Caro Ugo Cornia,

Li com muita atenção o artigo que publicou na semana passada, no jornal italiano Domani, a lembrar que estamos nas mãos dos algoritmos e que vivemos uma espécie de vida falsa sob o comando de tais assustadoras equações: “Siamo nelle mani degli algoritmi. Facciamoci una vita finta.

A inteligência artificial que empresta alma a esses algoritmos dificilmente diferenciará a compra de uma garrafa de vinho da compra de uma caixa com três garrafas de vinho para uma oferta especial. Se forem pagas com o mesmo cartão bancário, o respectivo proprietário pode começar a ser visto como um potencial alcoólico.

Um potencial e identificado alcoólico, pois no mundo dos algoritmos, o anonimato faz pouco sentido. Até mesmo, ou principalmente, se estiver a identificar um alcoólico. Neste exemplo, o mais provável é que comecem a aparecer no telemóvel do suposto apreciador de bebidas alcoólicas anúncios de outras bebidas de teor alcoólico e preço superiores.

Se tento procurar na Internet informações sobre um relógio cuja marca fixei numa informação que me chegou pela televisão, é certo e sabido que, nos dias seguintes, começam a aparecer no meu telemóvel anúncios de várias marcas de relógios. Isso já me aconteceu.

Desconfio que os velhos anjos-da-guarda, que protegiam todos os meninos e meninas cujos pais confiavam em anjos-da-guarda, estão a ser substituídos gradualmente por algoritmos-da-guarda. A diferença é que os algoritmos protegem mais quem oferece bens de consumo do que quem procura bens de consumo.

Talvez a vida que vivemos a mando dos toques de caixa dos algoritmos não seja tão falsa assim, meu caro Ugo Cornia. Se cedemos, por impulso, a comprar um relógio de pulso cujas virtudes nos aparecem no smartphone, estamos a comprar um relógio real. Julgo, se o domínio do meu fraco Italiano não me trai, que o Ugo também refere esta ambiguidade entre o falso e o real no artigo que publicou, há dias, no jornal Domani.

No ano passado, numa revista dominical do jornal La Repubblica, o jornalista Maurízio Di Fazio abordava outro aspecto desta mesma questão – que prefiro designar por desinformação –, ao referir o exército secreto, avaliado em mais de 150 mil pessoas, de zeladores que tentam colmatar os erros cometidos pelos algoritmos nas redes sociais.

Segundo Maurízio, cada um destes zeladores identifica, em cada turno, 1500 situações onde existe desinformação que manipula, seja apelando ao ódio, seja glorificando crimes, seja fazendo passar o falso por verdadeiro. Situações que condicionam negativamente a nossa percepção do real e do falso, o que será sempre prejudicial.

O nosso algoritmo-da-guarda nos guarde, caro Ugo. É que os outros algoritmos não parecem estar muito dispostos a fazê-lo. A este propósito, e a pretexto do seu texto no Domani, escrevi um pequeno poema, de inspiração oriental, quando li o seu alerta para a vida virtual a que estamos, pouco a pouco, a entregarmo- nos:

Aquele algoritmo
que me persegue e fascina
não sabe pintar.

Isto também justifica aqueles desenhos e aguarelas a que me entrego para viver a minha vida real; a lembrar-me do jornalista do século XIX Carlo Lorenzini, que criou um dos mais famosos mentirosos da literatura universal – Pinóquio – sob o pseudónimo de Carlo Collodi. Quero acreditar que usou pseudónimo para separar as águas do jornalismo das águas da ficção.

O seu leitor,

Júlio Roldão

17/01/2022

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Júlio Roldão

É jornalista desde 1977. Nasceu no Porto, em 1953, e estudou em Coimbra, onde passou, nos anos 70, pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) e pelo Círculo de Artes Plásticas (CAPC), tendo, em 1984, regressado ao Porto, onde vive.

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