Cara Djaimilia,

Gostei muito de a ouvir no café que abriu ontem na RTP2. Passei por lá por acaso, quase como quem muda de canal, mas fiquei a ouvi-la à conversa com José Navarro de Andrade, a propósito do seu livro mais recente, “Maremoto”.

Neste “Maremoto”, a Djaimilia revisita personagens que vivem por inércia, personagens que terão deixado passar a oportunidade da vida delas, estando agora “mortas” (ou ignoradas) sem que disso se apercebam.

O arrumador de carros do seu “Maremoto”, Boa Morte de nome, será um caso desses mortos vivos. Há anos, um médico amigo que obteve a especialidade de urgentista disse-me que morrer é difícil, pois a nossa condição humana tende a resistir à morte. Só assim se explica que gente doente aguente tanto tempo, mesmo sem tratamento médico adequado e sem as mínimas condições de vida.

Este viver esquecido da vida, que marca algumas das suas personagens literárias, gera seguramente muitas angústias. E no caso do herói do “Maremoto” é significativo e irónico que tenha o nome de Boa Morte.

Foi também por isto que escolhi para ilustrar este postal um pormenor do vicentino barqueiro do inferno na interpretação gráfica de Tóssan – uma espécie de portal a separar o céu do inferno, numa fronteira só possível de localizar num universo literário.

Ontem, no novo café da RTP2, o seu interlocutor, José Navarro de Andrade, salientou a coincidência de a Djaimilia abrir e fechar o “Maremoto” à porta de estações subterrâneas do Metro como que a mostrar uma cidade escondida dentro da cidade de Lisboa, onde a acção do “Maremoto” acontece.

Apeteceu-me entrar na vossa conversa de mesa de café para meter a baixa da cidade de Toronto à baila. Neste lugar, de Inverno muitos dias coberto de neve, há uma pequena cidade subterrânea com ruas (por onde podem circular alguns automóveis), lojas e tudo que estimula a imaginação de quem se surpreende ao vê-la. É certo que os túneis das redes de metro mais antigas também já funcionaram, em algumas cidades, como refúgios para as populações em tempos de guerra. 

Se calhar, vivemos todos naquela fronteira que separa o céu do inferno, um rio pequenino por onde circulam as barcas que nos levarão para outro destino. A todos nós, vagamundos sem eira nem beira, que andamos sempre à procura de cidades escondidas.

E com esta termino, reafirmando a minha admiração por si, cara escritora Djaimilia Pereira de Almeida, que se confessa, tão jovem, uma escritora compulsiva. 

Com admiração e quase alguma inveja,

Júlio Roldão

08/11/2021

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Júlio Roldão

É jornalista desde 1977. Nasceu no Porto, em 1953, e estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e pelo Círculo de Artes Plásticas (CAPC), tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.

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