Querido Manuel Guerra,
A primeira vez que te vi foi em Coimbra, no dia 4 de Novembro de 1971, uma quinta-feira. Tu estavas nas instalações que o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) então ocupava nos Gerais, ou seja, nas instalações da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, quando eu fui inscrever-me no TEUC.
Lembro-me de ti, do João Vilar e da Guidinha – Margarida Sizenando Ribeiro da Cunha –, que também se inscreveu no TEUC nesse mesmo dia, 4 de Novembro. Lembro-me igualmente de uma frase que estava escrita numa das paredes das salas que o TEUC ali ocupava: “Avalia-se um homem pela natureza das coisas que o aborrecem.”
O TEUC, vim a saber mais tarde, estava impedido de usar as salas que lhe estavam destinadas no edifício da Associação Académica de Coimbra (AAC) e dos organismos autónomos da AAC, na conimbricense Rua Padre António Vieira, por este edifício ter sido encerrado por ordem do Governo de Marcelo Caetano, no âmbito da repressão ao movimento associativo estudantil.
Resistindo, o TEUC preparava, sob a tua direcção como encenador, a reposição da pantomina para crianças “Mel-Pastel, um Boneco de Papel”, trabalho originalmente criado e encenado por Julio Castronuovo, grande mestre do Teatro que, no ano seguinte, regressaria ao TEUC para encenar a peça “Woyzeck”, de Georg Büchner.
Ainda há tempos, descobri uma caixa-envelope, com uma fita magnética em bobina, que o professor Jorge Constante Pereira terá enviado do Porto para Coimbra, muito provavelmente com um registo de um esboço da banda sonora do “Mel-Pastel, um Boneco de Papel”, o primeiro trabalho em que participei no TEUC, na reposição em cena que dirigiste em 1971 – a minha estreia como actor do TEUC.
Nunca será demais recordar que a minha entrada no TEUC foi decisiva na minha vida. No dia dessa inscrição, no já referido 4 de Novembro de 1971, eu, a viver na solidão de um quarto arrendado, sem conhecer ninguém em Coimbra, vagueava pela Faculdade de Direito, cujas aulas do primeiro ano tardavam em começar, quando descobri que o TEUC estava a ensaiar numa sala da própria faculdade e a recrutar gente nova.
Depois, foi o que sabes. Entrei no TEUC com o entusiasmo de um órfão que vai ser adoptado e ganhei novos e grandes amigos, para a vida, incluindo os companheiros da república de estudantes para onde viria a mudar-me; por sinal o “Ninho da Matulónia”, república onde, aliás, tu já vivias e que, hoje, continua a ser uma das nossas casas comuns.
E ter amigos para a vida faz com que a “água colorida em papel de costaneira da cor da madeira” ganhe a dimensão que tu lhe deste quando manifestaste grande apreço por um “Arlequim” que, reconheço, saiu bem. Refiro-me à aguarela que serve de base a este postal; uma aguarela de pequeno formato, cujo original faz já parte da tua colecção particular.
Aquele abraço,
Júlio Roldão
28/03/2022