50 anos do Golpe de Estado no Chile (I): cinema e ditadura

(chilecultura.gob.cl)
“O termo ‘documentário’, aplicado ao audiovisual, parece cada dia mais ambíguo. Hoje, é possível encontrar tantas taxonomias e géneros dentro do chamado cinema documentário quantos filmes documentários são produzidos. Uma coisa, porém, parece ficar clara: o documentário é o outroem relação à ficção. Pelo menos, este é o a priori perceptivo que continua a funcionar entre os espectadores e que legitima uma imagem como documental: assume-se, de antemão, que as imagens são verdadeiras relativamente ao mundo que as originou.” (Juan Carlos Árias, da Universidade Javeriana de Bogotá)
.
Há quem afirme, mais ampla e radicalmente, que o “cinema documental” não existe e, assim, toda a obra cinematográfica se reduziria ao mundo do ficcional. Os três filmes dos quais farei menção, por ocasião da passagem dos 50 anos do golpe de estado no Chile, em certa forma, coloca-nos a problemática: como nos posicionamos, enquanto espectadores, numa perspectiva ético-política, perante narrações históricas recentes, contemporâneas, entre o documentário e a ficção?

“Uma noite de 12 anos”, filme de 2018, coproduzido pelo Uruguai, pela Espanha, pela Argentina e pela França, narra os anos de prisão e de isolamento que três importantes militantes uruguaios sofreram durante a última ditadura cívico-militar nesse país (1973-1985): José “Pepe” Mujica, Mauricio Rosencof (poeta e dramaturgo) e Eleuterio Fernández Huidobro. Jose Mujica (1935), conhecido popularmente como Pepe (José Alberto Mujica Cordano) foi um ex-combatente da organização Tupamaros e, mais tarde, o 40.º presidente da República do Uruguai, entre 2010 e 2015.

“Argentina, 1985” é um drama histórico argentino de 2022, produzido e realizado por Santiago Mitre, com guião cinematográfico de Mitre e de Mariano Llinás. Protagonizado por Ricardo Darín, entre outros. Relata o caso real da dificil e sinuosa tarefa legal do fiscal Julio César Strassera e da sua equipa, no célebre Julgamento das Juntas Militares (governos das Forcas Armadas) que instalaram um regime de terrorismo de estado, com milhares de desaparecidos e de torturados durante a última ditadura que governou Argentina, de 1976 a 1983.

“Chile, 1976”, filme realizado por Manuela Martelli (a sua primeira realização cinematográfica), com guião de Martelli e de Alejandra Moffat. Foi apresentado, pela primeira vez, em Maio de 2022, na Quinzena de Realizadores do Festival de Cannes, sendo seleccionado para representar o Chile nos Prémios Goya/Espanha de 2023.
Do argumento, no Chile de 1976, e já sob a ditadura pinochetista, uma mulher da classe média, a pedido de um sacerdote, amigo da família, cuida de um jovem fugitivo perseguido pela polícia secreta. Carmen percorre territórios inexplorados, longe da tranquila vida a que estava habituada.
Todas as ditaduras, na América Latina, em particular, as da Argentina, do Uruguai e do Chile, deixaram, além de enormes feridas sociais, uma que ainda persiste nas suas sociedades: a dos prisioneiros e cidadãos desaparecidos, aos quais o notável escritor Julio Cortázar dedicou estas palavras, que aludem ao Inferno de Dante: “[…] Y si toda muerte humana entraña una ausencia irrevocable, ¿qué decir de esta ausencia que se sigue dando como presencia abstracta, como la obstinada negación de la ausencia final? Ese círculo faltaba en el infierno dantesco, y los supuestos gobernantes de mi país, entre otros, se han encargado de la siniestra tarea de crearlo y de poblarlo. […]” (ver capítulo “Negación del olvido”)
Voltando às notas iniciais, sobre ficção e cinema documental, gostava de citar aqui dois autores e dois filmes-documentos que muito me marcaram como espectador.

“O Homem de Aran”, realizado por Robert J. Flaherty (1884-1951), autor também de “Nanook do Norte”, que usou uma formidável e moderna montagem neste filme, para retratar o dia-a-dia de uma família de pescadores da ilha Aran, localizada na costa oeste da Irlanda e cercada por um mar enfurecido com violentas tempestades.
Com uma pequena equipa, Flaherty passou dois anos a filmar e a editar o comovente drama deste grupo familiar, que, de forma heróica, busca a sobrevivência em condições desfavoráveis, impostas por uma Natureza furiosa. As imagens são deslumbrantes, demonstrando influências directas da Escola Soviética, dos mestres Sergei Eisenstein e Aleksandr Dovjenko. Recordo, particularmente, o vento numa desolada paisagem, também o cultivo de batatas num espaço minúsculo e árido roubado ao agreste território, assim como a imagem de um tubarão colocado, como um espelho, cara a cara com a protagonista. São imagens difíceis de esquecer.

E, finalmente, o filme “A Valparaíso” (de 1963), realizado pelo mestre holandês do documental Joris Ivens. Trata-se de um filme transformado em quase uma lenda, pois são muito poucos os chilenos que sabem que existe e, praticamente, nada sobre a misteriosa passagem de Ivens pelo Chile.

Realizado a preto e branco, com fragmentos a cor. Surpreendente é a mudança de registo, marcada pela presença sanguinária dos corsários ingleses que atacaram Valparaíso, entre eles Drake, Hawkins e, curiosamente, o holandês Joris van de Spielbergen, que contribuíram com o elemento que autor assinala com o sangue e a pilhagem. Ivens faz de Valparaíso um território poético de subidas e descidas, de quedas e de passeios intermináveis nos quais não falta o encontro fortuito com uma das figuras insignes da cidade, o poeta Pablo Neruda.
Como lemos no resumo do artigo “Joris Ivens: Valparaíso entre a poesia e a crítica”, de Tizziana Panizza, publicado na revista de estudos culturais urbanos Bifurcaciones: “Para Ivens, o Chile foi um dos catorze países onde filmou sessenta e cinco documentários. ‘O Holandês Voador’, como foi chamado, é um cineasta insubstituível na história do género, já que o seu cinema possui uma mistura que poucos têm. Por um lado, a sua formação estética nas vanguardas dos anos vinte permitiu-lhe produzir obras como a célebre ‘Lluvia’ (1929); por outro, testemunhou as grandes mudanças sociais do século.”
.
31/08/2023