Querida Alice Vieira,
Revê-la, há dias, num programa da RTP1, foi tão inesperado quanto agradável. A Alice Vieira ama a vida e gosta de viver. Isto torna-a inspiradora. A forma como revelou ter aceitado uma súbita limitação ao seu tempo de vida, limitação que viria a revelar-se infundada, é um exemplo inspirador.
E a sua história de amor com o Mário Castrim, pai dos seus filhos? Ouvi-la ler a despedida, poética, que ele escreveu aos filhos, dias antes de partir, foi mágico. Esse texto do Castrim é também inspirador. “Lágrimas não. Lágrimas, não. A sério. / Enfim, não digo que. É natural. / Mas pronto. Adeus, prazer em conhecer-vos. / Filhos, sejamos práticos, sadios. / Nada de flores. Rigorosamente. / Nem as velas, está bem? / Se as acenderem, / sou homem para me levantar e vir soprá-las, / e cantar os ‘parabéns’. / Não falem baixo: é tarde para segredos. / Conversem, mas de modo que eu também oiça, e melhor a grande noite passe. / […]”
Sempre gostei muito do Mário Castrim e não apenas pela crítica de televisão que ele assinava no Diário de Lisboa. No Lisboa, ele também assinou, nos finais dos anos 70, uma série de crónicas (sob o genérico “Lisboa, verbo amar”) que são histórias de amor inesquecíveis. Recortei-as quase todas. Este meu postal, Alice Vieira, até é escrito no verso de uma foto com esses recortes.
Anos mais tarde, foi o Mário Castrim quem publicou, num suplemento de “o diário” de que era editor, um poema meu que o Carlos Pinhão lhe fez chegar. Chama-se “imaginar” e termina numa fórmula quase matemática: “[…] o infinito é o maior número de estrelas que possas imaginar / vezes dois.”
Claro que também gosto muito de si, querida Alice Vieira. Gosto de si, do que escreve e como escreve. A começar no romance, dito infanto-juvenil, “Rosa, Minha Irmã Rosa”, de 1979, que já vai, pelo menos, em vinte e nove edições, e a continuar por outras poesias incluindo a que é assumidamente poesia. “Esperar que voltes é tão inútil como o / sorriso escancarado dos mortos na / necrologia dos jornais // e no entanto de cada vez que / a noite se rasga em barulhos no elevador e / um telefone se debruça de um sexto andar // sinto que ainda ficou uma palavra minha / esquecida na tua boca // e que vais voltar / para / a / devolver”.
Colocar no patamar da poesia a inutilidade do “sorriso escancarado dos mortos na necrologia dos jornais” denuncia-a também como jornalista. Estes seus dois versos do seu livro “Os Armários da Noite” fazem-me lembrar uma estranha colecção de que tive conhecimento enquanto jornalista – um conjunto de recortes de fotografias publicadas nas necrologias dos jornais onde os fotografados aparecem a sorrir.
Relendo o que já escrevi neste postal, vejo que estou a reter-me em temas tristes, o que não casa nada bem com a Alice Vieira, que gosta de viver e ama a vida. Desculpo-me por sentir que posso falar consigo sobre tudo o que quiser e, principalmente, por saber que a gente não escreve, escreve-se.
Seu admirador,
Júlio Roldão
06/12/2021