A Ciência não é neutra
Quando da epidemia de gripe “espanhola”, em 1918/19, os responsáveis da época, para evitar o contágio, recomendaram higiene pessoal, usar proteções faciais e manter as pessoas afastadas umas das outras. Como nas trincheiras e hospitais de campanha da I Guerra Mundial o distanciamento físico não era muito praticável, os resultados foram catastróficos.
Passado um século, lavar e desinfetar as mãos, usar máscara e guardar 1,5 m de distância para o ser humano mais próximo continua a ser o meio mais eficaz para conter o vírus. Mas não podemos dizer que está tudo na mesma, pois está de facto pior, quando o asseio é politizado e quem se resguarda e protege ao mesmo tempo os seus semelhantes, pode ser acusado de tenebrosos desígnios ou mesmo acabar fisicamente molestado.
Ficou também a renovada evidência de que as doenças crónicas dão lucro, mas as vacinas não. É evidente que dentro de algum tempo iremos ter uma vacina, mas agora generosamente financiada por dinheiros públicos. Parece, pois, que a Ciência nos falhou. E não por ausência de conhecimento ou de cientistas, mas porque a rentabilidade económica esperada não foi suficiente para mobilizar a pesquisa no sentido de prevenir a anunciada pandemia.
Mas se pense que o complexo tecnológico se manteve ocioso. Aliás são os gigantes do digital que surgem como os grandes beneficiários dos negócios proporcionados pela crise sanitária atual. O frenesim de aplicações para detetar, seguir e controlar a propagação do vírus é um claro sintoma do que existe e do que aí vem. A narrativa fracamente contestada é que, com vacina ou sem ela, a inteligência artificial /IA vem para tornar a vida melhor, mais segura e mais “inteligente”. No dizer de Evgeny Morozov, as tecnologias digitais vivem no mundo do “solucionismo”: há soluções para tudo, mesmo que não haja problemas.
Regressamos assim ao paradigma de Vico: faz-se porque somos capazes e temos condições para fazer, não porque seja preciso ou útil. Mas Vico escrevia no século XVIII, e nessa altura o que defendia fazia sentido, em defesa da superação dos interditos políticos e religiosos. Nos nossos dias, Max Tegmark, em Life 3.0: Being human in the age of artificial intelligence (2017, Allen Lane), talvez sem ler Vico, traça um panorama não problemático do futuro digital, nada incomodado com o facto de não estarmos a assistir à antropomorfização das máquinas, mas sim à mecanização dos humanos.
Cerca de 1930, o psicólogo Lev Vygotski estudou os processos cognitivos com o objetivo de contribuir para a formação de pessoas socialmente empáticas e cooperativas, aptas a superar a condição de indivíduos solitários. Para ele, as aprendizagens aconteciam através da interação com a natureza e com outros agentes inteligentes, conferindo às suas propostas um cariz poderosamente social e situado na existência e atividades dos humanos.
Curiosamente, as suas investigações revelaram-se úteis para a o desenvolvimento de sistemas multiagentes, campo em que se assiste a um redobrado interesse por parte dos centros de investigação em IA. Só que, transportadas para o domínio de deep learning, a generosidade e humanismo de Vygostski são agora paradoxalmente aproveitadas para educar redes neuronais a competir e a aniquilar-se entre si.
Os constantes avanços tecnológicos visam supostamente desenvolver um comportamento inteligente, esquecendo que os seres humanos têm um corpo. E, tal como em 1918, o vírus entra pelo corpo.