A crise na saúde é estrutural, de carreira e salarial
Nada me move contra uma prestação de saúde privada e também dela tenho sido utente, mas um país de economia periférica como o nosso ou tem um Sistema Nacional de Saúde (SNS) robusto ou deixa para trás a maioria da população, cada vez mais carecida de cuidados de saúde adequados, por força do envelhecimento, das epidemias e da assunção da Saúde como negócio por parte de alguns prestadores privados.
Os serviços privados surgem como cogumelos e o Estado, em nome do bem público, tem de estancar o desvio sistemático dos médicos do SNS para o setor privado.
O SNS tem mais dinheiro e mais profissionais, mas os resultados são piores.
A situação não se resolve com a transformação de centros hospitalares em Unidades Locais de Saúde (ULS) ou com a transformação de centros de saúde em agrupamentos de centros de saúde ou na criação de Unidades de Saúde Familiares (USF) de tipo B ou de tipo C, bem como com a extinção de estruturas existentes e com a criação de novas estruturas. O que há a fazer – uma rede de cuidados de saúde primários e uma rede hospitalar que deem cobertura a todo o país – far-se-ia com a administração central dotada de competências e meios, para tomar decisões de interesse nacional, secundada por estruturas regionais e locais, reconhecidamente autónomas, e por uma eficaz entidade fiscalizadora. Uma direção-geral da saúde, dotada das competências e dos meios necessários e suficientes resolveria cabalmente os problemas da Saúde.
A opção política foi outra. Assim, a Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) tem 11 direções (uma dedicada à formação e investigação científica para os profissionais), 300 elementos e 30 milhões de Orçamento do Estado de 2024 (OE2024). E, quase um ano depois de constituída, tem os estatutos (nunca mais vinha o dia) que a habilitam a administrar a rede pública de saúde. Para tanto, agendou-se um encontro, no Porto, entre o primeiro-ministro (PM), António Costa, e o diretor-executivo do SNS, Fernando Araújo.
O diploma avança com a estratégia apresentada, em novembro de 2022, de transferir para a DE-SNS grande parte das competências de administração dispersas por várias entidades. Confirma a extinção das cinco administrações regionais de saúde (ARS) – ainda se aventou a hipótese de serem integradas nas respetivas Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) –, a par de outras funções que transitam para esta DE. Na prática, a estrutura do SNS diminuiu de mais de 100 organismos para pouco mais de 50, incluindo as unidades de saúde.
Ao PM, colocado a par das medidas para reformar o SNS, nomeadamente as urgências hospitalares, agora em situação ainda mais crítica, devido à recusa dos médicos ao trabalho extra além das 150 horas anuais impostas por lei, Fernando Araújo mostra como prepara a reorganização para reforçar o modelo de urgência metropolitana, com a concentração de especialidades deficitárias – como Oftalmologia, Gastroenterologia, Urologia, Psiquiatria, entre outras –, e para avançar com o atendimento agudo a nível regional, aproveitando as atuais redes de referenciação.
A ideia que surgiu após reunião entre DE-SNS, profissionais e administradores, sobre a eventual opção por urgências gerais rotativas, à semelhança do que se faz, há quase um ano, na Obstetrícia-ginecologia, nos Partos e na Pediatria, não tem fundamento. A equipa não quer limitar ainda mais o acesso quando se avizinha um dos períodos de maior congestionamento no atendimento SOS hospitalar, o das infeções de inverno. Além disso, um modelo rotativo não seria viável, dada a recusa das equipas às horas extra acrescidas.
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Após 16 meses de rondas negociais e de sete reuniões extraordinárias entre o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, e os sindicatos, FNAM (Federação Nacional dos Médicos) e SIM (Sindicato Independente dos Médicos), o governante decidiu, unilateralmente, fazer avançar para legislação a proposta do governo, acordo. Na proposta, consta o aumento salarial de base médio de 3,6%, acrescido do suplemento salarial de 25%, para os médicos hospitalares que optem pela dedicação plena – sendo a dedicação plena dada por adquirida para médicos que trabalhem em unidades de saúde familiar (USF) e em centros de responsabilidade integrados (CRI). Os CRI são equipas que assumem compromissos assistenciais, como reduzir listas de espera para cirurgias ou consultas. O governo criará 100, até ao fim da legislatura, alargando o modelo a áreas como a Saúde Mental.
Ao invés do que parece (e da primeira intenção do ministro), a dedicação plena não impede os médicos de trabalharem no setor privado, apenas os faz depender de “autorização pelo órgão máximo de gestão do serviço ou do estabelecimento de saúde”. Porém, leva ao aumento do limite de trabalho extraordinário de 150 para 250 horas obrigatórias por ano, o que os médicos contestam e que está na base do protesto às horas extraordinárias que se vive nos hospitais. O que os médicos querem é o aumento do salário-base, na ordem dos 30%, não em suplementos, bem como a redução do horário de 40 horas semanais para 35 horas, algo que o bastonário da Ordem dos Médicos (OM), Carlos Cortes, diz que poderá vir a acontecer.
O salário inicial de médico especialista (médico assistente) a realizar 40 horas semanais cifra-se nos 2.800 euros brutos (cerca de 1.800 euros líquidos). A maioria dos médicos mantém-se nesta categoria, embora possa subir até ao escalão 8, a rondar os 3.200 euros brutos. A categoria seguinte, de assistente graduado, começa nos 3.200 euros brutos e a categoria de assistente graduado sénior (reservada a cargos de chefia) inicia nos 4.100 euros e termina nos 5.100.
O valor-hora das horas extraordinárias de urgência está anexado ao vencimento-base de cada profissional. Mas, se até à crise das urgências de obstetrícia, que atingiu as maternidades em 2022, poder-se-ia dizer que este começaria nos 20 ou 30 euros/hora, em julho de 2022, entrou em vigor um novo regime.
Determinou-se que o trabalho suplementar dos médicos em serviço de urgência era de até 50 euros por hora, a partir das 51 horas extra; de 60 euros por hora, a partir das 101 horas; e de 70 euros por hora, a partir das 151 horas. Ou seja, um médico que ultrapasse as 150 horas e faça um turno de 24 horas recebe por ele 1.680 euros brutos.
Até agosto de 2023, os médicos já tinham quatro milhões de horas extra, o que representa mais de 200 milhões de euros para o Estado. Em média, cada médico fez mais de 135 horas suplementares – mais do dobro de um enfermeiro – e recebeu por isso quase 6.500 euros. Com muitos médicos a atingirem 300 e 400 horas extra, sobretudo nos hospitais de média dimensão, onde o número de profissionais é menor, dizem-se exaustos e não querem o aumento do trabalho extraordinário previsto nos contratos como contrapartida do aumento salarial. Querem, em vez disso, que o aumento salarial esteja firmado no salário-base. Com o aumento de 150 para 250 horas extra previstas nos contratos, os médicos precisarão de trabalhar mais horas para serem pagos com os novos valores tabelados em 2022 (que chegam aos 70 euros por hora).
Decididas, unilateralmente, as novas condições contratuais pelo ministro da Saúde, a greve às horas extra era a última arma que os sindicatos tinham de reserva para pressionarem o executivo. As horas extra são voluntárias, sendo um direito dos médicos decidirem não as fazer, além do limite previsto na lei, e o protesto, por não ser uma greve, não necessita de pré-aviso.
A FNAM sustenta que o dinheiro gasto em horas extraordinárias dos médicos daria para contratar mais profissionais e que um SNS assente em horas extraordinárias de médicos não é sustentável, no que estou de acordo, só me interrogando por que motivo a situação se arrastou até este ponto. Serão já centenas os médicos que terão entregado documentos de recusa a mais horas extraordinárias, em vários hospitais do país, que têm criado repercussões em todo o SNS.
De uma reunião entre o bastonário da Ordem dos Médicos e o ministro da Saúde, para abordar o protesto dos médicos, surgiu a possibilidade de o ministro repensar um dos pedidos dos sindicatos – o de passar os contratos das 40 para as 35 horas, mantendo os vencimentos.
A proposta dos sindicatos foi uma das que primeiramente não teve acolhimento pela tutela; e os profissionais têm lembrado que são a única classe profissional da saúde que manteve o horário das 40 horas semanais, decretado em 2012. Porém, não são todos os médicos que têm contratos de 40 horas semanais. Quase metade dos clínicos do SNS os cumpre, mas também se mantêm contratos antigos de 35 horas e de 42 horas semanais – estes últimos abarcam os contratos de dedicação exclusiva ao SNS (iniciados nos 3.500 euros brutos).
Foi em 2012 que o governo de Passos Coelho decretou o aumento das 35 para 40 horas semanais de trabalho generalizado para a função pública, que foi acompanhado, no caso dos médicos, por acordo que determinou que o novo horário teria associado o aumento salarial de 931 euros brutos (de 1.932 para 2.863 euros), no primeiro escalão de médico assistente. Até hoje, o acordo não foi desfeito. Os sindicatos querem recuperar as 35 horas semanais, mantendo o vencimento. E a FNAM aduz – e bem – que o horário de 35 horas para todos os médicos permitia contratar mais clínicos para o SNS, gastar menos em horas extra e menos em produção adicional e no privado (neste, por requisição do SNS).
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Manuel Pizarro voltou a sentar-se à mesa com dirigentes sindicais, a 12 de outubro, após 16 meses de negociações falhadas. Os sindicatos admitiam que a expectativa era quase nula e diziam o OE2024 faz antever o pior. “A expectativa é extremamente baixa, embora desta vez até tenham enviado uma convocatória formal. Mas, mesmo assim, apenas a dizer que ordem de trabalhos tem como pontos ‘grelhas salariais’ e ‘outros assuntos’ e sem qualquer documento acessório, nem mesmo os que temos pedido, como os documentos finais, aprovados em Conselho de Ministros, sobre a dedicação plena e remunerações”, criticou a presidente da FNAM, Joana Bordalo e Sá, cujo ceticismo é partilhado pelo secretário-geral do SIM, Jorge Roque da Cunha: “Os últimos 16 meses de negociações não deixam antever uma réstia de esperança.” Este dirigente sindical salienta que “apesar da total disponibilidade para negociar um acordo, que não tinha de ser para já e poderia acontecer até ao final da legislatura, o Ministério optou por deixar de dialogar.”
“O Orçamento do Estado para a Saúde nos últimos anos tem sido uma ficção. O que é orçamentado para investimento fica sempre muito abaixo do que é executado”, salienta Jorge Roque da Cunha. E exemplifica: “Em 2022 foram orçamentados 509 milhões de euros e apenas 230 milhões executados. Este ano, foram orçamentados cerca de 750 milhões de euros e até agosto apenas estavam executados 20%”, ou seja, “recorrentemente, é a prova de que continuam as cativações na Saúde”.
Joana Bordalo e Sá sustenta que a proposta do OE2024 mostra que não haverá valorização: “É apresentada a tabela salarial única e não vai além dos 3%.” Mas não só, “o aumento real da despesa com pessoal foi de 12%, entre 2022 e 2023, e agora a previsão apresentada é de metade desse valor, é de apenas 6%”, explica, incluindo no seu diagnóstico outra incongruência: “O texto da proposta de Orçamento diz que, na Saúde, é preciso zelar pela conciliação entre a vida familiar e profissional, mas temos um ministro que diz que as urgências sempre funcionaram com recurso a horas extraordinárias e um Orçamento que inclui a dedicação plena, com as exigências que já conhecemos: mais horas extras, trabalho ao sábado, jorna diária de nove horas, fim do descanso compensatório após os bancos. Portanto, não vemos como se concilia mais trabalho com mais vida pessoal.”
Na reunião, Manuel Pizarro apresentou uma proposta que prevê um suplemento de 500 euros mensais, para os médicos que fazem serviço de urgência, e a possibilidade de poderem optar pelas 35 horas semanais. O SIM fala em sinais encorajadores, mas FNAM manteve a greve para os dias 17 e 18, pelo que ficou agendada nova reunião fica para hoje (19 de outubro).
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Além da valorização salarial, os médicos, como os outros profissionais de saúde, querem a valorização na carreira pela maior facilidade de progressão, de acordo com a avaliação de desempenho, pela existência de instalações e equipamentos suficientes, de bom clima de trabalho e de espaço temporal para a vida familiar e profissional. Caso contrário, a Agenda do Trabalho Digno começa a ser condicionada pela “lógica da batata”.
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19/10/2023