A desportivite não mata mas mói

 A desportivite não mata mas mói

(© Marco Dias Roque)

Tenho o cuidado de escrever este artigo depois de o Benfica ter sido campeão nacional de futebol, porque – embora a lógica diga que não – nunca se sabe se as nossas palavras e ações influenciam eventos desportivos. O meu cérebro sabe que nenhum fã tem impacto no sucesso desportivo de um clube, mas o meu coração sofre de uma triste maleita: a “desportivite”, cujos sintomas também já terão sofrido ou visto. Mau-humor quando o nosso clube perde, gritos em frente de um televisor, lágrimas perante o sucesso (ou o fracasso) de pessoas que nunca vimos, preces e rituais com os quais tentamos contribuir para a sua (nossa) vitória. É uma doença em que falta razão, com fortes raízes emocionais.

(Créditos fotográficos: Jannik Skoma – Unsplash)

A desportivite está baseada em emoção pura ou em algum vestígio de tempos tribais, em que, por definição, os parecidos são bons e os desconhecidos maus. Pouco mudou. Se enchemos uma sala de gente, dando t-shirts vermelhas a metade das pessoas e azuis às restantes, é fácil criar uma divisão artificial e dois grupos a partir do nada. O apego a equipas desportivas é esta lógica levada ao extremo: criamos ligações entre símbolos e a nossa própria identidade. Quem segue os mesmos símbolos é correto, quem escolhe outros não. Não é por acaso que o futebol é uma “religião”. Além da questão tribal, a desportivite também nos permite ter momentos de prazer e de glória, sem nenhum esforço, bem como viver sucessos através dos outros. Saltamos de alegria quando se marca um golo, choramos quando se falha. A frustração é, se calhar, ainda maior do que se estivéssemos nós em campo.

O impacto da doença não se limita ao estádio. Uma vez que, no futebol, se joga duas ou três vezes por semana, sem contar com as pausas nem com os meses de verão, é preciso ocupar o tempo. Portanto, um sofredor tem de ser não só jogador, mas também treinar e administrar o clube. Apoiado por três jornais desportivos que se veem obrigados a criar conteúdo, mesmo quando não há notícias, o sofredor, fora da temporada, compra e vende jogadores, discute e compara qualidades de quem nunca viu jogar, cria onzes iniciais que levarão o seu clube à vitória. Quando salta um alerta sobre a contratação de uma peça instrumental em que “as próximas horas serão decisivas”, a desportivite ataca e roem-se muitas unhas. Estas ações ajudam-nos a evitar pensar na vida, a reduzir o stress, a viver noutro plano. O problema, como tantos outros, é que há pessoas que se aproveitam destes sentimentos.

(Créditos fotográficos: Janson Charters – Unsplash)

Tempos houve em que, de verdade, havia uma ligação direta entre o sofredor e o clube. Sem Internet (ou sem televisão), via-se o clube da terra, os jogadores eram pessoas conhecidas, colegas do dia a dia. O negócio mudou tudo. Um estádio que, antes, era o ponto de encontro da tribo torna-se um símbolo de compra e de venda, onde nem o nome é sagrado. O bom sofredor, claro, celebra o bom negócio no naming que converte o estádio numa publicidade para uma marca de colchões. Os jogadores passam de pessoas a moedas, nada mais que um “ativo” que existe nem sempre para ganhar, mas sim para valorizar.

É engraçado observarmos como é fácil esquecer que a motivação de uma empresa é fazer dinheiro e nada mais. Empresas desportivas governadas, como as outras, por pessoas interessadas no seu próprio lucro e que se levam demasiado a sério. Pegam nas notícias-rumor para fazer “comunicados” desmentindo compras e vendas, enviam faxes, ameaçam com advogados. Entre clube, adeptos e comentadores, fecha-se o círculo vicioso. Os jogadores nem contam. Se não jogam bem é porque não “têm garra”. Se se vão embora por mais dinheiro (algo que faríamos todos), “não souberam respeitar a mística do clube nem o manto sagrado”. É indiferente, para o ano sofremos outra vez por quem estiver vestido com as nossas cores.

(Créditos fotográficos: Jimmy Conover – Unsplash)

Isto porque, mesmo entendendo estas coisas de um ponto de vista lógico, a emoção ganha sempre. A desportivite pode ser controlada, mas a recaída nunca anda muito longe. Deixamos de seguir as notícias, não vemos os jogos, mas lá chega um momento em que escutamos que só precisam de uma vitória para ganhar o campeonato ou para chegar à final. Começamos a prestar atenção e, quando damos por ela, lá estamos outra vez como o coração a bater e com os nervos à flor da pele. Embora não estejamos em campo, continuamos com os nossos rituais. Assim, quando o jogo acaba, ganhando ou perdendo, pelo menos, sentimos que fizemos a nossa parte.

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03/07/2023

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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