A Copa do Mundo e suas perplexidades
Pouco antes da Copa do Mundo no Brasil, em 2014, o Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) promoveu uma edição das Jornadas Bolivarianas tratando do tema dos megaeventos e seus impactos, tanto para a América Latina quanto para o Mundo, no que diz respeito a uma mirada de classe. Ou seja, as consequências para os trabalhadores.
Foi um momento muito bom para compreendermos como os países se curvam aos interesses da Federação Internacional de Futebol (FIFA) ou, em última instância, do capital.
Veio gente do México e da África do Sul, países que já tinham sediado uma Copa. E todos foram unânimes em mostrar como a organização de um mundial está longe de ser um momento de congraçamento dos povos. Não é. Já faz um bom tempo que sabemos que o futebol perdeu a sua pureza original. No mundo contemporâneo, é uma mercadoria e ponto final.
Naqueles dias, inclusive, nós, aqui no Brasil, nos debatíamos com os dramas das famílias que estavam sendo removidas do caminho das construções, com a situação dos indígenas na Aldeia Maracanã e outros tantos “tratores” que iam passando por cima da vida dos trabalhadores. O país chegou a construir enormes estádios que hoje estão subutilizados e também se rendeu à FIFA, ao permitir a venda de bebida nos estádios. Uma loucura total. Teve luta, muita luta, mas o mundial veio e a vida seguiu. O que não veio mesmo foi toda a sorte de melhorias que haviam prometido aos Brasileiros.
Isso não foi diferente no México, com as copas de 1970 (9.ª edição da Copa do Mundo FIFA) e de 1986 (13.ª edição). O país também se debatia com as lutas dos trabalhadores que não aceitavam tanto investimento num esporte que nem era o mais praticado na nação. Havia tanta coisa para fazer e os governos insistindo em servir de palco para mais uma onda de assimilação capitalista, da qual a maioria estava fora. Passados os mundiais, as promessas nunca mais foram revistas.
O sindicalista Eddie Cottle trouxe a realidade deixada pela Copa do Mundo no torneio de 2010, na África do Sul. Mais do mesmo. Enormes construções, mais estádios, gente despejada, luta de trabalhadores, dinheiro público fluindo para a iniciativa privada e grandes lucros para a FIFA e suas marcas parceiras.
Agora, no Catar, as denúncias seguem o mesmo diapasão. Enormes estruturas que ficarão obsoletas, morte de trabalhadores, exploração das comunidades mais empobrecidas, no geral imigrantes. Isso sem falar da violação dos direitos das mulheres e da inexistência da tal democracia.
Ora, para a FIFA isso não é problema. Violência contra mulheres, passar “máquina” por cima de comunidades, expulsar pessoas das suas casas, ditaduras, governos assassinos, nada importa, se o fluxo do capital segue firme. Desde que João Havelange assumiu a presidência da Federação Internacional de Futebol, no ano de 1974, o futebol virou um esporte planetário e uma mercadoria de grande valor. Um acordo com a empresa Adidas abriu as portas para a FIFA se firmar no âmbito do espetáculo mundial. E o que era só uma salinha perdida na Suíça virou um gigante. Veio a venda dos direitos televisivos, movimentando milhões, propagandas nas camisas dos times (ou equipas), garotos-mercadoria e por aí vai. O dinheiro só circulando.
Essa lógica inaugurada por Havelange também foi contaminando o futebol nos países. Nasceram os clubes/empresas. Futebol já não era mais coisa de diletantes, apaixonados pela bola. Time virou negócio e negócio graúdo. É a grana que move as ligas na Europa, nos países da América Latina, nos países asiáticos que decidiriam também entrar no mundo do futebol.
Garotos são vendidos e comprados desde a mais tenra idade e o clube/empresa que tiver mais dinheiro é o que aglomera mais gente boa no seu plantel. A lógica da dependência se expressando: no centro, os melhores; e na periferia, o restante. Não precisa ser muito esperto para perceber isso. Uma mirada nos grandes times europeus e o que se vê é serem muito mais os jogadores estrangeiros que gente do próprio país.
Pois, muito bem! Então como é que, sabendo disso, o futebol ainda é uma paixão que foge a qualquer argumento da razão? Por que milhões de pessoas seguem assistindo aos jogos, aconteçam aonde for? Por que existem torcidas gigantescas que seguem os times, ainda que estejam na série C, D ou E. Como entender o amor que consome a pessoa, mesmo que ela tenha completa noção de que o dirigente é um ladrão e que o futebol é só uma mercadoria para essa gente?
Eu mesma não sei. Também sou movida por essa paixão. Torço para o Figueirense, de Santa Catarina, totalmente perdido numa série C qualquer, mas basta uma vitória para que a gente se levante em delírio, ainda que a razão nos diga que tudo isso é uma ilusão.
Agora, no Brasil, temos visto muito debate nas redes sobre o boicote ao evento da Copa e denúncias sobre a vida no Catar. Acho isso bom. Sempre é importante para os movimentos de luta contarem com visibilidade nesta época de megaevento. Afinal, são bilhões de pessoas vendo e comentando o certame. De certa forma, apesar de toda a alienação ideológica e o puxa-saquismo ou desconhecimento dos comentaristas, algo escapa. Isso alavanca lutas. Porque o capital é assim: ele vem com voracidade. E, nesse movimento, acaba expondo as suas vísceras. Mas, é fundamental que a luta dos trabalhadores esteja sempre na nossa pauta, todos os dias, com evento ou sem evento.
Outra coisa que escapa à alienação é a explícita presença da lógica de dominação e de dependência, típica do capital. Nações ricas trazem os melhores jogadores e nações empobrecidas, da periferia capitalista, vêm com plantéis locais, destacando-se um ou outro que faz sucesso na Europa. Veja-se o nosso Brasil, com mais de 20 que não jogam em times locais. Esses jovens que cedo são “exportados” são, como diz o professor Nilso Ouriques, os “pé-de-obra” do futebol do centro do capital. E esses times da periferia, se vencem, conseguem superar, de maneira quase heroica, a sua condição de dependente. A coisa é clara.
Ainda assim, a paixão persiste. De novo, vou buscar em Nilso Ouriques alguma resposta. No seu mais recente livro, ainda no prelo, ele discute esse amor incondicional que algumas pessoas devotam aos seus times e ao jogo. Ele diz que “o futebol é a consagração plena do amor romântico, na busca pelo gozo e pelo prazer, um amor otimista e forte em si mesmo na procura permanente pelo encontro, marcado pela saudade e admiração pelo manto sagrado, pelas cores, hinos e cantos da arquibancada repleta de torcedores fiéis a uma camisa e a uma história de glórias e sucessos eterno. Uma relação amorosa de fé e devoção, sem a possibilidade não só de conclusão como de traição ao clube do coração”.
Sinceramente não sei o que é, mas uma coisa eu sei. Ainda que o plantel dos mais diversos espaços geográficos seja essa colcha de retalhos de jogadores que muitas vezes nem jogam nos seus países, algo se passa lá nas quatro linhas e penso que eles – de alguma forma – se deixam tocar por essa magia que o futebol traz.
Como a tristeza plasmada no rosto do jogador senegalês depois de perder para o carrossel holandês. Uma derrota que é individual, mas também é de um imenso contingente de pessoas que acredita em milagres…
Quem pode julgar? Afinal, diante de tantas dores típicas da dependência e do subdesenvolvimento impostas pelo capital, alguns momentos de alegria por conta da bolinha caem bem. Vencer os gigantes tem lá o seu sabor, ainda que perder faça muita gente perder o chão.
Enfim, a Copa é um evento do capital, mas o jogo escapa…
24/11/2022