Caro senhor Cristiano Ronaldo

Permita-me que comece por felicitá-lo pela sua extraordinária carreira de futebolista profissional. O senhor, em vários anos considerado pelos seus pares como o melhor futebolista do Mundo, merece este reconhecimento, pelo empenho inultrapassável que dedica à sua profissão, sendo, como é, um dos maiores atletas portugueses de sempre.

A si, caro senhor, não se aplica aquele ditado tão português que condena todos quantos ganham fama e passam a deitar-se na cama. O senhor não descansa sobre os sucessos obtidos. Como poucos, sabe e faz saber que só nos dicionários a palavra sucesso aparece antes da palavra trabalho. Este seu exemplo é sempre uma lição.

Dito isto, quero também justificar a maneira tão formal como estou a dirigir-me a si. Eu sei que é comum um tratamento mais informal entre jornalistas e personalidades com as quais há uma interacção frequente, mas nem eu interajo consigo com frequência nem, em boa verdade, consegui habituar-me a tais familiaridades.

A propósito, lembro bem a única volta a Portugal em bicicleta que acompanhei como jornalista e a dificuldade que tive em chegar à fala com os ciclistas a quem, nos primeiros dias, tratava por senhor fulano e senhor sicrano. Foi nos anos oitenta do século passado e só superei essa dificuldade quando Carlos Pinhão, jornalista de “A Bola”, aconselhou-me a ser menos formal com os ciclistas.

Nesse ano, alimentei no Jornal de Notícias, entre outras rubricas, um espaço diário sob o título “A minha profissão é…” dando voz aos ciclistas que, fora da Volta, exerciam outros ofícios. Para o fim dessa Volta, era já procurado pelos ciclistas interessados em aparecer nesse espaço. Muitos deles a pedir que aquela pequena entrevista saísse no dia em que o pelotão dos ciclistas passava na terra natal do entrevistado… O ciclismo era (ou é) outro campeonato, caro senhor Cristiano Ronaldo.

Nem por isso os senhores José Maria Nicolau e Alfredo Trindade foram heróis menores, a julgar pelo testemunho da senhora minha mãe que nasceu em 1919 e que durante muitos anos recordou o entusiasmo dela e de outros jovens como ela quando podiam ir assistir à passagem da Volta a Portugal e à fortíssima rivalidade que que aqueles dois amigos alimentavam nas primeiras provas ciclísticas em Portugal.

Nos dias de hoje, continua a ser triste que, para muitos portugueses, as únicas grandes alegrias vividas ocorram quando o clube de futebol que apoiam ganha ou quando a selecção nacional A, masculina, vence uma competição internacional de relevo mediático. Às vezes imaginando que nossa selecção de futebol é quase a projecção das nossas forças armadas numa batalha difícil e decisiva, num exercício que pode alimentar nacionalismos perigosos.

Não nego, caro senhor Cristiano Ronaldo, que gosto de ver um bom jogo de futebol (mais na televisão do que ao vivo) mesmo sabendo que é um jogo quase anti natural por castigar o uso da mão, membro que os seres humanos usam para actividades superiores como desenhar, pintar, escrever e muitas outras… Não o nego e também sei que é das actividades que mais emprego assegura no Mundo mas gostaria que a nossa boa ou má disposição não ficasse, tantas vezes, dependente dos resultados das nossas equipas de eleição.

Sendo, como é, dos melhores praticantes de futebol de sempre, tenho esperança que possa também pensar assim.

Seu admirador

Júlio Roldão

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Júlio Roldão

É jornalista desde 1977. Nasceu no Porto, em 1953, e estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e pelo Círculo de Artes Plásticas (CAPC), tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.

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