A diplomacia é a arma

 A diplomacia é a arma

(Frauke Riether – Pixabay)

De maneira a não se dar às coisas nomes que não lhes pertencem, mesmo que a nostalgia por vezes se possa manifestar, é importante ter presente que Rússia não quer dizer União Soviética. Isso acabou há mais de 30 anos. Se o governo russo é o que é, que as liberdades democráticas estiveram sempre consideravelmente limitadas, embora as imagens que as televisões vão dando estejam sempre enviesadas pela necessidade de aproveitamento político, então será tempo de se pensar na alternativa. Esta decisão do governo russo em atacar a Ucrânia terá provocado, seguramente, o descontentamento e a condenação de vastos sectores da população russa, que defendem que a guerra não é a solução para os conflitos políticos. Porém, é necessário ter presente que os valores da democracia não são um exclusivo do ocidente.

Perante uma situação de crise que, inevitavelmente, estará a atravessar o regime russo, falo de uma solução que tenha nos valores democráticos a sua principal referência e prioridade políticas, que sejam eles os promotores e impulsionadores da mudança, tanto para pôr fim à guerra como para democratizar a Rússia. Abrir-se essa frente na Rússia pelos russos, e apoiá-los, seria a melhor contribuição que os democratas poderiam dar para a resolução do conflito com a Ucrânia. Um abaixo-assinado de cientistas russos, posto a circular no dia 26 de Fevereiro, somava, a 1 de Março, mais de cinco mil assinaturas (https://trv-science.ru/2022/02/we-are-against-war/). Em vez de sanções, o que agora a União Europeia (UE) devia estar a fazer era, precisamente, apregoar esses valores, defender e exigir a sua aplicação, não se calar, exigir o regresso à mesa das negociações das duas partes, até o conflito estar resolvido. Se calhar, seriam mais úteis do que congelar contas bancárias ou excluir São Petersburgo da final da Champions League. Porque, se se pensa que os dirigentes russos não pensaram em todos as jogadas, está-se redondamente enganado. Convém não esquecer que eles já tiveram campeões do mundo de xadrez e aprendem a jogar logo que entram na escola.

São Petersburgo (Pixabay)

Ouço generais a falarem e ouço comentadores a falarem do mesmo assunto. Todos falam do conflito que se desenrola na Ucrânia, mas, enquanto os generais argumentam com o conhecimento que a profissão os habilitou, interpretando o que as seis faces do cubo lhes mostram, a maioria dos comentadores olha para a face que mais apoiantes está a ter e por aí vai: palavras atrás de palavras, até que a falta de saliva os cale. De facto, tem sido um martírio ouvir tantos e tão rebuscados comentadores, entre os quais se destaca o inenarrável senhor Milhazes, que muito maltratado deve ter sido nos longos anos em que permaneceu, primeiro, na URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e, depois, na Rússia. Gostaria, mas gostaria mesmo, que, pelo menos no canal público, não viesse a ter de preferir generais a comentar o que se está a passar por aqueles lados aos senhores que saem do emprego para irem, a correr, dizer duas coisas sobre os acontecimentos. No mínimo, com os generais sempre se aprende alguma coisa, porque acrescentam algum texto ao contexto, como diria o Fernando Namora.

Há outro fenómeno que se está a passar e que pouco ou nada está a contribuir para a solução deste conflito: tem a ver com as circunstâncias que estão a ser criadas em torno do problema. A comunicação social foi tomada pelo desejo de a tudo chegar; de tudo dizer, sem parar para escrutinar o que escreve e o que diz, inflamando o estado de espírito e a razão de quem a lê, de quem a vê e de quem a ouve. Eleger como inimigo não só um governo, mas simultaneamente um país com o qual, mais dia menos dia, se terá de restabelecer as relações políticas, económicas e sociais, é uma estratégia particularmente perigosa, considerando a importância que a Rússia tem em todos os domínios. Será, pelo contrário, na mobilização das populações dos estados europeus, nomeadamente, e na insistência da resolução do conflito à mesa das negociações que se poderá encontrar uma solução justa e perdurável. Manter a lógica da guerra é aumentar, continuamente, a distância que vai de uma solução bélica e catastrófica a uma solução construída de olhos nos olhos. A lógica da guerra é sempre a defesa da lei do mais forte e, neste caso, não é necessário fazerem-se muitos cálculos para se saber quem, de facto, é o mais forte. Em política, o curto prazo raramente dá dividendos no longo prazo. Sendo os custos do curto prazo maiores e a incompreensão mais agressiva, os argumentos que olham para longe e que procuram antecipar os obstáculos acabam, geralmente, por obter melhores resultados, aqueles que servem os interesses de todos.

Sergey Lavrov, o ministro das Relações Exteriores da Rússia, afirmou recentemente que a alternativa dos Estados Unidos (EUA) às sanções que já foram impostas àquele país seria uma devastadora guerra nuclear ordenada por Joe Biden. Começa, assim, a conhecer-se os contornos deste processo. Antes do início do conflito armado, Biden não largava as televisões com declarações atrás de declarações incendiárias, numa manifestação de hostilidade e de provocação à Rússia, arrastando nesse processo a UE. Logo após o início da invasão, Biden calou-se. Nunca mais apareceu e deixou a UE a tratar dos assuntos, entre os quais os muitos milhares de refugiados. Ora, aquela declaração de Lavrov não equaciona a outra alternativa para o problema, que é o início de conversações para o estabelecimento da paz na região e a garantia explícita de que a Rússia não se sentirá ameaçada militarmente com a concretização da adesão da Ucrânia à NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Entre os três cenários – invasão, recurso às armas nucleares e estabelecimento da paz –, só um é a alternativa. E seria para essa que os EUA e a UE deveriam estar a exercer toda a sua influência política. Só essa garantia pode servir de prova às intenções do governo russo, hoje colocadas em dúvida: expansão imperialista ou defesa do território de uma ameaça da NATO. Tudo o que se disser antes de se ver o resultado desse teste serão sempre especulações, boas para aumentar os “shares” das televisões.

(Pixabay)

Finalmente, não se pode passar em claro a onda de xenofobia para com os cidadãos russos que atravessa a Europa, já não só pelo boicote a todas as iniciativas que tenham a marca da Rússia como até a eventos desportivos. As declarações do presidente do Comité Olímpico Português, por exemplo, são inaceitáveis quando justifica a exclusão dos desportistas russos dos Jogos Paralímpicos, com argumentos exclusivamente políticos. A intenção de isolar a Rússia é, também ela, uma agressão, no caso, ao povo russo. Quer isto dizer que está a progredir uma nova era na relação entre os povos, aberta que está a porta para todas as discriminações, agora que se dá largas ao ódio e à exclusão. Não se ouve, porém, da parte das autoridades europeias uma palavra a chamar a atenção para o irracionalismo em que se está a cair. Uma vez mais, quando se quiser acudir à situação, há muitos prejuízos que estarão consumados e o novo normal será o clima de intolerância para com todos os que não tenham declarado no notário a sua condenação expressa relativamente ao sucedido. Há, portanto, que acudir a duas frentes: a rápida resolução do conflito na mesa das conversações e a condenação de todos os actos que visem os cidadãos que tenham tido ou venham a ter opiniões que não obedeçam ao padrão dominante.

07/03/2022

Siga-nos:
fb-share-icon

Cipriano Justo

Licenciado em Medicina, especialista de Saúde Pública, doutorado em Saúde Comunitária. Médico de saúde pública em vários centros de saúde: Alentejo, Porto, Lisboa e Cascais. Foi subdiretor-geral da Saúde no mandato da ministra Maria de Belém. Professor universitário em várias universidades. Presidente do conselho distrital da Grande Lisboa da Ordem dos Médicos. Foi dirigente da Associação Académica de Moçambique e da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. É um dos principais impulsionadores da revisão da Lei de Bases da Saúde.

Outros artigos

Share
Instagram