Querido Professor

No rescaldo da leitura, em directo nas televisões generalistas portuguesas, da decisão instrutória do juiz Ivo Rosa sobre o processo Operação Marquês, dei por mim a pensar nas razões que me terão levado a escolher estudar Direito e não Engenharia ou Medicina como aparentemente gostaria mais.

À data no meu ingresso na Universidade, nenhuma licenciatura estava sujeita a numerus clausus pelo que teria sido fácil entrar em Engenharia ou Medicina se tivesse optado pela correspondente alínea de Ciências, opção para mim mais lógica por gostar muito destas disciplinas, Matemática incluída. 

Na verdade segui as letras e nas letras o Direito, sem que esta escolha tenha nascido de uma qualquer vontade de promover a Justiça, como compensação mínima por alguma profunda injustiça que tenha testemunhado na infância ou na adolescência.

Passei uma infância e uma adolescência em perfeito confinamento, protegido do Mundo e da realidade que o marca. Só quando já era aluno de Direito e membro de um grupo de teatro universitário dei conta das profundas injustiças que dividem a humanidade. Daí a estranheza da escolha do Direito.

Terei lido, na adolescência, um romance de um autor que não recordo, cujo enredo roda em torno de um juiz, e terá sido esta visão literária do universo judicial o que me empurrou para o Direito, sem qualquer resultado prático pois acabei tornando-me jornalista o que dispensava licenciatura.

Dos longos anos que fingi ser aluno de Direito na vetusta Universidade de Coimbra pouco ficou da Ciência Jurídica, neste país de profunda iliteracia em áreas tão específicas e até filosóficas como é  a das leis que os homens tentam aperfeiçoar para melhorar as relações entre os próprios homens.

Julgo porém saber que a decisão instrutória proferida pelo juiz Ivo Rosa não constitui uma sentença sobre o caso, sendo apenas uma decisão, potencialmente não definitiva, de quem irá a julgamento e sob que acusações concretas susceptíveis de serem julgadas. Um passo intermédio num demasiado longo processo.

Um passo intermédio, consagrado para garantir os direitos dos cidadãos, que não poderá nem deverá condicionar o eventual julgamento, muito mais já condicionado por violações do segredo de justiça a alimentar julgamentos mediáticos apaixonados com variadíssimas ramificações para a praça pública.

O Direito, como já li, não será uma ciência exata como a Matemática, mas deve ser rigorosa na defesa dos direitos das pessoas, incluindo daquelas que praticaram actos que claramente possam indiciar a prática de crimes. Facilitar nesta matéria não serve a Justiça, bem pelo contrário. Pode até beneficiar os próprios criminosos que será o que ninguém quer.

Eis-me aqui, querido professor Joaquim Gomes Canotilho, a falar sobre o que não devia (Direito) e a esquecer uma outra área das nossas vidas sobre a qual devia e poderia falar, Jornalismo. Se a memória me não falha, uma das últimas vezes que estive consigo foi nessa qualidade. Entrevistei-o para o Jornal de Notícias em Dezembro de 1988.

Lembro-me bem da data pois coincidiu com uma viagem minha a Rodhes, na Grécia, a reportar para o Jornal de Notícias um Conselho Europeu. Uma viagem mais do que conveniente para mim pois permitiu que eu não estivesse em Portugal quando a entrevista que me concedeu foi publicada, no dia da inauguração de um congresso partidário cujos congressistas estavam muito atentos ao que o professor poderia dizer.

Ter ido a Rodhes evitou que muito boa gente, alguns até nossos amigos comuns, pudessem descarregar em mim, enquanto jornalista, muito desagrado. A tentação de só aceitar aquilo em que acreditamos, acriticamente, é velha. E também parece estar presente neste rescaldo da leitura, em directo nas televisões generalistas portuguesas, da decisão instrutória do juiz Ivo Rosa sobre o processo Operação Marquês. 

Na minha modesta opinião, talvez tivesse sido melhor que, em vez do directo, essa decisão tivesse sido mediada, jornalisticamente, para a opinião pública. Mas isso sou eu, velho jornalista, meio retirado, a falar. A sua opinião é que eu gostava de conhecer. Daí este meu atrevimento em enviar-lhe este postal.

Respeitosamente

Júlio Roldão

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Júlio Roldão

É jornalista desde 1977. Nasceu no Porto, em 1953, e estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e pelo Círculo de Artes Plásticas (CAPC), tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.

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