A guerra russo-ucraniana reforçou o antissemitismo
A 30 de dezembro e a 4 de janeiro, Pinchas Goldschmidt, ex-rabino-chefe de Moscovo, em duas entrevistas a órgãos de comunicação internacionais (respetivamente, ao jornal britânico The Guardian e à cadeia canadiana CBC Radio), apelou aos Judeus que se encontram na Rússia: a que “deixem o país enquanto é tempo”, pois aumentou o “antissemitismo governamental”.
Exilado, desde julho, em Jerusalém após recusar o apoio à invasão russa da Ucrânia, Pinchas Goldschmidt diz que “há antissemitismo em todos os lugares”, mas aponta a “grande diferença entre o que está a acontecer no Ocidente e o que está a acontecer na Rússia”. E exemplificou: “Vimos o governo a tentar fechar a Agência Judaica, que tem sido uma das organizações mais importantes na ajuda a Judeus russos com a educação informal e também com a imigração.” Depois, mencionou um ataque do Conselho de Segurança Nacional contra a Chabad, importante organização judaica na Rússia. E concluiu que, na Rússia, “estamos a assistir ao retorno do antissemitismo como política de governo.”
Expressando a sua visão do problema, declarou à cadeia canadiana CBC Radio, a 4 de janeiro: “Tenho observado, no último mês, uma mudança, uma grande mudança, nos rumos que o país tomou. O país passou de autoritário a mais totalitário. E a Cortina de Ferro, que subiu no fim da União Soviética, está a cair e a abaixar-se diariamente. O antissemitismo está de volta.”
Goldschmidt, atual presidente da Conferência Europeia de Rabinos, tinha já declarado, a 30 de dezembro, ao jornal britânico The Guardian: “Quando olhamos para a História da Rússia, sempre que o sistema político esteve em perigo, vimos o governo a tentar redirecionar a raiva e o descontentamento das massas para a comunidade judaica. Vimos isso nos tempos czaristas e no fim do regime estalinista.” E vincou: “Passo a passo, a Cortina de Ferro está a voltar novamente. É por isso que acredito que a melhor opção para os judeus russos é partir.”
O ex-rabino-chefe de Moscovo crê que, desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, a 24 de fevereiro de 2022, entre 25 e 30 por cento dos 165 mil judeus do país terão fugido ou planeiam fazê-lo.
No entanto, declarou à CBC Radio que já “é extremamente difícil para os judeus na Rússia deixar o país para ir para o Ocidente. Para sair, é difícil conseguir um visto. É difícil voar. É preciso voar através de um terceiro país. E tornou-se cada vez mais difícil obter vistos para cidadãos russos nos países ocidentais.” Questionado sobre se teme que estejam em risco as vidas dos judeus que permaneçam na Rússia, respondeu que “não iria tão longe”, mas está preocupado com a possibilidade de, talvez daqui a meio ano, não poderem já deixar o país.
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O antissemitismo é o preconceito, a hostilidade ou a discriminação contra os Judeus, embora não sejam o único povo semita. Também os árabes têm origem semita, tal como outros povos da antiguidade: Assírios, Babilónios, Arameus, Cananeus e Fenícios. Tido como um tipo de racismo, exprime-se de vários modos, desde expressões individuais de ódio e de discriminação contra indivíduos judeus até violentos ataques organizados (pogrons), políticas públicas ou ataques militares contra comunidades judaicas. Na modalidade mais extrema, atribui aos Judeus posição excecional entre as outras civilizações, tendo-os como grupo inferior e negando a sua pertença à(s) nação(ões) em que residem.
Entre os casos mais violentos de perseguição, estão a chacina de 1066, em Granada, os massacres na Renânia, prévios à Primeira Cruzada, de 1096, o édito de expulsão da Inglaterra, em 1290, os massacres dos judeus espanhóis, em 1391, as perseguições das inquisições espanhola e portuguesa, a expulsão da Espanha, em 1492, a expulsão de Portugal, em 1497, o massacre de Lisboa, em 1506, os massacres pelos Cossacos na Ucrânia de 1648 a 1657, pogrons no Império Russo entre 1821 e 1906, o caso Dreyfus em França (1894-1906) e o Holocausto na Alemanha Nazi, replicado pelo Estalinismo, segundo alguns, e o envolvimento árabe e muçulmano no êxodo judaico dos países árabes e muçulmanos.
Embora, etimologicamente, o antissemitismo pareça direcionado aos povos semitas, o termo foi criado nos fins do século XIX, na Alemanha, como alternativa, com aparência mais científica, à Judenhass (aversão a judeus), sendo utilizada amplamente desde então. E foi utilizado para expressar o ódio a outros povos falantes de idiomas semitas, mas tal utilização já não é aceite.
Ora, pela etimologia, antissemitismo quer dizer aversão aos semitas, descendentes bíblicos de Sem, o filho mais velho de Noé. E é o grupo étnico-linguístico que abrange os Hebreus. Porém, o termo antisemitismus foi cunhado, em Alemão, quando a ciência racial estava na moda, e foi usado, a primeira vez, no sentido de aversão aos judeus, pelo jornalista alemão Wilhem Marr, em 1873, por soar mais científico do que Judenhass. Alguns autores preferem o termo judeofobia, a significar “aversão a tudo o que é judaico”.
Para Helena Fein, estudiosa do Holocausto, o antissemitismo é: “[…] uma estrutura latente persistente de crenças hostis em relação aos judeus como um coletivo, manifestada em indivíduos como atitudes e na cultura como mito, ideologia, folclore e imagens, e em ações – discriminação legal ou social, mobilização política contra os judeus e violência coletiva ou estatal.”
Segundo Dietz Bering, para os antissemitas, os Judeus são “totalmente maus por natureza”, pelo que “os seus maus traços são incorrigíveis”. Portanto, são vistos não como indivíduos, mas como um coletivo; permanecem estranhos nas sociedades vizinhas; e trazem desastre às sociedades de acolhimento e ao Mundo. E, como o fazem em segredo, os antissemitas desmascaram o conspiratório e mau caráter judaico.
Para Sonja Weinberg, o antissemitismo de hoje mostra inovação conceitual, recorrendo à ciência, e novas formas funcionais e diferenças organizacionais. Foi antiliberal, racialista e nacionalista; criou o mito de que os judeus queriam “judificar” o Mundo; consolidou a identidade social; canalizou as insatisfações entre as vítimas do capitalismo; e serviu de código cultural para combater a emancipação e o liberalismo.
Bernard Lewis define o antissemitismo como forma de preconceito, de ódio ou de perseguição a pessoas, de alguma forma, diferentes das demais, marcada por duas caraterísticas: os Judeus são julgados segundo um padrão diferente do aplicado aos outros, e são acusados de mal cósmico.
Em 2005, o Observatório Europeu do Racismo e da Xenofobia (European Monitoring Centre on Racism and Xenophobia) desenvolveu a definição de que o antissemitismo é uma certa perceção dos Judeus, expressa como ódio para com eles. Dirigem-se manifestações retóricas e físicas do antissemitismo a indivíduos judeus ou não judeus e/ou à sua propriedade, a instituições comunitárias judaicas, a instalações religiosas e ao Estado de Israel, concebido como coletividade judaica. Porém, a crítica de Israel, semelhante à feita contra outros países, não é antissemita. Já, por exemplo, negar ao povo judeu o direito à autodeterminação, alegando que o Estado de Israel é um empreendimento racista, é uma manifestação de antissemitismo, tal como aplicar critérios duplos, exigindo de Israel um comportamento não esperado ou não exigido a outras nações democráticas, ou fazendo dos Judeus responsáveis pelas ações do Estado de Israel.
Esta definição, nunca oficializada, ganhou uso internacionalː foi adotada pelo Grupo de Trabalho do Parlamento Europeu sobre Antissemitismo, pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos da América (EUA), pela Campanha Contra o Antissemitismo e pela International Holocaust Remembrance Alliance, tornando-se a mais amplamente adotada de antissemitismo no Mundo.
Muitos fatores motivaram e fomentaram o antissemitismo, nomeadamente sociais, económicos, nacionais, políticos, raciais e religiosos, ou combinações de todos ou alguns destes. A ação de autoridades locais, de governantes e de funcionários da Igreja vetou muitas ocupações aos judeus, permitindo-lhes, no entanto, as atividades de coletores de impostos e emprestadores, o que sustenta as acusações de que os Judeus praticam a usura. Por outro lado, a religião Islâmica e os países árabes incitam manifestações contra a existência do Estado de Israel.
O mais antigo caso de manifestações de antissemitismo é o de Elefantina, ilha do Nilo, cerca de 410 a.C., onde egípcios revoltados contra o domínio persa queimaram o templo da comunidade judaica. Porém, os primeiros casos claros de antijudaísmo remontam ao século III a.C., em Alexandria, lar da maior comunidade da diáspora judaica à época. Manetão, sacerdote e historiador egípcio, escreveu mordazmente sobre os Judeus. Segundo os seus escritos, o antissemitismo ter-se-á originado no Egito e espalhado pela recontagem grega dos antigos preconceitos egípcios. Fílon descreve um ataque mortal aos judeus em Alexandria em 38 d.C.
O fenómeno perpassou todas as épocas históricas. E, no século XXI, aumentou o antissemitismo e as suas manifestações na Europa e no Mundo, o que foi sendo observado em diversos relatórios anuais do Departamento de Estado dos EUA e por outros governos, instituições, líderes mundiais e figuras públicas.
A Conferência da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) sobre antissemitismo, de abril de 2004, culminou com a Declaração de Berlim, segundo a qual o antissemitismo assumiu novas formas e expressões que, juntamente com outras formas de intolerância, ameaçam a democracia, os valores da civilização e, portanto, a segurança geral. Hoje, o antissemitismo é transversal à extrema-esquerda, à extrema-direita, aos moderados e aos islamitas, misturando a oposição a Israel, o sionismo e a aversão aos Judeus. E emprega motivos antissemitas tradicionais, como o libelo de sangue.
Robert L. Bernstein, fundador da Human Rights Watch, sustenta que o antissemitismo está profundamente enraizado e institucionalizado nos países árabes, nos tempos modernos.
Conforme a pesquisa realizada em 2011 pelo Pew Resarch Center, em todos os países de maioria muçulmana do Médio Oriente, havia poucas opiniões positivas sobre os Judeus. Os clérigos muçulmanos referem-se aos Judeus como descendentes de macacos e de porcos, epítetos para Judeus e Cristãos. Os Judeus em vários países da Europa estão em crescente fuga para Israel, dado o aumento constante do antissemitismo e dos ataques terroristas islâmicos. Mais de oito mil judeus deixaram a França, em 2015. Os judeus alemães e britânicos não se sentem seguros. Todas as sinagogas, creches e escolas judaicas na Alemanha estão sob proteção policial. A migração muçulmana para os países da Europa traz o antissemitismo das suas culturas e o apelo a ataques pelo ISIS (Islamic State of Iraq and Syria) aumentou o medo nas comunidades judaicas.
A pesquisa da União Europeia (UE) em 2013 revelou que 74% dos judeus franceses têm medo de ser atacados pela sua religião e evitam ser identificados. E, a 23 de março de 2018, Mireille Knoll de 85 anos, sobrevivente do Holocausto, foi assassinada no seu apartamento em Paris.
O antissemitismo nunca foi tão forte como na contemporaneidade: foi racionalizado para ser função exclusiva do Estado e nunca foi tão escondido. Atualmente, o Mundo tem uma conscientização coletiva sobre todos os tipos de preconceito existentes e o espaço para o antissemitismo ficou escasso e vergonhoso para quem o usa.
Os Judeus são comparados por Hitler a germes de doenças infeciosas transmissíveis, como os bacilos da tuberculose. Por isso, o antissemitismo, além das formas clássicas, apresenta, hoje, duas novas formas: a retroativa e a descaraterizada. A primeira, acusando o povo judeu de causar mal aos outros, cria um ambiente propício para desenvolver o ódio aos Judeus sem culpa; e a segunda acusa os Judeus de criarem a sua própria perseguição no Holocausto ou em outros eventos, com o propósito de dominar o mundo.
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Tem razão Pinchas Goldschmidt no apelo aos judeus russos, mas a judeofobia, como outras formas de racismo, está em todo o lado. E não se pode emigrar para a Lua ou para Marte. Resta a vigilância e o espírito combativo.
23.01.2023