A democracia é masoquista

 A democracia é masoquista

Protestos, no dia 14 de novembro de 2012, em frente do Palácio de São Bento, sede da Assembleia da República, em Lisboa. (pt.wikipedia.org)

Cada sistema político tem processos que asseguram uma governação estável ou, se formos mais cínicos, que garantem a continuidade das forças que estão no poder. Por exemplo, as cerimónias e tradições seguidas quando um monarca é coroado no Reino Unido não servem para divertir os fãs da família real, mas, sim, para dar garantias de que o país mantém uma estabilidade que dura há séculos. Desde que a governação continue de maneira ininterrupta, quem é o rei ou a rainha é uma mera formalidade. Contudo, teimosa e obstinada na hora de oferecer liberdades a todos os cidadãos, a democracia opta por outra maneira de fazer as coisas.

(Créditos fotográficos: Marco Dias Roque)

Ao contrário de outros sistemas políticos, em democracia, é legal legitimar forças interessadas em destruir o sistema para proveito próprio. Um tirano faz tudo o que pode para manter-se no poder. Um rei aceita o poder como um direito genealógico. Nenhum permite que um cidadão questione o sistema. Apesar disso, a democracia diz: “Olá, bem-vindos à terra da liberdade, destruam à vontade!” Ou seja, a democracia é masoquista. Assumir a liberdade de expressão como um direito básico significa que qualquer pessoa – incluindo os que a odeiam e veem oportunidades para aproveitar-se – pode participar no sistema democrático. Para um sistema laico, é um sentimento quase cristão. Quem tenta limitar direitos ou impingir racismos dá uma chapada na cara da liberdade. A democracia recebe a chapada e dá a outra face. Afinal, o povo é quem mais ordena. Muitas vezes, é só um tapa, sem deixar marca. Noutros casos, faz mossa. O nível do dano depende dos três vértices do sistema: as instituições que governam um país, o poder (e quem o controla) e, claro, quem vota.

As instituições são os braços do sistema, operando dentro dos limites das leis e do equilíbrio de poderes. O sistema judicial deve tratar todos os cidadãos de maneira igual, os poderes executivos funcionam segundo as leis definidas pelo parlamento, delimitadas pela Constituição. Quando as instituições fazem bem o seu trabalho, a sociedade vive de maneira mais justa, embora nem todos estejam contentes. Alguns pensarão que as instituições não fazem o suficiente (“Como é possível que a polícia deixe isto acontecer?”), outros que fazem demasiado (“Caraças, tenho de pagar mais taxas?!”). Apesar disso, enquanto as instituições forem imparciais, temos uma sociedade em que todos seguem as mesmas regras. Mal ou bem, estamos todos no mesmo barco. Quando as instituições começam a tratar cidadãos de maneira diferente, a confiança da sociedade no sistema diminui.

(Créditos fotográficos: Fred Moon – Unsplash)

Quem está no poder define como trabalham estas instituições. Uma eleição não é mais do que um confronto entre perspetivas sobre como deve funcionar um país. Para ganhar eleições e assumir (ou manter) o poder, os políticos prometem tudo o que podem. Vão descer impostos, vão ser mais fortes contra a imigração, vão liberalizar tudo. Anos depois, mudam os atores, revertem-se as decisões e o processo recomeça. Um puxa-empurra nos processos que movem o dia a dia. Normalmente, pequenos ajustes, que têm por tendência enriquecer quem está perto do poder e influencia as decisões. Por isso, quem governa faz o que pode para manter-se no poleiro e, quem está fora, faz tudo o que pode para governar. É pena que, muitas vezes, o caminho mais fácil à governação seja o do populismo: dizer o que as pessoas querem ouvir e repetir facilmente, mesmo que o conteúdo tenha pouca lógica ou que apele aos piores sentimentos da Humanidade. E as pessoas, sem quererem ver o preço que acabarão por pagar, optam por acreditar.

Quem vota vive entre estes dois mundos: instituições com as quais concordam (ou não) e políticos que lhes dizem o querem ouvir (ou não). Vivemos todos cansados: do trabalho, das contas, dos impostos, deste mundo louco em que vivemos. Quando estamos cansados, é fácil escolher o caminho mais simples: seguir o que se ouve e não pensar muito nisso. É nesse momento que a democracia morre. Se as pessoas vão na cantiga de quem lhes promete, de maneira vaga, que com eles será tudo diferente e que vão limpar o sistema, já estão a perder. Assim que o populismo entra num parlamento e começa a vergar as instituições aos seus desejos, frequentemente, limitando direitos e liberdades, fica cada vez difícil votar. Quando o poder incita as instituições a tratar pessoas como sendo de categorias diferentes, a democracia sofre. Entre populismos e extremismos, vai sobrevivendo a ataques internos. Por agora.

A solução para derrotar estes ataques está nas pessoas. Mas elas são também o problema – porque escolhem colocar no poder quem não tem o mínimo interesse em melhorar as coisas. Quando caem em falinhas mansas e apoiam quem quer destruir a democracia, abrem a porta a quem ataca a liberdade. Não consigo entender estas opções, mas o facto é que, nas últimas eleições, representaram uma boa percentagem de votos. Por isso, temos de reconhecer que algo não vai bem com o sistema, antes que seja tarde demais. Por agora, ainda é o povo quem mais ordena – nem que seja de maneira masoquista.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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11/04/2024

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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