A beleza americana

 A beleza americana

Eu não conhecia a escritora norte-americana Alice Sebold, o que, obviamente, não tem nada de mais, nem para mim nem para ela. Há milhões de pessoas a escrever e a publicar em todo o mundo e em todas as línguas. Impossível conhecer toda a gente.

Recentemente, porém, ela, que já vendeu milhões de livros no mercado americano – um dos maiores do mundo, como toda a gente sabe –, voltou a ser notícia na imprensa internacional, o que, por fim, me fez conhecê-la pela primeira vez. Antecipo desde já: não a conhecendo como escritora, parece-me um ser humano lamentável.

Sebold, noticiaram os jornais em todo o mundo, emitiu, no dia 1 de dezembro, uma nota pedindo desculpas a um homem – Anthony Broadwater – que ficou 16 anos preso nos Estados Unidos, falsamente acusado de a ter estuprado quando ela tinha 17 anos e que agora, 39 anos depois, foi ilibado desse crime, na sequência de uma revisão do processo.

Começo por estabelecer uma cronologia dos factos. Em 1981, Alice Sebold foi vítima de um estupro por um desconhecido. Um ano depois (1982), Anthony Broadwater foi condenado e sentenciado por esse crime, tendo sido libertado 16 anos mais tarde, em 1998; o seu nome, porém, foi registado na lista de agressores sexuais. Em 1999, Alice Sebold escreveu um livro, Lucky (Sorte), em que narra a sua traumática experiência, o qual vendeu mais de um milhão de exemplares e catapultou a sua carreira literária. Em 2019, o livro foi contratado para ser transposto para o cinema, o que acabou por possibilitar uma profunda reviravolta do caso de Broadwater: o produtor executivo que estava a trabalhar na adaptação da obra de Sebold para o cinema desconfiou que o homem tivesse sido mal condenado e contratou ele próprio um investigador privado, que apurou, de facto, que a condenação de Anthony Broadwater fora injusta, levando a justiça norte-americana a ilibá-lo completamente do crime, dois anos após o início da revisão do caso. Há duas semanas, Alice Sebold pediu desculpas a Broadwater pela condenação de que o mesmo foi vítima.

Condenação de Anthony Broadwater foi injusta.

Perante esta reviravolta, a atriz Victoria Pedretti, que faria o papel de Sebold na adaptação de Sorte, desistiu da produção. Esta perdeu o financiamento e foi cancelada. De igual modo, a editora americana Simon & Shuster, que publica Sorte, anunciou que deixaria de distribuir o livro e que iria trabalhar com a autora para “considerar como o trabalho poderia ser revisto”. O livro já foi retirado de alguns “saites” de vendas dos EUA.

É difícil não ficar chocado com a série de injustiças e incongruências observadas neste caso, a começar pelas circunstâncias e condições que levaram Anthony Broadwater a ser condenado injustamente. A decisão do tribunal que o manteve preso durante 16 anos foi feita com base numa denúncia da vítima, mas note-se que Alice Sebold, depois de o ter visto na rua e pensado ser ele o agressor, não conseguiu identificá-lo no reconhecimento criminal feito na esquadra [delegacia], o que não impediu as autoridades de levá-lo a julgamento; a decisão judicial foi igualmente baseada na análise de um fio de cabelo de Broadwater, que as novas técnicas periciais consideraram superficiais.

Acontece que Anthony Broadwater é negro. Se a sua condenação não teve nada a ver com esse facto, confirmando, como tantos outros casos ao longo da história americana, o racismo estrutural existente no país, então a Terra não é redonda e não gira à volta do Sol (alerta necessário, em tempos de pensamento literal: isto é ironia…).

Chama também a atenção a atitude de Alice Sebold, antes e mesmo depois da condenação de Broadwater. Porquê, por exemplo, que ela não se manifestou acerca das condições em que essa condenação foi produzida, uma vez que não foi capaz de proceder ao reconhecimento criminal de Anthony Broadwater realizado depois de o ter denunciado, o que significa, obviamente, que não estava certa da sua acusação inicial?

No dia 1 de dezembro deste ano, escreveu ela na nota que a sua assessoria divulgou a propósito da decisão judicial que limpou o nome do homem que acusou há 40 anos, sem provas: “Lamento acima de tudo pelo facto de a vida que poderia ter levado lhe tenha sido injustamente roubada e sei que nenhuma desculpa pode mudar o que lhe aconteceu nem nunca mudará.” Parece-me pouco.

Uma experiência como a que viveu Alice Sebold aos 17 anos de idade deixa, como é óbvio, marcas para toda a vida. Mas o facto é que, aparentemente, ela conseguiu geri-la e até “sublimá-la” (as aspas são imprescindíveis). Tornou-se uma escritora de sucesso e, por certo, não tem grandes problemas materiais. Pergunto: e como estará Anthony Broadwater? Segundo a imprensa, ele terá dito, cavalheirescamente, que está “aliviado” depois do pedido de desculpas de Sebold.

O produtor de cinema Timothy Mucciante (à direita).

O pessoal do Twitter diz que a autora de Luckydeveria partilhar os direitos de autor com o homem que injustamente denunciou há 40 anos e que transformou em personagem do seu livro. Estou tentado a concordar (?). Mas, para mim, o aspeto principal a reter desta história é que, mesmo nas lutas justas, os erros podem acontecer, precisando, contudo, de ser reparados, sob risco de tais lutas serem menorizadas e desvalorizadas pelos seus opositores.

A atitude cínica, para não dizer oportunista e insensível, de Alice Sebold em relação a Anthony Broadwater não ajuda a luta justa, necessária e que urge manter sem quaisquer dúvidas contra todos os atos de violência, seja de que natureza forem, contra as mulheres (e, já agora, contra todas os seres humanos).

A terminar, há um nome a reter e a enaltecer nesta história lamentável: Timothy Mucciante, o produtor executivo, que, tendo visto aquilo que considerou serem “discrepâncias” entre as descrições da violação na primeira parte do livro de Alice Sebold e os registos do julgamento de Broadwater na segunda parte do mesmo, o que lhe fez decidir contratar um detetive particular para apurar o que realmente havia acontecimento.

A atitude de Mucciante – um extraordinário exemplo de empatia e sentido de justiça – é um sinal de que a humanidade talvez tenha salvação.

28/12/2021

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João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), no ano de 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil, entre 1984 e 1992, onde trabalhou como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados - de poesia, de ficção (contos) e de ensaios -, em Angola, em Portugal, na Itália, em Cuba e no Brasil, onde publicou a colectânea de contos "Filhos da Pátria", em 2008.

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