A democracia é imperfeita, mas os seus cravos não podem murchar
A 24 de abril, a Euronews publicou um artigo de Joana Mourão Carvalho intitulado “50 anos do 25 de Abril: o que ainda falta cumprir da revolução?”, em que reconhece que “Portugal está hoje melhor que há 50 anos”, mas sustenta que “a pouca produtividade da economia, a precariedade no trabalho e o definhamento dos serviços públicos colocam o país numa posição de atraso, relativamente a outros congéneres europeus”.
Por outro lado, a 25 de abril, a Euronews também publicou um artigo de Ilaria Frederico, sob o título “Portugal: 50 anos depois da revolução, os cravos estão a murchar?”, considerando que “o dia 25 de abril de 2024 marca o 50.º aniversário da Revolução dos Cravos, em Portugal”, a “revolução que pôs fim a [quase] 50 anos de ditadura e deu início a uma era de democracia”. E aponta que a efeméride é celebrada num momento de mudança do panorama política, com o centro-direita a vencer as últimas eleições e a extrema-direita a ganhar terreno. Ora, a mudança à direita não é inédita. O que é excecional é a ascensão da direita radical. Ironicamente, um partido desses tem assento parlamentar com 50 deputados, no cinquentenário da revolução da Liberdade.
Joana Mourão Carvalho exalta a comemoração dos 50 anos da democracia, com liberdade de imprensa, com eleições livres, com direito à saúde, à greve, ao ensino – as muitas conquistas da revolução. Porém, nas celebrações do 25 de abril, sempre se discute o que falta cumprir.
A historiadora social Raquel Varela, professora da NOVA FCSH (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa) aponta as concretizações, sobretudo, ao nível do espaço de trabalho, onde os Portugueses exigiram a amplitude de direitos nunca existentes, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e o sistema educativo, o que, durante muitos anos, significou “avanços qualitativos” a nível social. Ao lado dos direitos, liberdades e garantias, emergiu o Estado social e a segurança e proteção no emprego, tendo muitas dessas coisas retrocedido, a partir do final dos anos 80. Porém, ficou a perceção esperançosa de que é possível viver de outro modo, que não pode ser apagada. “Pode-se voltar atrás nas concretizações materiais, mas não se volta atrás do ponto de vista da ideia em ato”, refere a historiadora.
“A consequência do retrocesso da democracia nos locais de trabalho foi o avanço brutal dos investidores e da remuneração do lucro, que faz com que as pessoas trabalhem 24 horas por dia na indústria, os médicos tenham pessoas, que não são médicos, a dizer quanto tempo devem estar com os doentes, os professores sem uma palavra a dizer sobre o currículo, ou seja uma completa degradação dos serviços públicos e essenciais à nossa vida”, frisa Raquel Varela.
Portugal está melhor do que há 50 anos, mas a pouca produtividade, a precariedade e o definhamento dos serviços públicos colocam o país numa posição de atraso, face a outros. A produtividade por trabalhador em Portugal é 28% inferior à média dos países da Zona Euro. Há, pelo menos, 10 anos que o país se mantém na cauda da produtividade do espaço da moeda única. Em seis anos, foi ultrapassado pelos três países Bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia) e, no contexto da União Europeia (UE), foi ultrapassado pela Croácia, Roménia e Polónia. Porém, ninguém diz a que preço os outros cresceram, nem se acusa a falta de organização do trabalho.
Para a coautora do livro “Breve História de Portugal”, as causas do problema de produtividade estão ligadas ao facto de o capital ser mais favorecido em detrimento do trabalho. “Há, sobretudo a partir do século XXI, uma intensa degradação dos serviços públicos com uma alta remuneração dos capitais pela via do juro, portanto, por via de empréstimos, da dívida pública, o que vai destruir a capacidade instalada, a capacidade de produzir do país, e também erodir os serviços públicos”, defende.
O produto interno bruto (PIB) per capita do país continua a abaixo da média europeia. Em 2023, segundo o Eurostat, Portugal ascendeu à 18.ª posição entre os Estados-membros da UE, subindo dois lugares, face a 2022, e ultrapassando a Polónia e a Estónia. No entanto, continua à distância de 17%, face à média comunitária. E o historiador económico Nuno Palma sustenta que “Portugal continua na cauda da Europa Ocidental”, sendo o seu país mais pobre. Assim, Portugal “não melhorou a situação relativa que tinha, em termos de ranking dos países, […] é o último, o mais atrasado em termos do capital humano, em termos dos níveis de educação da sua população, continua a ser o último da lista da Europa Ocidental, em termos do funcionamento das instituições políticas”. Porém, está muito diferente do que era antes. Só que a mentalidade tacanha não foi superada e o serviço à comunidade é objeto de menor empenho do que o interesse privado.
Com cinco décadas de vida democrática e há 38 anos na UE, o país terá de repensar a participação no projeto comunitário e diminuir a dependência, face aos dinheiros europeus, já que o previsível alargamento do bloco à Ucrânia e aos Balcãs Ocidentais se traduzirá numa diminuição dos fundos disponíveis para a política de coesão.
Na ótica do professor da Universidade de Manchester e autor do livro “As Causas do Atraso Português”, estes fundos levam a população a “nem sempre sentir a urgência de mudar” e as empresas a competirem, sem “preocupação em criar dinâmicas transformativas para a economia”. Na sua ótica, “em vez de serem a salvação do país”, como são vistos pelos atores políticos, estes fundos podem ter “efeitos muito negativos”, tanto na economia, em particular na parte sujeita à concorrência internacional (os bens transacionáveis), o setor transacionável da economia, como no nosso processo político que existe em Portugal. No fundo, são “pensos rápidos” que escondem as consequências de algumas más decisões.
Além disso, o historiador acusa os dois grandes partidos que governaram em democracia de não terem sido capazes de gerar reformas que levassem o país a convergir com o resto da Europa.
Há quatro anos, Portugal desceu à categoria de “democracia com falhas”; e, desde então, não mais conseguiu regressar ao estatuto de “democracia plena”, em que estava em 2019.
O “Democray Index 2023”, divulgado pelo Economist Intelligence Unit, da revista The Economist (o Index foi criado, em 2006, para examinar o estado da democracia em 167 países), coloca o país em 31.º no ranking mundial, três posições abaixo do ano passado e o pior resultado desde 2013, devendo-se a queda, principalmente, à avaliação atribuída ao critério “funcionamento do governo”, que regista a pontuação de 6,79, uma queda substancial, face ao ano passado (7,50). Assim, Portugal é um dos três países da Europa Ocidental classificados como “democracia com falhas”, a par da Bélgica e da Itália.
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Todavia, a revolução é celebrada institucionalmente e popularmente. A Assembleia da República, o Centro Cultural de Belém e o desfile militar, por um lado, e as ruas das principais cidades e vilas, por outro, bem o testemunham.
As pessoas que a viveram, em 1974, recordam os dias de caos e de êxtase que Portugal viveu durante a Revolução dos Cravos e fizeram da data cinquentenária um dia memorável, um dia de festa. Até houve quem tenha guardado uma garrafa de vinho do Porto de 1974 e a abriu.
A exposição do fotógrafo Eduardo Gageiro mostra, entre as imagens, uma parada militar, um soldado a retirar um retrato de Oliveira Salazar da sede da polícia e jovens em torno de um tanque com ar jubiloso. Na vasta galeria da Cordoaria Nacional, uma antiga fábrica de cordoaria à beira do Tejo, mergulha-se no passado, enquanto se aquece com a luz e o calor de um dia primaveril.
António de Oliveira Salazar tornara-se presidente do Conselho de Ministros, em 1932, na sequência de quatro anos de ministro das Finanças. Institucionalizou a ditadura, limitando as liberdades civis, impondo censura rigorosa e reprimindo toda a oposição política. Em 1968, sucedeu-lhe Marcelo Caetano, mantendo, sob a capa de modernização do regime do Estado Novo, a sua estrutura autoritária e prosseguiu as guerras coloniais em África, o que levou ao golpe de Estado e ao fim da ditadura, em 1974.
A 25 de abril de 1974, as forças armadas, apoiadas por civis, cansadas e indignadas com o horror das guerras coloniais em Angola, em Moçambique e na Guiné-Bissau, decidiram mudar de rumo. O povo saiu à rua e, no dia 1 de maio, eclodiu a Festa da Liberdade. A Constituição de 1976 lançou as bases da democracia pluralista. E o panorama político tem alternado entre governos do Partido Socialista (PS), de centro-esquerda, e do Partido Social Democrata (PSD), de centro-direita, por vezes, com a muleta do Partido do Centro Democrático Social (CDS).
A 10 de março de 2024, o povo virou mais uma página. Após oito anos de governo do PS, as eleições legislativas viram a oposição de centro-direita sair vitoriosa, por margem muito apertada e o Chega, partido da direita radical, obter 18% dos votos, um enorme avanço, face às eleições legislativas de janeiro de 2022. Esse partido tem um manifesto baseado em posições transfóbicas e xenófobas, entre outras, com forte oposição à imigração.
Vasco Lourenço, agora com 80 anos, tinha 31, em 1974. Enquanto capitão do exército, organizou, em Alcáçovas, a 9 de setembro de 1973, a primeira reunião clandestina para o derrube do regime. Compareceram 95 capitães, 39 tenentes e dois outros oficiais, marcando o primeiro passo para a revolução. Diz que os valores que os empurraram e os motivaram permaneceram na sociedade, o que nos permitiu ter 50 anos de democracia, mas não há democracias perfeitas. Acha que o Chega usa as regras democráticas para chegar ao poder, mas a História diz que, se partidos como este chegarem ao poder, tentarão acabar com a democracia. Por isso, temos de os combater, dentro das regras democráticas.
Vasco Lourenço, ao regressar da campanha da Guiné-Bissau, decidiu jamais pegar em armas. Sentindo-se “instrumento de um poder ilegítimo em Portugal, um regime de ditadura, de repressão”, decidiu usar o seu estatuto militar “para derrubar esse regime”. E, enquanto a tropa se organizava para derrubar a ditadura, figuras menos visíveis difundiam a propaganda antirregime na diáspora.
Muitos dos ativistas foram parar à prisão, onde passaram pela tortura, pela insónia forçada, pela administração de calmantes. Proibido de exercer qualquer atividade política em Portugal, após a detenção, Arnaldo Silva exilou-se em França. Agora, pensa que a ascensão da extrema-direita se deve, fundamentalmente, a fracassos de governos, que “não conseguiram dar resposta às preocupações das pessoas”. “Os que votam à direita são, muitas vezes, aqueles que já foram de esquerda e mudaram de lado, porque a esquerda não conseguiu resolver os problemas sociais”, observa.
As questões sociais foram prioridades da Amnistia Internacional (AI), em Portugal, na campanha eleitoral de 2024. Consciente dos avanços significativos em matéria de direitos humanos após a revolução e preocupada com o futuro, a AI emitiu recomendações a todos os partidos políticos, que incluíam a educação, o sistema de saúde e a habitação. “Os temas que realmente nos preocupam: a utilização de migrantes e refugiados como bodes expiatórios para assustar a população e ganhar votos”, especifica Pedro André Neto, diretor-executivo da AI em Portugal, considerando: “O racismo existe. Muitas vezes, manifesta-se de forma muito informal, em conversas de café ou nas redes sociais, onde as pessoas falam mal, só por falar. A diferença do Chega é que ele capitalizou esse racismo para torná-lo um discurso oficial. Normalizou este tipo de discurso, que é completamente desrespeitoso.”
Porém, o historiador e professor Ricardo Noronha, da Universidade Nova de Lisboa, sustenta que “a noção ampla de democracia, enquanto conjunto de direitos individuais e coletivos, não está ameaçada pelo facto de a extrema-direita ter conseguido 18% dos votos, nas últimas eleições”.
Entretanto, a Comissão do 25 de Abril está a desenvolver esforços significativos para envolver todos os grupos etários neste ato de memória, especialmente os jovens. “Lançámos campanhas nas redes sociais, muito seguidas pelos jovens, como a #NãoPodias, que enumera 13 proibições e restrições anteriores à revolução, como a impossibilidade de votar livremente ou de se organizar politicamente”, explica comissária executiva Maria Inácia Rezola, e professora de História.
Tais iniciativas visam sensibilizar para as liberdades que hoje são um dado adquirido e que outrora eram inatingíveis. “A liberdade é como a saúde: só nos apercebemos da sua importância quando começamos a perdê-la”, diz Vasco Lourenço, admitindo como natural que quem nasceu em liberdade não questione o seu estado. Porém, os cidadãos jamais aceitariam viver sem liberdade. No entanto, temos de nos manter vigilantes, pois a História é cíclica e não podemos permitir que a liberdade volte a ser ameaçada. Segundo Arnaldo Silva, “a juventude portuguesa continua alerta e não deixará que as ambições políticas, económicas ou militares se sobreponham às suas liberdades e ideais”. E Ricardo Noronha confirma o interesse evidente dos jovens por este período histórico: “Quando visitamos escolas […], o entusiasmo dos alunos é palpável. Ao contrário do que se espera, eles ficam atentos, fazem perguntas e compartilham seus pensamentos, às vezes influenciados por narrativas familiares da época”, observa.
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Não há de democracias perfeitas. E, registando-se ainda tantas falhas, a atitude correta não é hostilizar ou desvalorizar o 25 de Abril e deslocar o acento para outras datas, por importantes que sejam. É preciso continuar a pedagogia e antropagogia das liberdades, mobilizar as escolas, os trabalhadores, as empresas e os agentes da ação social e cultural para a batalha permanente da democracia política, económica, social e cultural – nas linhas da produtividade e da solidariedade. A democracia tem falhas em todos os países democráticos, mas os seus cravos, vermelhos e brancos, não podem murchar. Está em causa a dignidade humana!
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29/04/2024