A gravata e o coração: o comboio e o rio

 A gravata e o coração: o comboio e o rio

(© VJS – sinalAberto)

Há alguns anos, Eduardo Lourenço foi homenageado no salão nobre da Câmara de Coimbra. Subiu à tribuna, olhou-nos e, com aquela voz que sempre achei o avesso do ditador, disse (cito de memória) que tinha acabado de chegar de comboio a Coimbra, “àquela estação que sempre me pareceu como uma gravata malposta, assim ao lado…” Todos rimos.

Pois bem, parece que vamos ter, finalmente, a oportunidade de pôr a gravata no sítio, que é como quem diz juntar o coração da Cidade ao pescoço-Norte, onde a gravata brilhe e nos orgulhe a todos.

A Câmara Municipal acaba de deliberar avançar com um plano de pormenor para a área circundante à futura estação intermodal, onde se preconiza a requalificação de todo o espaço entre a Avenida Fernão de Magalhães e a Rua do Padrão, a Sul, o Loreto a Norte, o vale de Coselhas e o Monte Formoso a Nascente e os campos do Bolão a Poente. 273 hectares de Cidade. Não é coisa pouca. A elaboração do plano tem o prazo de 24 meses e, segundo a vereadora Ana Bastos, comportará vários momentos de discussão pública.

(© VJS – sinalAberto)

E é aqui que a gravata se agita e reside a razão de me dirigir aos leitores do “sinalAberto”. A tradição de “discussão pública” dos planos urbanísticos é, em Coimbra, absolutamente lamentável. Afixam o edital, onde se prevê um prazo de 20 dias, passados os quais relatam que só foram “rececionadas” 17 sugestões e já está. É a visão minimal de quem acha que tudo sabe e não gosta dessa maçada de ouvir as pessoas.

Diretamente ligados a este Plano que agora se inicia, estão questões tão quentes como a travessia do Mondego pela rede de alta velocidade, a ligação viária entre o Almegue e a rede viária principal da Cidade, a criação de condições de mobilidade suave entre a Fernão de Magalhães (ou a marginal do Rio) e a nova Estação, o corredor verde entre o vale de Coselhas e o Choupal.

Por isso, estranho que, ao abrir o procedimento e antes de organizar a discussão, se esteja já a condicionar a mesma com referências opinativas à suposta indispensabilidade de uma nova travessia rodoviária do Mondego para ligar ao IC2. São referências a destempo e suscetíveis de inquinar toda a discussão que vier a haver.

(© VJS – sinalAberto)

Porquê?, perguntareis: porque os novos tempos são os de tirar automóveis das cidades, fazendo-os substituir por bons transportes coletivos. A partir de 2035, ninguém mais poderá comprar automóveis a gasolina ou a diesel. O açude-ponte pode ser liberto de muitos dos veículos que vêm da margem esquerda, se as pessoas de Santa Clara e de São Martinho tiverem boas alternativas.

Não quero desvalorizar a discussão, fazendo-a aqui. Tenho esperança de que a própria Câmara e a Assembleia Municipal organizem e dinamizem o debate e a participação, afixando os estudos existentes, convocando as pessoas para sessões de proximidade em que todos sintam que é útil participar.

A gravata pode ir para o sítio. Que todos sintamos que as novas soluções são também nossas, como nossa é a Cidade e Coimbra.

16/02/2023

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Jorge Gouveia Monteiro

Exerceu funções de direcção política no Partido Comunista Português. Foi vereador da Câmara Municipal de Coimbra, entre 1997 e 2009. Ajudou a fundar e a desenvolver múltiplas associações de moradores e culturais, bem como a Associação Grupo Gatos Urbanos. É coordenador da Direcção do Movimento Cidadãos por Coimbra (CpC) e sócio-gerente do bar e espaço cultural Liquidâmbar.

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