A ciência e a religião são como a água e o azeite

 A ciência e a religião são como a água e o azeite

Ciência e religião são retratadas em harmonia, por Louis Comfort Tiffany, no vitral “Educação” (1890). (pt.wikipedia.org)

Foram muitos os homens e, nos últimos dois séculos, as mulheres, que pedra sobre pedra, foram erguendo o edifício da ciência, hoje ao nosso alcance. Esse esforço que, em sinal de respeito e de reconhecimento, devemos procurar conhecer foi, para muitos deles, doloroso e, em alguns casos, fatal. No que diz respeito à Geologia, cultivar esta disciplina científica nos tempos anteriores ao século XIX teve os seus riscos. E não foram pequenos

(Créditos fotográficos: Christian Lue – Unsplash)

Falar ou escrever sobre a origem da Terra e as suas transformações ou sobre o nascimento da vida e a evolução das espécies, incluindo o surgimento do homem, à luz da ciência e, inevitavelmente, em confronto com a “verdade” bíblica e com os dogmas decretados pela Santa Sé, não foi uma caminhada fácil. Foi, sim, causa de perseguições, de sofrimento e, não raras vezes, de sacrifício da própria vida. Basta lembrar Muhammad Averróis, no século XII, Giordano Bruno, no XVI, Galileu Galilei, no XVII, e Georges-Louis Leclerc, conde de Buffon, no XVIII, para nos darmos conta dos escolhos postos ao progresso desta e de outras ciências.

A idade de cerca de seis mil anos atribuída à história da Terra pelas Sagradas Escrituras, o geocentrismo, que impunha o Universo centrado no nosso planeta, os seis dias da Criação e o Dilúvio bíblico eram algumas das verdades inquestionáveis pelos seguidores da Fé e não havia lugar para os dissidentes, considerados hereges e, como tal, perseguidos. “Existem sóis inumeráveis e infinitas terras que giram à volta deles, como estes sete planetas que giram em torno deste Sol que nos é vizinho”, escreveu o italiano Giordano Bruno. Por essa ousadia e por se recusar a admitir que a Terra se encontrava no centro do mundo, este filósofo dominicano foi queimado vivo, em Roma, às ordens da Santa Inquisição, para purificação da sua alma pelo fogo, no dia 16 de Julho de 1600.

No tempo de Galileu Galilei, a ciência e a religião confundiam‑se em larga medida. Pintura “Galileu diante do Santo Oficio”, de Joseph Nicolas Robert Fleury (século XIX). (setemargens.com)

Se nos concentrarmos nesta parte do mundo onde nasceu e se desenvolveu, a chamada civilização ocidental, foi, sobretudo, a religião cristã que deu respostas a interrogações cruciais como a origem e a natureza do mundo vivo e não vivo. Do Universo ao homem, passando pelo nosso planeta, onde os mares, as montanhas e os rios, os vulcões e os sismos eram alvo de um misto de curiosidade e de temor, tudo era explicado pelos doutores da Igreja. E essas explicações impunham verdades globais, definitivas e indiscutíveis.

Gravura “A Criação de Adão”, por Miguel Ângelo, na Capela Sistina, no Vaticano. (Créditos fotográficos: Ricardo Perna – setemargens.com)

A ciência, pelo contrário, não impõe. Propõe. Aponta explicações, sujeita-as a debate, a escrutínio e a verificações. Reformula-as, em função da descoberta de novos elementos e, se necessário, retira-as do discurso, dado que o seu objectivo é a verdade dita científica.

Como é vulgar dizer-se, a ciência e a religião são como a água e o azeite. Não se misturam. Coexistem, mas cada uma no seu campo. É evidente que as atitudes de uma e de outra perante as entidades e os fenómenos naturais são geradoras de confronto. Hoje, razoavelmente civilizado e pacífico nas sociedades civilizacionalmente mais avançadas, mas conflituoso e, muitas vezes, cruel e desumano, no passado. Apesar das perseguições, a ciência, com os seus argumentos objectivos e de apelo à razão, ia ganhando cada vez mais força. Foram muitas as vezes em que a Igreja tentou submeter os “sábios” e pôr o seu trabalho ao serviço da Fé.

A Geologia foi, sem dúvida, um dos domínios do conhecimento científico cuja competição e cujos conflitos com a religião (em particular, com a Igreja católica) foram mais graves e violentos. Oprimida e perseguida, durante séculos, por um catolicismo fundamentalista, a Geologia já ganhou, em muitos países, estatuto de ciência de grandeza compatível com a sua real importância na sociedade, o que não é o caso em Portugal, onde esta disciplina continua subalternizada nos currículos escolares e continua arredada da cultura geral dos Portugueses, dos mais humildes e iletrados às elites intelectuais mais iluminadas.

Com algumas excepções, a ciência não é perseguida nos dias da actualidade. De mãos dadas com a tecnologia, constituem alavancas poderosas para o bem e para o mal, ao serviço de uma humanidade a um tempo sabedora e desencantada, à procura de um caminho que tarda em encontrar.

Ao evocar filósofos, astrónomos, geógrafos, naturalistas, geólogos, mineralogistas e paleontólogos que, tijolo a tijolo e degrau a degrau, ergueram o maravilhoso edifício das Ciências da Terra, deparámo-nos, a cada passo, com a mencionada competição, que só terminou em finais do século XVIII, com a vitória do liberalismo.

(Créditos fotográficos: Diane Serik – Unsplash)

A esmagadora maioria das personalidades incluídas nesta obra são homens e isso deve-se unicamente à condição de inferioridade, nesses tempos imposta às mulheres, a quem o ensino era praticamente vedado. O século XX acabou com essa indignidade e, assim, são muitas as mulheres – hoje, tantas ou mais do que os homens – que ocupam os bancos e as cátedras das universidades e que participam na investigação científica e tecnológica.

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04/04/2024

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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