e Jorge Peña Hen, tive de fazer, particularmente, uma reflexão sobre o golpe e a minha experiência pessoal, assim como sobre os efeitos que teve na minha família e, em certa forma, como um exilio não desejado, que se foi prolongando no tempo, até ao dia de hoje.

Mas, haveria muito mais de que falar, sobre o Chile e os desaparecidos, bem como dos refugiados em todo o Mundo, constituindo o fim do sonho de uma geração, que foi a minha, a qual sonhava com uma sociedade melhor e que viu truncados os seus anseios.

Eu deveria falar ainda das crianças que foram raptadas e roubadas aos seus pais e familiares, assim como dos relatos cruéis de meninos que acabaram por serem criados em ambientes completamente alheios aos dos seus pais e familiares de origem, tema excelentemente tratado no filme argentino “A História Oficial”.

(aguiarbuenosaires.com)

Esta prática de roubar crianças já é antiga e arrasta-se desde os primórdios da sociedade humana. É gerada pelas guerras, pelas invasões e pelas ocupações de territórios inimigos nos quais as crianças eram um valor incalculável para o futuro. Este tema é tratado na mitologia grega, a exemplo da tragédia do jovem Crisipo, raptado por Laio de Tebas, que acabará por se suicidar, originando a maldição que perseguirá o rei Laio até à morte pelo seu próprio filho, o jovem Édipo, que casou com a própria mãe, a bela Jocasta. Mais ameno e frutuoso é o rapto do jovem Ganimedes por Zeus, que acabará sendo o escanção (ou copeiro) dos deuses, temática muito tratada nas pinturas e nas esculturas europeias.

Esta prática foi, igualmente, praticada pelos nazis e pelas tropas franquistas na Guerra Civil de Espanha, como podemos ler num artigo retirado da Internet, na Wikipédia, em tradução livre:

“As crianças perdidas do franquismo ou crianças roubadas pelo franquismo, refere-se às 30 mil crianças que, durante a Guerra Civil Espanhola e o período pós-guerra, ou foram tiradas das suas mães republicanas porque estavam presas, ou foram levadas sob tutela porque as suas mães tinham morrido […] nas mãos do próprio exército de Franco.

Refere-se ao desaparecimento de filhos pequenos dos republicanos e à separação forçada das suas famílias pela repressão de Franco. À medida que as tropas rebeldes do general Francisco Franco ganhavam terreno, as prisões enchiam-se de pessoas que tinham sido leais à República. Entre os presos, estavam milhares de mulheres militantes de partidos políticos de esquerda ou, simplesmente, esposas, mães ou irmãs de republicanos. As prisões também ficaram lotadas de crianças que nasceram ou entraram na prisão com as mães e que passaram os primeiros anos de vida privadas de liberdade por serem filhos de republicanos.”

Filhos de pais republicanos, antes de se exilarem em vários países do Mundo. (es.wikipedia.org)

O filme “A História Oficial” relata o momento mais sombrio da História da Argentina, uma das mais sangrentas ditaduras da América Latina. “A História Oficial” é o único filme latino-americano a ganhar um Óscar de melhor filme. Foi o filme mais premiado da História da América Latina e, com certeza, faz parte dos melhores filmes da década de 80.

Como nos descreve a página electrónica Autobahn – de volta aos anos 80, o filme conta a história de Alícia, uma professora alienada, casada com um dirigente do regime que se dá muito bem, enquanto toda a Argentina passa fome, vários trabalhadores e estudantes perseguidos e desaparecidos, incluindo os filhos de mulheres grávidas, quando – além de matarem as mães sob tortura –, os sanguinários ainda davam os seus filhos aos militares ou apoiantes do regime que não podiam ter filhos, ou vendiam-nos a famílias abastadas que não se opunham ao facto e, em alguns casos, ignoravam que esses filhos eram tirados das mães que acabavam por morrer nos porões da ditadura militar Argentina.

O filme “A História Oficial” conta a história de Alícia, uma professora alienada. (cdcc.usp.br)

Situada em Buenos Aires, na década de 1980, Alicia, mãe adoptiva da pequena Gaby, completamente alheia à realidade argentina, começa a dar-se conta dos acontecimentos recentes quando reencontra Ana, uma velha amiga que acaba de voltar do exílio. Sedenta por respostas, ela decide buscar pistas sobre a misteriosa origem da sua filha.

O filme teve a importância de denunciar, ao Mundo, o que estava acontecendo na Argentina, destacando o papel das Mães e Avós da Plaza de Mayo. A luta das Mães e das Avós da Plaza de Mayo ainda continua, mas devemos salientar que foi a Justiça argentina que levou à cadeia o general golpista Jorge Videla1, que acabaria de morrer no cárcere, ao contrário do que sucedeu com o golpista Augusto Pinochet, o qual acabou os seus dias na sua vivenda.  Desdizendo a “história oficial” que está nos livros do governo militar, existia uma outra história de repressão, de tortura e de desaparecimentos.

(Direitos reservados)

O dia 11 de Setembro de 2023, como poderão imaginar, foi um dia especial de recordações e de muitas mensagens de amizade e de solidariedade. A convite da Associação Conquistas da Revolução/Núcleo do Porto, participei como orador num acto de homenagem a Salvador Allende e aos democratas chilenos, na Fundação Engenheiro António de Almeida. Foi um emotivo encontro iniciado por um filme com imagens da época 1973, enquanto ouvimos as últimas palavras do discurso de Allende, em La Moneda, transmitido pela Radio Magallanes. Seguido por intervenções musicais de música de intervenção.

Acabei a minha intervenção lendo o poema “Farewell”, de Pablo Neruda, acompanhado (na leitura da versão portuguesa) pela minha amiga Cidália Santos.

A 12 de Setembro de 2023, nas rádios e nos jornais (a exemplo do Diário de Notícias) destaca-se a notícia: “Espanha retirou esta terça-feira ao ditador chileno Augusto Pinochet a Grande Cruz de Mérito Militar que lhe tinha sido concedida em 1975, quando o país era governado pelo general Francisco Franco. A decisão de retirar a condecoração a Pinochet foi tomada na reunião do Conselho de Ministros do atual Governo espanhol em funções, liderado pelo socialista Pedro Sánchez. A ministra e porta-voz do Governo de Espanha, Isabel Rodriguez, sublinhou que a condecoração tinha sido dada a Pinochet por outro ditador, Francisco Franco.”

Como adianta o Diário de Notícias, com base na LUSA: “A decisão de hoje é coerente ‘com os compromissos democráticos, com os valores democráticos, com os direitos e as liberdades’ e evita ‘que se prolonguem dentro do ordenamento jurídico espanhol manifestações que lembram um outro momento da história contrário a esses valores, a esses direitos e a essas liberdades’, afirmou a ministra da Política Territorial.”

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Nota:

Jorge Videla, em 1976. (pt.wikipedia.org)

1 – Jorge Rafael Videla Redondo (1925-2013), general argentino e ditador no seu país, entre 1976 e 1981. Segundo adianta a enciclopédia livre Wikipédia, Videla chegou ao poder por meio de um golpe de estado que depôs a presidente María Estela Martínez de Perón, em 24 de Março de 1976, iniciando uma ditadura na Argentina. O seu período no poder esteve marcado por repressão política, violações dos direitos humanos, perseguição a opositores, censura, torturas e mortes. Estima-se que mais de 30 mil pessoas foram mortas ou desapareceram durante o seu regime militar na Argentina, o qual durou até 1983. Em 22 de Novembro de 2010, foi julgado por crimes contra a Humanidade, condenado a prisão perpétua e destituído da patente militar pela morte de 31 prisioneiros, após o seu golpe de estado. Videla morreu a 17 de Maio de 2013, aos 87 anos, no cárcere da prisão de Marcos Paz.

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21/09/2023

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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