A 46.ª edição do Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica
A moldura não podia ser mais perfeita. Um cenário quase teatral para a apresentação da programação da edição n.º 46 do Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI). São as caves da Niepoort (Espaço Serpa Pinto), na Rua Serpa Pinto, em Vila Nova de Gaia.
O motivo é, logicamente, de regozijo: voltar a ter o FITEI entre nós, com quase meio século de vida e reafirmando-se como o festival internacional de teatro mais antigo de Portugal.
Na primeira edição deste festival, estive presente como participante com o Teatro Experimental do Funchal (hoje, ATEF – Associação Teatro Experimental do Funchal). Apresentámos uma versão da peça “Woyzeck”, de Georg Büchner. E regressaria mais vezes a esse evento que tanta importância tem para mim e para a cidade.
O FITEI deu-nos a oportunidade de vermos companhias de África, com destaque para o teatro de países como Moçambique e Angola, mas também de origens latino-americanas, como de Cuba, do Chile e do Peru. E, neste ano, vai regressar ao Porto (mas, igualmente, com espectáculos em Matosinhos, em Vila Nova de Gaia e em Viana do Castelo), entre 10 e 21 de maio, com uma programação “repleta de talentos com cunho luso e a comunidade hispano-americana”, permitindo o “encontro nos palcos da cidade do Porto” e constituindo “um lugar de representação para mostrar as suas experiências, as suas vidas, as suas inquietações”, como diria Luiz Francisco Rebello (1924-2011), na mensagem de abertura da primeira edição do Festival, oficialmente inaugurado a 10 de Novembro de 1978.
Este autor (dramaturgo), crítico teatral, ensaísta e historiador do teatro português antecipava o significado histórico desta iniciativa, apresentando-a como “uma das mais importantes manifestações culturais, de ressonância internacional, do Portugal democrático saído do 25 de Abril”.
“Do modelo da antiguidade, que conjugava de forma irrepetível a equação entre a experiência teatral e a presença cívica, o festival de teatro dos nossos tempos, definitivamente inaugurado em Avignon, por Jean Vilar, em 1947, recupera a territorialidade e a ambição aglutinadora, condições indispensáveis para a experiência de festa que encontra no festival a sua forma adjectiva” (cf. Oliveira 2003: 99)1.
Entre as muitas manifestações de “viva o teatro!”, na presença do novo director do FITEI, Jorge Pinto, foi lançada, no dia 11 de Abril, a programação de 2023 do FITEI, ao longo da qual serão apresentados 14 espectáculos.
Como escreve a jornalista Mariana Soares, do Jornal de Notícias (JN), na edição digital de 11 de Abril, neste ano, “o festival cobre-se com o tema ‘Trauma e Bravura’, representando os cenários vivenciados por todos nos últimos anos”.
Como adianta Mariana Soares, o director artístico do FITEI, Gonçalo Amorim, declarou, durante a conferência de imprensa, que a organização do festival entendeu, “em conversas, olhando para os artistas, olhando para o estado de alma dos nossos parceiros”, que deveriam, neste ano, serem trabalhados os temas “Trauma e Bravura”.
Seguindo a mesma notícia do JN, lemos que o director artístico, Gonçalo Amorim, explicou que o conceito de “trauma”, associado ao FITEI, “surge em sequência de vários eventos recentes, nomeadamente “a crise migratória, em que muita gente morre antes de chegar à Europa, a pandemia e a invasão à Ucrânia”. Por outro lado, “bravura” aparece como a outra face desta mesma moeda. De acordo com o director artístico do FITEI, ela pode ser encontrada. E, aqui, ele emociona-se e explica que a noção de “bravura” pode ser verificada “quer na mãe que agarra o filho nos braços para atravessar na balsa o Mediterrâneo”, quer na “mãe solteira em Portugal que tem três empregos para aguentar o barco”.
Confirma-se, pois, que a 46.ª edição do FITEI “arranca a 10 de maio em quatro pontos distintos: Porto, Matosinhos, Vila Nova de Gaia e Viana do Castelo, contabilizando um total de 11 salas abrangidas pelo festival”.
Além das companhias convidadas, estarão presentes também as escolas de teatro da cidade do Porto, nomeadamente o Ballet-Teatro, representado por Isabel Barros, e a licenciatura em Teatro da Escola Superior Artística do Porto (ESAP), representada pelo seu novo director, o dramaturgo Jorge Palinhos.
Na programação, salientamos “Bochizami”, da artista Flávia Gusmão, que é uma viagem pelas memórias, utilizando o luto como dispositivo de paragem no tempo. E também “Hamlet”, no palco do Teatro Nacional de São João. O elenco conta com um grupo de pessoas com síndrome de Down. Numa versão de Chela Ferrari, questiona o que é “ser ou não ser?” para pessoas que não conseguem encontrar espaço na sociedade actual.
Em “Cosmos” (segunda parte de uma trilogia em construção), Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema propõem uma obra interplanetária, através do resgate da mitologia africana e da sua mistura com mitos europeus, projectando-se num horizonte afro-futurista.
Por sua vez, em “Una Isla”, representada por Agrupación Señor Serrano (da Catalunha), a tecnologia e a manipulação de objectos em cena trazem a reflexão sobre a “bolha de ódio” construída dentro das redes sociais. E ainda “O Sistema”, de Cristina Leitão. Também uma colaboração entre os grupos portugueses Má-Criação e os brasileiros Foguetes Maravilha e Dimenti deu origem a “Subterrâneo, Um Musical Obscuro”. Este espectáculo retrata o acidente em que 33 mineiros ficaram soterrados num desabamento, na mina San José, no Chile.
Em relação ao espectáculo teatral “Limbo”, de Victor Oliveira, estamos perante um mosaico narrativo que toca em temas como a diáspora luso-moçambicana. Traz à tona questões como o negacionismo histórico.
“Moria”, do autor espanhol Mario Vega, realiza uma experiência imersiva, a qual tenta recontar a história da fuga de duas refugiadas e das suas famílias, forçadas a sair do seu país.
“Piloto” é uma obra que funciona como um simulacro formado por um grupo multidisciplinar de profissionais (como curadores, arquitectos, programadores, marketeers) que se reúne com o objectivo de projectar um parque de diversões temático.
Já o espectáculo “Ibérica Sector 5” possibilita um mergulho nos intermináveis arquivos que têm o mesmo nome. É trazido ao palco pela companhia Visões Úteis, por meio do “reenactment” (ou seja, a recriação de momentos históricos emblemáticos).
“Se Eu Fosse Nina” explora, através de um exercício a solo, as barreiras entre a ficção teatral e a realidade. Dizendo por outras palavras, aborda a relação de uma personagem que está presa no teatro e uma atriz que a quer salvar.
Há ainda a considerar os espectáculos “Condomínio”, de Nuno Nunes, e “Que Não se Fale dos Velhos Tempos”, de Grua Crua. O Teatro Bombón Gesell propõe uma série de espectáculos curtos seguidos de uma mesa-redonda, além de uma “provocação cénica para reflectir sobre a violência e a justiça na América Latina”, lê-se no programa a que o jornal multimédia JPN-JornalismoPortoNet teve acesso.
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Actividades extracurriculares e acessibilidade
Para além dos destaques principais, fazem igualmente parte do evento actividades extracurriculares como “FITEI PRO” e “Isto não é uma Escola FITEI”. O festival tem uma programação musical e apresenta projectos com várias escolas do Porto. Este conjunto de actividades formativas e de workshops tem acesso gratuito, mas requer inscrição prévia.
Como o festival é uma realidade nascida do 25 de Abril, não posso deixar de evocar, aqui, aquela madrugada poeticamente definida pela poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen: “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silêncio / E livres habitamos a substância do tempo”
Este artigo é publicado na semana em que se comemora o 49.º aniversário dessa revolução gloriosa e, por isso mesmo, não posso deixar de lembrar esse momento histórico que, traduzido no teatro, trouxe a oportunidade de ver as novas nações africanas a expressarem-se na arte dramática, com os seus rituais, as suas dramaturgias, os seus actores… Se o 25 de Abril não tivesse existido, isso não seria possível! Finalmente, e aproveitando esta comemoração extraordinária, importa celebrar, junto da RTP2, a actualização dada ao artista plástico João Abel Manta2, ao recriar, animadamente, as suas caricaturas em fragmentos/separação de continuidade televisiva.
O meu pai – que vivia na Alemanha Federal (RFA) e que seguiu muito atento, por vários motivos, a Revolução de Abril – achava muita piada a este cartoon, que tentava explicar às grandes figuras da História, o significado ou o enigma da Revolução de Abril. Bem-haja ao Abel Manta! Não esqueçamos que a democracia portuguesa está quase a fazer 50 anos!
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Notas:
1 – “Memória, reconhecimento e desafio”, de Paulo Eduardo Carvalho (Mensagem à 28.ª edição do FITEI – 31 de Maio de 2005, TNSJ).
2 – João Abel Carneiro de Moura Abrantes Manta nasceu em Lisboa, a 29 de Janeiro de 1928. É um reconhecido arquitecto, pintor, ilustrador e cartoonista português. Como regista a Wikipédia, é autor de uma obra multifacetada, centrada sobretudo na arquitectura, no desenho e na pintura, João Abel Manta afirmou-se no panorama cultural português a partir do final da década de 1940. Nos anos que se seguiram, Abel Manta teve uma importante actividade no domínio da arquitectura, área que abandonaria progressivamente em favor das artes, destacando-se como um dos maiores cartoonistas portugueses das décadas de 1960 e de 1970. Nos anos anteriores e posteriores ao 25 de Abril, Abel Manta publicou, regularmente, em jornais de grande tiragem, trabalhos emblemáticos da situação político-social portuguesa, nesse período de transição (a exemplo da queda da ditadura e da implantação de um regime democrático). Na década de 1980, redireccionou, uma vez mais, a sua obra, centrando-se prioritariamente na pintura, como anota ainda a Wikipédia.
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27/04/2023