Meu caro Vergílio

Quando me telefonaste, na sexta-feira passada, apanhaste-me em casa da Amália, a ouvir a Cuca Roseta e umas quantas guitarradas de Lisboa. Virtualmente, claro. Na verdade, eu estava sentado numa das cadeiras que têm vista para a minha televisão, panorámica e inteligente, e estava sintonizado na RTP 1, o canal que, por padrão, ligo quando ligo a televisão.

Estava a passar mais um episódio da série “em casa da Amália”, a receber, nessa noite, a Cuca Roseta, um violista, um guitarrista e um contrabaixista, este de dedos grossos a fazer-me lembrar os dedos do meu pai quando, menino, deslumbrado, com alguma inveja e quase hipnotizado, os fixava ouvindo-o a tocar banjo, um outro instrumento que igualmente me fascina, mesmo tendo, como tenho, incompatibilidades insanáveis com todos os instrumentos de cordas, vocais incluídas.

Quando cheguei a Coimbra e te conheci, em finais de 1971 – vai fazer este ano meio século -, o fado, o de Lisboa ou o de Coimbra, não era uma canção portuguesa inquestionável, pelo menos para a nossa geração, e até era mal visto e tido como marialva. Nesse tempo eu desconhecia as diferenças entre o fado de Lisboa e o de Coimbra e até desconhecia que o José Afonso, o grande Zeca, tinha passado do fado para as canções de intervenção.

A propósito, recordo que foi o jornalista Albano da Rocha Pato, pai do nosso comum amigo Rui Pato, médico, compositor musical, violista clássico e um dos acompanhantes do Zeca, foi o pai do Rui Pato, homem de esquerda, quem assumiu o papel de discreto produtor dos três primeiros discos de baladas do Zeca, num trabalho militante que incluía a marcação do estúdio, os textos das contracapas e até as fotografias das capas. 

Quando me telefonaste, na sexta-feira passada, voei rapidamente até Coimbra, lembrei-me do tempo em que te conheci, muito antes de me tornar jornalista, lembrei-me de como queríamos ser eficazes a inventar o algoritmo da nossa felicidade (gosto desta frase) e até pensei que talvez ainda pudesse aprender a tocar uma balalaica qualquer, embora reconheça ser muito desafinado e muito indisciplinado.

Tu, pondo a conversa em dia ao ritmo de quem puxa cerejas, falaste-me da minha tardia entrega ao desenho e à pintura, enquanto eu continuava a planar sobre Coimbra lembrando-me, por exemplo, do nosso comum amigo Paulo Vaz de Carvalho que tantas vezes me incentivou a aprender viola e a não me ficar por umas arranhadas “brincadeiras proibidas”, aquela maravilhosa peça de autor desconhecido que Narciso Yepes imortalizou no filme homónimo de René Clement.

Velho jornalista de jornais diários em papel, tenho pouca paciência para esperar pelos resultados finais. Ora, aprender a tocar um instrumento de cordas requer muito tempo, um tempo que eu não quero dar… E na pintura, à qual cheguei tarde, fiquei-me pelos acrílicos e aguarelas. Os óleos exigem muito tempo de espera. Só me aventurei a um, que reproduzo neste teu postal, um auto-retrato sem cabeça, bem conseguido por ser sem cabeça. Tinha cabeça, na verdade, mas como saiu mal “decapitei-me” ancorado numa segunda imagem, espelhada, onde a cabeça ficou.

Tudo isto, meu caro Vergílio, tudo isto regressou à memória na hora em que me telefonaste, reabrindo pontes de comunicação que, às vezes, estão muito tempo encerradas. Manter pontes para os outros, criar novas pontes, destruindo muros inúteis é o que agora mais me move. Se calhar é da idade… Mais velho e menos sectário, embora queira acreditar que nunca fui muito sectário, até em pleno Processo Revolucionário Em Curso, ou seja, durante o celebrado PREC. Também sei que a nossa memória tende a acreditar naquilo que gostaríamos que tivesse acontecido, o que nem sempre coincide com o que aconteceu.

Como eu gostaria de concretizar o sonho de recriar uma narrativa ficcionada em torno desse tempo, do 25 de Abril vivido em Coimbra aos 20 anos de idade? Estamos quase a chegar aos 50 anos do 25 Abril, tempo já suficiente para assegurar a distanciação necessária a uma recriação literária digna desse nome. O único óbice é esta impaciência tão própria de um jornalista que trabalha para um jornal que se publica todos os dias em papel. Ainda não descartei totalmente esses vícios profissionais.

Tudo isto, Vergílio, a propósito do teu tão (in)esperado telefonema. Temos de nos encontrar, a pretexto de um pretexto qualquer. Para recarregar baterias. É esta a grande vantagem de ter amigos. Amigos à antiga, não os das audiências das redes sociais. E pronto, até breve. 

Um grande abraço.

Júlio Roldão

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Júlio Roldão

É jornalista desde 1977. Nasceu no Porto, em 1953, e estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e pelo Círculo de Artes Plásticas (CAPC), tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.

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