A eterna fadista: Maria Severa Onofriana (1846)
Mouraria, Lisboa – 1844
Um homem rufia, semicoberto pela escuridão da noite, espreita na esquina de uma viela.
Longas horas têm as noites da Mouraria. As ruas estão desertas de gente descoberta, mas ocupadas de sombras deslizantes que observam a cada esquina.
Taberna. Há um ambiente de excessos. De cabelo escuro comprido, brincos de argola grandes e corpo esbelto, a Severa, de 24 anos, canta um fado, acompanhada de um guitarrista.
Na taberna, quebra-se o silêncio da noite. Canta-se e bate-se o fado, jorra o vinho pelas gargantas e provocam-se as meretrizes.
Bater o fado, ou o fado batido, era uma espécie de dança com dois ou mais intérpretes. Enquanto os demais permaneciam fixos (provavelmente, batendo com o calcanhar no chão), um aproximava-se (também com o ritual do batimento com o pé no chão) e golpeava coxa na coxa. Esta coreografia lasciva, supostamente inspirada em danças afro-brasileiras, era normalmente executada por homens debaixo do efeito do álcool, mas também pelas mulheres que frequentavam as tabernas.
Acabado o fado, a Severa dirige-se para a porta de saída, ouvindo diversos piropos dos clientes.
Mas para ti, Severa, nesta noite, o fado já acabou. Vais para casa. Amanhã será outro dia, na certeza de que irá ser preenchido e intenso como todos até hoje.
Mouraria à noite. Severa sai da taberna e caminha em direção a casa.
O vulto que estava a espreitar surge, repentinamente, e agarra um braço da Severa. Esta tenta desembaraçar-se com insistência, mas sem sucesso.
(ouvir)
O homem arrasta a Severa para outra viela.
Não tens medo da noite nem da Mouraria, porque a ambas pertences. Mesmo assim, há perigos imprevistos.
Nunca viste este rufia. Da Mouraria não é, pois todos conheces. Será de Alfama, do Bairro Alto, da Madragoa? Ou de outro lugar?
Gritas um impropério ao homem. Resistes. Mas ele leva-te, à força, para a outra viela.
Alguém está a ajudar-te. É um jovem embarcadiço. Também não sabes quem é.
Podes não saber quem são, mas tens a certeza de que todos te conhecem, porque tu és a fadista mais famosa de Lisboa: és a Severa!
Perante a ameaça do jovem, o homem larga a Severa.
O embarcadiço pergunta à Severa se ela está bem. Ato contínuo, a Severa profere um grito de alerta. O jovem vira-se, mas já não impede que o homem lhe desfira um profundo golpe de navalha nas costas.
(ouvir)
Mesmo assim, o jovem conseguiu lançar um duro murro na boca do agressor, que lhe partiu alguns dentes.
Assim é neste tempo! Onde há fado, há mestres da navalha e todo o tipo de gente da má vida.
Os dois caem no chão: o jovem, já moribundo, esvaindo-se em sangue, e o homem, atordoado e com dores devido ao golpe que sofreu na boca.
Saem várias pessoas da taberna.
Por qualquer razão, seja de honra ou mesquinha, a brisa da morte sopra constantemente nesta colina. E nas outras também. Quando a Guarda Municipal chegar, apenas irá confirmar o óbito do jovem e levar o rufia maltratado para uma cela.
Assim é a vida por estes lados. Boémia, triste e fatídica sina. Vida assim, como a canta o fado.
Mouraria, Lisboa – 1842
Casa da Severa. A fadista canta, ao mesmo tempo que toca guitarra para um cliente burguês.
Terminado o fado, os dois enlaçam os corpos, despem-se e caem na cama.
És jovem, bonita, sensual e cantas o fado como ninguém, Severa. Mas não te pagam para cantares, mas sim para venderes o calor do teu corpo.
A Severa e o cliente fazem sexo na cama. Na sequência do ato, o homem levanta-se, veste-se e deixa dinheiro.
Nada que te seja estranho, Severa. Desde criança, assistias ao mesmo desempenho da tua mãe, a Barbuda, assim alcunhada por ter um relevante bigode.
Dizem que por cada fado que cantas, em tua casa, com um homem te deitas. Mas, o certo é que não cantas para todos.
Pela tua essência, tanto terna e sedutora, como altiva e brusca, despertas paixões.
E, como se não bastasse, com o fado que cantas, com essa voz de timbre claro e de meio-soprano, provocas desvarios.
São tantos os homens bem-compostos de Lisboa que sobem, sub-reptícios, as calçadas da Mouraria para te conhecerem, Severa!
Junto à casa da Severa. Um homem, de condição humilde, está encostado à parede. É o Chico do Alegrete, amante da Severa.
O homem que esteve com a Severa prossegue o seu caminho nas ruas da Mouraria.
O Chico do Alegrete avança para a casa da Severa e entra.
Contigo, o fado vai viajar dos bairros de má fama até entrar nos palácios.
Mas a tua vida não vai mudar. Serás sempre a Severa, fadista de sentimento profundo e meretriz de profissão.
Casa da Severa. Sentada numa cadeira, a Severa fuma calmamente. Sorri para o amante e estica-lhe um cigarro. O Chico do Alegrete aproxima-se, pega no cigarro, sorri e senta-se ao lado dela.
Isso não te impedirá de teres sucessivos amantes, sem alterares a tua rotina de mulher. Por agora, o homem a quem tu abres a porta sem ter de pagar é o Chico do Alegrete.
Café. A Severa canta num espaço perto do Campo de Santana, a antiga praça de touros. Terminada atuação, é efusivamente aplaudida.
Canta Severa, canta o fado como só tu sabes. Liberta as entranhas da tua alma e escoa os sentimentos pelo sopro da tua poderosa voz. Estás a impressionar os homens da lide: forcados, toureiros e cavaleiros.
Com um sorriso conquistador, o Conde de Vimioso levanta-se e dirige-se à Severa para se apresentar. Ela reage com um sorriso, enquanto acende um cigarro.
E de todos eles, há um que está disposto a seguir-te para todo o lado. Ele vai apresentar-se. É o Conde de Vimioso, cavaleiro proeminente nas touradas portuguesas, conhecido sedutor e boémio lisboeta.
Ruas de Lisboa. O Conde de Vimioso e a Severa estão montados no mesmo cavalo. Seguem, a passo do animal, pelas artérias da cidade. Conversam animados.
De todos os homens que conheceste, este é o de estatuto mais elevado. O Conde de Vimioso é falado pelas bocas da cidade, as de boa e as de má fama, pela arte de tourear a cavalo e pelas arrebatadas paixões fora do casamento.
O passado e o presente amoroso do conde não te incomodam, Severa. Afinal, não é muito distinto do teu. Ele está a seduzir-te com todo o primor que sabe, porque se enamorou de ti. E tu estás a deixar-te fascinar, porque também o aprecias. Enquanto assim for, a vida é bela e perfeita.
A vossa relação há de ser falada em cafés, tabernas, touradas e palácios. A bela fadista, jovem de intimidades alargadas, enfeitiçou o mais marialva da cidade.
Casa da Severa. A fadista canta e toca guitarra para o Conde de Vimioso.
Tens um novo amante, Severa. O Chico do Alegrete foi trocado pelo homem que agora te abre o coração. É rico, fidalgo, cavaleiro e jeitoso. O resto ainda não sabes…
E tu, Chico do Alegrete, dizem que és o rufia mais generoso da Mouraria. Por isso, a Severa gostava de ti. Mas, agora, foste enjeitado pela encantadora fadista, a mulher da tua vida e a de muitos outros. Sabes que o destino, tantas vezes cantado pela Severa, é assim: cruel para uns, luminoso para outros. Sofres, todos sabem isso, mas és contido.
Por várias vezes, és instigado pelos teus amigos para “fazer uma espera” ao Conde de Vimioso. É simples, tu sabes. Só tens de executar o que todos estão a imaginar: uma ou duas navalhadas são suficientes para o janota não mais pisar as pedras da Mouraria. Até porque, dizem, é cobarde. Mas tu, Chico do Alegrete, sabes que se fizeres tal atrocidade, a Severa nunca te perdoará. E então, sim, perdê-la-ás para sempre, até como amiga. E, como tu entendes bem, se todos querem ter a Severa nos seus braços ou nas suas boas graças, ninguém a quer ter como inimiga, porque a rapariga vira os fígados ao contrário, seja a um homem ou a uma mulher.
Praça de touros. A Severa está a contemplar a tourada. Foi convidada pelo Conde de Vimioso.
É sabido que os fadistas são apreciadores da tourada.
Pelo teu meio, Severa, e principalmente pela mão do Conde de Vimioso, as entradas na festa brava abrem-se de par em par, tal qual se destrancam as portas dos touros para a arena.
Aqui, os teus aplausos têm a mesma vibração dos sons saídos das mãos de aristocratas, burgueses e anónimos. Mas a tua aclamação é mais efusiva quando entra o teu prezado cavaleiro, o Conde de Vimioso.
Irradias alegria, Severa, mais do que todos os aficionados da praça. Porque mais do que o êxtase contagiante do povo, o teu amado é o foco de todas as atenções. Tu estás com ele, tu estás por ele!
Triunfo! O Conde de Vimioso sai da arena em apoteose. E o touro, animal apurado para estas lides, está stressado, confuso e cansado. Mas ainda vai ter de enfrentar os forcados, esses destemidos voluntários que a troco levam nada. Claro que quase todos esses homens têm a sua Severa, a quem dedicam a valentia e recebem mimosos incentivos.
Palácio. O Conde de Vimioso dá uma festa no seu solar. Estão presentes várias dezenas de pessoas, entre aristocratas, burgueses e jornalistas. A Severa foi convidada pelo conde para mostrar o fado, a nova moda de Lisboa.
Apesar do muito falatório, fora e dentro da família, o Conde de Vimioso não esconde que tu, Severa, és a sua amante preferida. Estás no palácio do fidalgo, a seu convite, para mostrares à sociedade de Lisboa como o fado geme da tua boca e como fazes a guitarra bradar lamentos.
A Severa, como sempre, está vestida de forma simples e sem pintura nos lábios e nos olhos. No jardim do palácio, senta-se numa cadeira e apoia a guitarra na perna direita que está em cima de uma almofada.
Quase todos já ouviram falar de ti, mas nunca escutaram a tua voz perfeita, que dizem ser meio-soprano, nem o jeito sentido e profundo com que cantas. Canta, Severa, canta o fado como só tu sabes!
Mas não ficas indiferente a tantos olhares fixos em ti, como se fosses um animal raro acabado de chegar de África. Estás desconfortável e, por mais que te esforces, não consegues disfarçar. Sentes que olham para a tua condição e não para o teu talento. Não pertences a esta gente, mas o teu orgulho não te permite vacilar. Cantarás até ao fim.
Taberna. Um fadista canta, acompanhado à guitarra. A Severa e o Conde de Vimioso estão sentados numa mesa, com um jarro de vinho e dois copos. Ela está triste e calada, ao contrário do que é habitual.
Nesta taberna imunda, frequentada por almas impuras, canta-se o fado e outros infortúnios do destino. É nesta vida encerrada que respira a tua liberdade, Severa. Mas, aos poucos, o teu amor pelo Conde de Vimioso está a converter-se numa agonia. O teu aperaltado amante está cada vez mais possessivo e ciumento. Ele não te dá meios para te retirares da vida de libertinagem, mas também não suporta que sorrias a quem te arremessa piropos.
Uma vez por outra, um dos clientes da taberna sorri para a Severa e lança-lhe um piropo, como sempre acontece. O Conde de Vimioso apercebe-se e fica furioso.
Estás tão impedida de seres quem és como de mudares de vida, Severa.
O Conde de Vimioso olha-te como se fosses propriedade sua, mais um cavalo ou égua dos muitos que ele tem. E mais uma vez, ele levanta a mão para soltar uma bofetada, o sinal de quem é dono.
Mas desta vez, o Chico do Alegrete, que várias vezes viu seres humilhada pelo Conde de Vimioso, adverte-o: “Se voltar a agredir a Severa…!”
O Conde de Vimioso está surpreendido, porque ninguém ousara fazer-lhe afronta. O Chico do Alegrete vai mais longe nas palavras. Diz ao Conde de Vimioso que se ele te maltratar, Severa, terá de se haver com ele.
Olhas elevada para o Conde de Vimioso como se fosse a última vez. Sabes que tens quem te proteja para te libertares de um amor que, a seu tempo, foi uma quimera, mas que agora é sombrio e ríspido.
Enfurecido, mas acobardado, o Conde de Vimioso abandona a taberna e a tua vida, Severa.
Rua da Mouraria. O Chico do Alegrete está encostado a uma parede. Com a navalha afia um pau.
Por agora, Portugal está calmo. Mas, em anos anteriores, o que mais houve foram tumultos, golpes de estado e guerra.
Tu, Chico do Alegrete, um humilde rufia da Mouraria, em 1832, foste recrutado à força para a guerra civil, por ambos os beligerantes: os liberais e os absolutistas.
Não tens vocação para militar nem sabes obedecer a ordens. Por isso, não compareceste à chamada. Foste desertor de ambos os exércitos.
O que se passou foram disputas de poder entre reis, príncipes, fidalgos e políticos. Mas tu, homem do povo, pouco te interessa isso.
Sabes, no entanto, que a guerra civil prolongou-se por dois anos e que os absolutistas, liderados por D. Miguel, foram derrotados.
Em 1807, a família real portuguesa fugiu para o Brasil devido às invasões francesas.
Na sequência de uma revolução, em 1820, foi instaurado em Portugal o regime liberal.
Um ano depois da revolução, o rei de Portugal D. João VI e a sua corte regressaram a Lisboa. No Brasil, ficou o filho do monarca, D. Pedro, como príncipe regente, o qual, em 1822, há de proclamar a independência da colónia.
No mesmo ano de 1822, D. João VI jurou a Constituição Liberal, a primeira lei fundamental portuguesa.
Seguiram-se duas intentonas de golpe de estado pelos absolutistas de D. Miguel, ambas derrotadas pelas forças liberais.
(ouvir)
Com a morte de D. João VI, o sucessor ao trono de Portugal era D. Pedro, que, entretanto, foi proclamado Imperador do Brasil.
D. Pedro abdica do trono a favor da filha menor D. Maria, na condição de esta vir a casar com o tio, D. Miguel.
Em 1828, D. Miguel regressou do exílio e foi aclamado rei de Portugal. Era a antecâmara para a guerra civil de 1832-34.
Um dos episódios marcantes deste período foi o desembarque do exército liberal no Mindelo, em 1832.
Após diversos confrontos, D. Miguel acabaria por capitular, em 1834, e foi, definitivamente, exilado.
D. Maria II foi aclamada rainha de Portugal, em 1834, mas nem por isso o país viveu dias mais calmos.
Dois anos depois, uma revolução restabeleceu a Constituição de 1822, em detrimento da Carta Constitucional de 1826.
(ouvir)
Seguiu-se um novo golpe de estado, em 1842, desta vez liderado por Costa Cabral, com o objetivo de restaurar a Carta Constitucional.
Em 1846, deu-se uma revolta, conhecida por Maria da Fonte, que provocou a queda do governo de Costa Cabral e obrigou a exilar-se.
Mas Costa Cabral há de voltar a chefiar o governo, em 1849.
Aos 25 anos, és uma lenda do fado, Severa. Mas também das noites ocultas, do teu leito desdobrado em fingimentos de amor. Porque és afamada e formosa, és procurada por homens de várias condições, entre os quais por alguns que querem ficar encobertos para sempre. Dizem que entre esses vultos furtivos, sempre com a cara sumida da luz, encontravam-se cavalheiros ditos de boa sociedade, alguns deles oficiais de campo da família real.
De outro atributo também ficaste conhecida, Severa: seres íntegra de caráter. E quando te pedem para sepultares as identidades dos que te visitam, por ti ninguém saberá.
Isso para ti não foi problema, mas foi para um dramaturgo, uns anos mais tarde, depois da tua morte, quando pretendeu escrever uma peça de teatro sobre a tua vida. Teve tantas pressões e ameaças, devido ao risco de surgirem nomes intocáveis, que não escreveu uma linha.
O mais temido rufia de Alfama, de alcunha Janaz, fadista, mestre da navalha e autor de vários crimes, mandou-te um recado com a promessa: “Hei de apalpar uma mama à Severa”. Pela mesma pessoa, remeteste a tua mensagem, Severa. Mandaste dizer que se o Janaz cumprir a sua promessa, partes-lhe os dentes.
É sabido que tens língua afiada e pronta a disparar. Quando isso não é o bastante, usas o que tens à mão para quebrar a cabeça de quem te ultraja.
Ou porque o Janaz te seguiu ou porque foi casualidade, dás com ele de frente. Com um sorriso vadio que só os patifes sabem fazer com naturalidade, o Janaz aproxima-se de ti. Estás preparada, Severa. Imaginas que o rufia vai cumprir a sua promessa, ou não andaria a propagar aos quatro bairros do fado.
Aí está. O Janaz colou a sua mão no teu seio, Severa. E tu, rápida como um falcão, desferes um vigoroso murro na boca do rufia, que não teve tempo para se esgueirar.
O Janaz saca da navalha, como sempre faz quando é desafiado, mas é impedido por alguns homens justos que assistiram à cena.
Louvas o Janaz por ser homem de palavra, que cumpriu o que prometera. E o rufia também te elogia por seres mulher firme e destemida.
Doravante, o Janaz será teu admirador e amigo, até ser deportado para Angola, pelos variados crimes que cometeu.
Mouraria, Lisboa – 1846
Taberna. A Severa canta o fado numa taberna da Mouraria. Está com aspeto mais cansado e triste.
Estás com uma voz mais rouca, Severa, e um ar mais melancólico. Dizes que, às vezes, sentes tonturas e uma dor no lado esquerdo do peito. Será a sina fatal de uma pobre mulher e da desgraça. Assim cantas o fado nestes versos que, dizem, escreveste:
“Tenho a vida amargurada
Ai que destino infeliz!
Mas se sou tão desgraçada
Não fui eu que assim o quis!…
Quando eu morrer, raparigas,
Não tenham pesar algum!…
E ao som das vossas cantigas,
Lancem-me à vala comum!…”
Cantas a angústia da tua vida e pressentes que o fim está próximo. Nos teus versos, continuas a falar da morte, como se ela te segredasse que em breve te irá abraçar:
“Quando a morte me levar
Não há decerto faltar
Quem diga mal da Severa!
Pois neste mundo falaz
De tudo se é capaz
E só o mal se tolera!…
Lá na fria sepultura
Nessa cova tão escura
Irei enfim descansar?
Pressinto que em expiação
E, novamente ao baldão,
Aqui terei de voltar!…”
Apesar de estares fraca e de teres crises nervosas, devido à tua doença, não pares de cantar, Severa, porque é assim que as pessoas te vão recordar!
Doente, a Severa está deitada na cama. Ao lado, estão um médico e uma amiga. Deita sangue pela boca e pouco tempo depois morre.
Memórias.
Certidão de óbito:
“No dia 30 do mês de novembro de 1846, na Rua do Capelão, n.º 35 A, faleceu apoplética, sem sacramentos, Maria Severa Honofriana, idade de 26 anos, solteira…”
Assento de óbito de Maria Severa Honofriana.
Registo do enterro:
“Cemitério Alto de S. João, Lisboa.
Nome: Maria Severa Honofriana
Idade: 26 anos
Estado: solteira; meretriz
Onde sepultada: vala comum
Faleceu de: congestão cerebral.”
Morreu a Severa, nasceu o mito. Foi inspiradora de livros, de fados, do teatro, da opereta e do cinema.
No espólio do pintor Francisco Metrass, depois da sua morte, encontrou-se um esboço de desenho, a tinta-da-china. No verso da folha tinha apenas esta nota: A Severa.
Desenho de Francisco Metrass anotado: “A Severa”
Cerca de 20 anos depois da morte da Severa, o dramaturgo Ernesto Biester estava decidido a escrever uma peça sobre a atribulada vida da fadista. Ao iniciar a pesquisa, depressa foi travado por certa elite moralista, que receava ver os seus nomes (ou dos seus antepassados) plasmados na obra.
Ernesto Biester foi de tal forma pressionado que desistiu de escrever a peça.
No entanto, o teatro haveria de ter uma Severa representada. Em 1901, Júlio Dantas publicou a peça “A Severa”, que se transformou num êxito teatral.
A obra, todavia, está recheada de ficções românticas ao gosto da época. Trata, com delicadeza, os maus costumes e troca o nome do Conde de Vimioso pelo de Marialva, que não existiu como conde, mas sim como marquês e que morreu, sem descendência, quando a Severa tinha três anos.
Também o escritor Júlio Dantas foi pressionado por familiares do Conde de Vimioso. Intercederam junto do primeiro-ministro de então, Hintze Ribeiro, para que o dramaturgo omitisse o verdadeiro nome do conde.
Mais tarde, a peça foi adaptada a romance por Júlio Dantas. A Severa também foi inspiração para a opereta e para o cinema. O filme, realizado por José Leitão de Barros, em 1930, assinalou a primeira película sonora portuguesa.
A Severa continua a ser musa de fadistas, porque os mitos são eternos.
Fado “Maria Severa”, cantado por Fernanda Maria (RTP, 1965):
16/05/2022