Caro Luís Cília,
Teria dezasseis ou dezassete anos quando o ouvi cantar pela primeira vez. Foi num disco, em vinil, disco que terá chegado de Paris para ser ouvido em Portugal com os cuidados de quem lia uma publicação clandestina ou um livro proibido pela Censura.
Esta iniciação, quase política, foi-me proporcionada por um primo mais velho, em Lisboa, um primo licenciado em engenharia que tinha discos e gira-discos. E as canções que me ficaram para sempre gravadas na memória foram o “Contracanto” e o “Dinheiro”, com versos de José Saramago e de Filinto Elísio, respectivamente.
“Aqui, longe do Sol que mais farei / Senão cantar o bafo que me aquece? / Como um prazer cansado que adormece / Ou preso conformado com a lei. […]” O “Contracanto”, de Saramago, era menos inesperado, para um menino com um passado de militância em grupos católicos, do que o “Dinheiro”, de Filinto Elísio: “Nasci – logo a meus pais custou dinheiro / o baptismo, que Deus nos dá de graça. / Fui crescendo – e lá estava o mealheiro / na igreja onde eu ia pedir graças. […]”
Dois poemas escritos em diferentes tempos de chumbo e cantados pelo Luís Cília no mesmo disco. Dois poemas que ajudaram – e muito – o meu renascimento como cidadão, no princípio dos anos 70, quando fui estudar Direito para Coimbra e descobri um Portugal que desconhecia; um Portugal que eu não via no confinamento em que vivi, praticamente, até chegar à Universidade.
Só muitos anos depois de o ter ouvido no gira-discos do meu primo, ainda nos anos 60, tive o privilégio de assistir, ao vivo, a um concerto seu no portuense Teatro Carlos Alberto. Foi um concerto memorável realizado em meados dos anos 80, um dos poucos que o Luís Cília apresentou no Porto. Nele solidifiquei a opinião que tinha relativamente a si: um compositor e intérprete musical muito rigoroso quanto ao seu próprio trabalho criativo. Um trabalho politicamente comprometido sem ser panfletário.
À data, concertos como esse serviam de pretexto para grandes entrevistas nos jornais. Lembro-me que o meu amigo João Quaresma o entrevistou para o Jornal de Notícias, onde eu também trabalhava como jornalista, e que o título dessa entrevista de duas páginas formato “broadsheet”, ou seja, quase o dobro do tablóide, foi uma significativa confissão sua: “Quando subo ao palco, sinto-me um estreante.”
O postal que lhe envio é, aliás, a imagem de metade da segunda página dessa entrevista, cujo título, quase quarenta anos depois, é ainda, infelizmente, actual: “Continua a existir um imenso vazio cultural”. E, neste nosso tempo, que em certo sentido também é um tempo de chumbo ou, pelo menos, apertado, seria desejável que esse crónico vazio cultural fosse menor ou inexistente.
Espero que o Luís Cília esteja bem. Eu tenho relativamente a si, como a muitos outros artistas, uma dívida de gratidão. Este postal é uma modestíssima forma de lhe agradecer.
Obrigado,
Júlio Roldão
10/01/2022