“A invasão da Ucrânia pôs a encenação de Ajax na ordem do dia”
“Ajax, Regresso(s)”, de Jean-Pierre Sarrazac, é a primeira produção do Teatro da Rainha para o ano de 2023. Texto inédito, até à sua publicação recente pela companhia residente em Caldas da Rainha, será pela primeira vez levado à cena, que estreia hoje (16 de Março). Falámos com o encenador Fernando Mora Ramos sobre este espectáculo, bem como acerca dos problemas que levanta e dos desafios que coloca.
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Henrique Fialho (sinalAberto) – Comecemos por uma pergunta que se impõe: tratando-se “Ajax, regressos(s)” de um inédito de Jean-Pierre Sarrazac, como e quando é que ele te chegou às mãos?
Fernando Mora Ramos – Foi na primeira década de 2000 que o texto me entrou no e-mail, lá para o fim desses dez anos. Era uma prática, essa cumplicidade. Eu conhecia os textos antes da edição. Nem sempre, mas, a partir de 1984, muitas vezes. Também os ensaios teóricos – os franceses ouvem-se uns aos outros, formam colectivos informais nestas andanças.
Trabalho peças do Sarrazac desde 1984 e realizámos inúmeros actos conjuntos: a primeira Oficina de Escrita Teatral, em Évora, a meio da década de 90 (ninguém sabia o que eram); “O lavrador da Boémia”, que ele encenou comigo a fazer o Lavrador; uma oficina pioneira na Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), em Moçambique; a maratona das Formas Breves no Teatro Nacional São João (TNSJ), etc. Em 1985, iniciou connosco os ensaios de “Menino-Rei”, com tradução da Eduarda Dionísio, no que hoje se chamaria uma oficina de interpretação e dramaturgia, um workshop como dizem aí, sem velocidade vertiginosa, com tempo.
No Porto, em 1984, com a Cena (depois, Companhia de Teatro de Braga), fizemos “Lázaro, também ele sonhava com o Eldorado”(com tradução da Regina Guimarães) – a partir do “Lazarillo de Tormes” – que, muito mais tarde, pudeste ver aqui, no Parque. Aliás, fizeste um emigrante de viagem pela meseta, perdido no trajecto, como outros, como acontece a quem tenta uma vida melhor em paragens hostis – a integração é uma treta, a inclusão uma falsidade.
E levar esta peça à cena foi uma vontade que se impôs logo de início ou cresceu com o tempo?
Como me acontece, desde que faço escolhas, foi a primeira impressão que me impôs o desejo de fazer. Acontece-me mais com os textos do que com pessoas (as muitas, não as outras), a vontade de ir fundo.
O tempo, o que traz? A evidência de uma urgência. A invasão da Ucrânia pôs a encenação de Ajax na ordem do dia, como costumávamos dizer no PREC, quando as urgências eram a forma de inventar outro mundo.
“Ajax, Regresso(s)” é uma extraordinária reflexão acerca do ódio ao outro, das consequências de olhar a tribo nacional – a sua, a nossa – como única, nação escolhida por um destino superior que um dia vira “grande nação”, império. O conflito entre nações, interétnico e os projectos de limpeza étnica e raciais ocorreram e ocorrem, como vimos e vemos na História, desde o holocausto índio – que continua(va) até há pouco no Brasil bolsonarista – ao holocausto judeu e por aí fora.
Os vários colonialismos praticaram morticínios infindáveis – entre nós, o massacre de Pidjiguiti, no porto de Bissau, e mais tarde no norte de Moçambique, em Wiriyamu. E, depois, o que aconteceu nas mais diversas guerras civis, da guerra civil de Espanha às guerras civis angolana e moçambicana, foram chacinas constantes, baseadas em conflitos de natureza imperial, raciais e interétnicos – os imperialismos sempre exploraram as divisões étnicas e os tribalismos também tentaram impérios locais, contra outros – os outros, sempre.
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Estamos, então, perante um teatro reflexivo?
Quando refiro reflexão, a forma dramática oratória não é um acaso, como se fosse a forma ideal de um luto necessário que temos de enfrentar/realizar, quando temos pela frente esta desumanidade organizada, industriada – não fugindo aos problemas. Permite a interiorização e a superação do trauma pela reparação, o regresso ao dealbar de um novo possível, depois da vivência mediada pela arte – vivida é outra coisa – do que é desumano, o que a arte deve arriscar como forma e tratamento formal, reconstrução artística, invenção, exposição das verdades na sua crueza e processos, desmontar da mentira, das propagandas, das máscaras.
Esse luto, essa compreensão doída do que a catástrofe contém como negação do humano, relança a possibilidade de um mundo que enterre a grande violência guerreira, apocalíptica, mesmo que lenta, como memória definitiva. A mim, interessam-me as formas dramáticas como experimentação, como algo que o palco redescobre no jogo dos intérpretes sem nenhuma receita aplicável. Isso explica que faça Martin Crimp, Georg Tabori, Joseph Danan e Jean-Pierre Sarrazac, também Samuel Beckett.
Referiste, algures, que este texto foi inspirado nos acontecimentos e nas tramas interétnicas da guerra da Bósnia. É esse conflito, em particular, que ressoa ou, por outro lado, a guerra – enquanto tópico nesta peça – assume um estatuto universal no tempo e no espaço?
Uma coisa e outra são indissolúveis. São todas as guerras e a da Bósnia. E é a da Ucrânia. As especificidades geográficas e as razões mais particulares de um conflito deste tipo não apagam a sua característica geral, lamentavelmente universal, própria dos humanos, mais predadores do que os predadores da cadeia natural da predação, justamente porque estudam e preparam o massacre. A guerra tem escolas, é ensinada de geração em geração. É uma técnica e um comando. Um projecto nacional, imperial, começa como suposta e legítima autodefesa, como “raça”, e continua no imperialismo.
O massacre é sinalizado desde há muito. Quando fizemos, eu e o João Cardoso, da companhia Assédio Teatro, “A morte do dia de hoje”, de Howard Barker – era já o “teatro da catástrofe” em abordagem. Isto é, os acontecimentos narrados e cenificados (ficcionados para o palco) já depois do grande desastre, pós-drama – tive de estudar a batalha de Siracusa entre Atenas e Esparta e os seus aliados.
Nessa batalha da Guerra do Peloponeso, referida por Tucídides, o começo de uma história crónica superando a apologia, o mais interessante ou mais chocante é que, após a destruição da armada ateniense, se torna presa fácil da armadilha da baía de Siracusa. Os afogados faziam um chão de afogados, à tona do mar em que se poderia andar, tantos eram, como na pesca do atum. Os atenienses tinham sido perseguidos até ao extermínio, depois de a sua derrota ser evidente.
A descrição das pedreiras, ponto de fuga das tropas de Atenas em terra, as suas altas temperaturas, explica bem como foi inventado o forno crematório para os ainda vivos: ao mesmo tempo que o sol escaldante incidia, sem nenhuma sombra, as setas, as lanças, as pedras e outros arremessos iam massacrando os atingidos numa tortura dupla. Lembra já a estratégia concentracionária, a morte industrial.
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“Ajax, Regresso(s)” foi, entretanto, editado em livro na colecção de livros do Teatro da Rainha, em parceria com a Companhia das Ilhas. No prefácio, citas o autor. Diz ele: «[…] considero a peça […] didáctica sem aparelho didáctico, como uma peça em que o didáctico está inteiramente fundido com o íntimo.» Que interpretação fazes destas palavras?
Esse é um ponto alto de satisfação pessoal e colectiva, essa edição e toda a colecção. É uma estreia universal, este Ajax. A Isabel Lopes, na sua já trigésima e tantas traduções de obras de teatro e na sua já quarta tradução de peças de Sarrazac, conhece por dentro a sua escrita e teorias do futuro do drama, de muita leitura, assim como os modos da estrutura e a linguagem, o humor. Esmerou-se criticamente, realizou a aventura da tradução, enfrentando todos os escolhos que, de uma língua a outra, vão surgindo, nas construções sintácticas, nos significados diferentes em cada contexto linguístico-cultural. Principalmente, na dimensão palimpséstica, intertextual, desta peça que navega entre a Grécia clássica e hoje, entre a personagem e a impersonagem, entre August Strindberg e Bertolt Brecht. E se revela, na estrutura, uma partitura de vozes com dois solistas. É uma cadência rítmica que comanda, centrada na forma de monólogos contrapostos, como Sarrazac fala de Bernard–Marie Koltès, a propósito de “Na solidão dos campos de algodão”. Combate de ideias, mais do que esgrima de argumentos dialogados (os hemistíquios da tragédia grega), que também se praticam. Sarrazac leva à prática o que define teoricamente, com grande abertura, é um experimentador consciente.
A peça didáctica, na esteira de Brecht – que as escreveu como práticas de aprendizagem colectiva em torno de teses e que as proibiu (direito de autor) como espectáculos profissionais –, é essa discussão dos princípios de acção que se deveriam cumprir, politicamente, para se alcançar a sociedade liberta da exploração. É um teatro que ensina um marxismo aberto e que elogia a ciência, o espírito de missão, a dedicação revolucionária.
“As espingardas da Mãe Carrar”, ou a adaptação de “A mãe”, de Máximo Gorki, vão nesse sentido, embora sejam peças mais libertas da abstracção, como surgem nos ensinamentos do conjunto das didácticas propriamente ditas: aulas escritas colectivas, em que o texto constrói a perspectiva da acção programática, o que não deve falhar no debate dos factos e nas tácticas da acção. O compromisso militante não permite o erro que compromete o objectivo. Em “A decisão”, isso é claro. O tipo que falha pode enfrentar o pelotão. Conhecemos isso. E mesmo o que não falha, digo agora, mas disside, aliás, em grande escala também, como provado em tantas estradas da morte.
Mas Sarrazac refere «uma peça didáctica sem aparelho didáctico».
O que Sarrazac aqui nos diz é que o que, na peça, ensina não é pedagogia. Não tem a vocação de ensinar enquanto técnica didáctica. Não é armadilhado estruturalmente para esse resultado ser inevitável, como na maiêutica. Nos diálogos, sentimos o filósofo a conduzir o aprendiz para as suas teses, um processo indutivo, com rumo prévio. Ajax, a peça, ensina, na medida em que as lições que se retiram são fruto da inteligência partilhada na compreensão em assembleia da peça encenada, para além de qualquer intenção de ensinar. E ensina porque quer repor as energias da mudança pós-“terapia” do “ouver”. Aquele convencimento de que a razão teria um papel definitivo no ponto de vista que gera a mudança pós-experiência teatral perdeu o seu fulgor. E a ideia das potencialidades didácticas do teatro, dirigindo-se à assembleia de espectadores, respeita hoje cada um deles, dirigindo-se à diferença e à singularidade de cada espectador, apostando nessa liberdade de cada um ficcionar a sua perspectiva, mais do que, apenas, politizar a sua acção imediata em contexto geral.
É um teatro distante de uma utilidade prática imediata, como um manifesto, uma acção de rua. Nada tem que ver com isso. Podem estar a tomar a cidade e a chama viva do teatro continua, nessa noite, a realizar-se num palco. Alguém disse isto. Não paramos e quando paramos fazemos clandestinamente, isto é, nem que sejam as didascálias em circuitos conspirativos. Ainda vivi a censura. O nosso “Quanto custa o ferro?” – vê lá tu! –, uma didáctica do Brecht, foi, em Lourenço Marques, proibido pela censura. Tinha eu 16 anos.
O “didáctico” que permanece depois do adeus à peça didáctica – um texto de Heiner Müller – tornou-se complexo, nada elementar, e mistura o íntimo com o político, o micro e o macro, o irrelevante com o significante, devolvendo às pessoas dos espectadores uma realidade mais (in)transformável. Sendo difícil aquilo que as palavras de ordem possam pontuar, perdendo logo actualidade, porque descartáveis como tudo o que se consome, a política, hoje, caiu na reacção, no reactivismo mecânico absoluto. Assim, não há horizontes nem de legislatura.
O militantismo básico é também responsável pela gigantesca regressão a que assistimos nas nossas sociedades, há muito tempo numa deriva direitista, vive de uma contraposição imediata e primária, de um estar contra mecânico – tão mecânico que o antagonista sabe o que o antagonizado vai pensar e realizar. Não há dimensão criativa na política que “se assume” – “nós assumimos”, “eu assumo” e depois? (como diria o Alberto Pimenta) – contra a exploração, é tudo previsível.
A realidade que a peça aborda está para lá do real, não se cinge a ele, questiona-o. Assume até, a espaços, uma dimensão fantasmagórica.
Na peça, o modo como a realidade e os factos são abordados, num contexto em que vários conflitos se estruturam, é aberto e vário, não encaminha, não está obcecado pela via única. Essa é a estratégia deste pós-drama, não há clímax nem desenlace. E não se purgam sentimentos. O facto traumático é anterior, a catástrofe já ocorreu. Digo, com Antonio Gramsci, que a arte ensina por ser arte e não por ser pedagogia.
A estrutura desta oratória é muito inteligente, processual e livre. Não armadilha, sugere; não conduz, abre pistas, debate abertamente. É também peça-parlamento, tribunal, intercala a narrativa que se vai fazendo e refazendo de perspectivas diferentes com o comentário do coro, põe os mortos a falar desse antes em que morreram, de modo interrogativo, analítico e acusatório – como num tribunal público.
No teatro, a justiça não é um assunto de leis fabricadas por uns tantos nem de juízes ao serviço de uma justiça, é questão de ser-se justo. Isso explica “Azdak” como explica o “Juiz da Beira” – intercala esses comentários com o longo combate entre os dois protagonistas que, além de combate entre sexos e cérebros (com Strindberg, veja-se“A dança da morte”), é um combate ideológico, a guerra (sendo ele o genocida) opondo-se à paz (sendo ela a mulher estuprada), simplificando.
Em boa verdade, aprendemos mais em contextos mais informais, no decorrer das vivências reais, do que em contextos escolares. E, hoje, temos como inimigos esses dois grandes educadores, os media,em geral, e a Internet, em particular (digo “inimigos”, pois chamo isso aos donos desses aparelhos ideológicos de poderes). Essa é uma vantagem do teatro, ser escola aberta e não uma Escola, um parlamento de debates ideais e sensíveis, de corpos a agir narrando factos e ficções, de todos os aspectos das vidas e da História. Os eleitos presentes são os que escolheram estar connosco naquelas horas, naquele espaço, com as nossas acções e palavras em palco.
Vamos às personagens. Gostava de começar pelas Vozes. Qual a natureza destas vozes? São feitas de quê? Aparentemente, conservam uma dimensão sobrenatural que ecoa a relação entre mortais e imortais, na tradição homérica. Será assim?
Na esteira de August Strindberg e do simbolismo, esta facilidade de relacionar morte e vida não deixa de ser a de relacionar memória com presente, passado com presente futuro. Na cultura africana, a que me é mais próxima, moçambicana, o diálogo com os mortos é constante e exige determinados actos de reparação de passos mal dados em relação aos falecidos, pelos vivos. Os mortos são exigentes, há rituais que se lhes devem. Quem não cumpre… Aqui, as Vozes são reivindicativas, mas, principalmente, são acusatórias: falam como um comité de vítimas em busca da reparação que permita o regresso. São ágeis e inteligentes, de singularidade colectiva, múltiplas, diversas e unas. A morte é-lhes comum.
Na ficção, os mortos coexistem com os vivos porque as lições do passado podem ser e devem ser mais do que as sínteses teóricas das lições da História, aquelas que não se metem definitivamente no famoso caixote do lixo – na realidade, tão amplo que nunca cumpre o que promete; talvez roto, pois, muito do lixo da História retorna. E mesmo como farsa, é, por vezes, trágica. Estamos em cima disso. Variação da mesma repetição.
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Mas como é que vês as Vozes? São fantasmas? São a voz da consciência?
Vejo estas vozes como um tribunal de mortos prenhes de vontade de viver uma vida outra que não a que conheceram. São avisadas, alarmam os vivos, sinalizam perigos, repetições, regressões. Essa energia que a ficção lhes confere, de vozes vivas, indignadas, observadoras, capazes do balanço do que lhes sucedeu, de uma perspectiva, já que intervêm para repor a verdade e para evitar que suceda aos vivos o que as vitimou. Fazem perguntas terríveis, acusações definitivas, o que assombra o genocida, o protagonista, a máquina guerreira, o homem cego pela missão étnica, xenófoba, nacionalista estreita, pseudo-patriótica. Ele é assaltado pelas perguntas destes mortos, pois eles conhecem bem os seus crimes, são os mortos que ele mandou matar ou matou e eles lembram-se disso, voltam à vida para lhe lembrar isso.
São figuras híbridas. Tanto pertencem à deriva paranóica do assassino –entranham-se-lhe na cabeça –, como pertencem a um tribunal da história factual na reposição da verdade dos factos. Entendo as Vozes, os mortos de regresso à vida no presente da ficção teatral, como uma grande liberdade ficcional. Em Sarrazac, encontramos estas personagens corais nos “efémeros” do “Menino-Rei”, assim como, de modo diferente, nos “sem rosto” de “O fim das possibilidades”. São figuras que nos trazem para a cena essa dimensão testamentária de um trajecto de vida, olhada do seu fim, mesmo que o morto seja recente, como na figura do acidentado de “Menino Rei”, que, num monólogo de um parágrafo, dizia a sua vida toda no momento final. Nas Vozes, isso vai longe. Até a criança que não nasceu, vítima do estupro, vem fazer as suas perguntas e acusar, neste caso, o próprio pai, de ter morrido feto ou de ter morrido pela falta de vontade da mãe violentada de voltar a ter um filho.
Olho para o cenário de ruínas e é como se ele projectasse no exterior a intimidade das personagens, também elas devastadas pela guerra. O que sobra do heroísmo clássico nesta peça?
É tudo ao contrário. Não sobra nada. Mesmo a referência ao regresso de Ulisses é contada sem heroicidade alguma. O paciente Ulisses é apenas reconhecido mais imediatamente pelo seu cão. Ele é olhado como um mendigo. É assim que é olhado. Não entra em Ítaca como César em Roma.
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Este Ajax é claramente diferente dos Ajantes que surgem na “Ilíada”, herdando deles, talvez, o historial de morticínio. Por outro lado, o Ajax de Sófocles é um herói aniquilado e solitário. Na peça de Sarrazac sugere-se, várias vezes, que Ajax está morto, como se vagueasse num limbo. Já nem consegue dizer o próprio nome. Poderá este Ajax ser também entendido como uma personificação de uma certa degenerescência civilizacional?
Estas viagens de Ajax pela sua própria memória “biodegradada” – reconstruída na actualidade, cirurgia estética e variando, separando, divorciando Ajax, o jovem campeão, do matador – são também modos de construção de uma personagem que, como diz Sarrazac, é heterotópica e heterocrónica, pós-personagem no sentido de estar mais perto da liberdade mutante das Vozes que de uma inteireza personalizada.
Ajax está sempre numa deriva no tempo e no espaço, tanto está nesse passado ou idade de ouro em que era venerado, como, de repente, elabora o discurso xenófobo do nacionalista, em contradição flagrante com o que era a equipa (mistura interétnica, uns e outros, mouros e cristãos, moçárabes, judeus árabes e judeus, para exemplificar com o que é comparável – arianos é que nunca ninguém deu por eles, já os Neandertais se misturaram com os Homo sapiens), como também delira, por uns momentos, com a possibilidade do lar acolhedor, como depois deseja suicidar-se, como imediatamente vê em todos os lados Ulisses, o inimigo figadal – aí, em plena psicanálise, na cena; o inconsciente explicitado cenicamente.
Curiosamente, Ulisses é integralmente protagonista da paranóia de Ajax. É uma presença viva dentro da cabeça do moribundo. As Vozes são todas vítimas. Essa “técnica” de construção de Ajax corresponde, a meu ver, à teoria do teatro rapsódico, em que as cenas, vindas de universos diferentes, de teatros diferentes e de estruturas dramáticas diversas, da realidade e da psique, factuais e virtuais, se cosem umas nas outras sem que as posteriores sejam consequência narrativa encadeada das anteriores. Não há, nesta dramaturgia, a construção clássica: prólogo, informação e desenvolvimentos lógicos, sequenciais, momentos de relançamento da ideia nuclear, clímax e desenlace, epílogo. Aqui, o panorama do antes é olhado a partir do fim – como o “Anjo da história” (Angelus Novus), de Paul Klee, parece fazer, não só vendo as ruínas crescendo em altura, como virando as costas ao futuro. É o tal chão de ruínas, metáfora do todo ficcionado.
Mas dizes bem, como um morto vagueando num limbo. Ajax, o seu pesadelo, a sua insónia acordada. E há cenas em que “dorme” e em que acorda da insónia, essa vigília tão cinematográfica. Os sonhos são mais imagens que texto, mostram que a sua existência está entre um plano e outro, que não deixa de ser um morto vivo. No campo de ruínas concentrado em que deambula, exceptuada a casa, apenas meio destruída, também ele é invisível, como as Vozes. O morticínio aproxima-o dessa condição. A única perspectiva de “esperança” – a de ser identificado como quem foi e de ser pai – cai também como ruína, inexistente memória convocável, quando a Mulher Jovem relata o estupro e levanta a possibilidade de ter sido ele a cometer o crime, o filicídio.
Nada resta senão a possibilidade da morte. E essa morte é uma libertação para os outros. Um mínimo de justiça é necessário. A condição de um luto que faça renascer a possibilidade de nova floração vital. Degenerescência civilizacional? Sem dúvida. A própria ideia de progresso se confunde com a destruição nuclear, a inteligência das bombas não cessa de se aprofundar. As técnicas da morte global estão aí, em escala global: directas, as armas, e indirectas, o que fizemos à Natureza, que agora se rebela descontroladamente. Onde param as tão cantadas estações do ano?
O título da peça remete para uma pluralidade de regressos. Isto pode ser entendido de muitas formas. Nada nos garante que esses regressos digam respeito a Ajax, que na verdade podia ser traduzido pela palavra Guerra. Na peça, tanto o Homem Jovem como a Mulher Jovem parecem estar de regresso a um mesmo lugar, no termo de uma guerra, mas em condições íntimas completamente distintas, diria até antagónicas. É como se correspondessem a uma espécie de confronto entre Eros (Vida) e Thanatos (Morte). Concordas com esta perspectiva? Não te parece haver na Mulher Jovem um desejo de regressar à vida comum que no Homem Jovem se apresenta como uma impossibilidade?
A questão é como a colocas. Diria que ele é a Guerra e ela é a Paz, uma variação de morte e vida, como referes. E ela faz uma coisa excepcional e que muito deve ao teatro: cria as condições processuais da compreensão por parte de Ajax do que ele não consegue ver. A quarentena, chama-se assim a cena, é um laboratório, um psicodrama, lembra “o laboratório cénico” montado na dramaturgia de Pierre de Marivaux, nas suas peças iluministas, cientistas. Ele revive tudo o que foi e projecta, para perceber que não tem saída. Ela é a “gestora” em cena desta progressão negativa.
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Quase no fim, a Mulher Jovem diz o seguinte: «Toda eu era espera e essa espera era-me insuportável.» Hoje, ouvimos isto e já não pensamos, literalmente, nas mulheres que ficavam à espera dos maridos que iam para a guerra, pois também elas participam das operações militares. Dantes, as que não eram feitas escravas, as que não eram despojos de guerra, esperavam.
É verdade, há grávidas a combater, o horror ganha novos limites.
Na Mulher Jovem, a espera está associada ao peso insuportável da memória, ela diz também que a memória a impedia de existir, que lhe enchia o cérebro a ponto de não restar lugar para si. São imagens fortíssimas. Julgas que esta declaração de guerra à memória íntima pode ser uma via de reconciliação com a vida?
Diria que a libertação da memória é de parte dela, uma parte que, como trauma, ocupa tudo e submerge outras memórias anteriores, as de antes da guerra. A memória que é trauma tem de superar-se. A memória que acumula negatividade tem de ser lancetada, como gangrena amputada. Creio que a memória como lição permanece, é uma aprendizagem essencial, a pós-traumática – neste acaso, sendo a dor extrema, por um processo que encontra na ideia de luto um caminho, um caminho de reparação misturado com um caminho de racionalização.
As coisas são muito complicadas. A Isabel Lopes, no seu estudo preparatório da encenação, sobre a guerra da Bósnia e, em particular, acerca do massacre de Srebrenica (em 1995), encontrou o relato de uma mãe (vítima de estupro, a quem mataram familiares directos) que continua, hoje, a combater contra a presença de conhecidos assassinos nas mesmas ruas e na cidade em que as coisas aconteceram. Aqui, temos de dizer que a justiça é uma falácia, que não existe.
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Suponho que esta peça te coloque uma série de desafios, do ponto de vista da encenação. Desde logo, as vozes. Como se encena a invisibilidade? Depois, a alternância de um registo de loucura temerária com um registo de medo obsessivo, paranóia persecutória, que me parece caracterizar o Homem Jovem. A interacção entre o Homem e a Mulher, num plano em que parecem ausentes um do outro. Nunca chegam a ser um para o outro, estão fechados dentro de si mesmos, encerrados nos seus traumas mais profundos, rodeados de devastação e de desolação. No caso dela, um tom de escárnio que surge a espaços. Um escárnio assaz fragilizado, diria até débil. Como é que vês estas personagens à luz do teatro actual? O que é que não gostavas nada que elas transmitissem, por assim dizer?
Esse é o desafio. Fazer um texto que propõe um teatro radicalmente diverso do que temos vindo a fazer e em que Sarrazac vai mais longe que noutras experimentações de praticar o seu querido futuro do drama. Aqui, essa mistura de sono e de insónia, de sonho acordado com memória traumática, transporta-nos para um realismo – recondução do sentido a uma realidade que se redescobre e que não é referencial, ponto de partida, antes ponto de chegada do espectador – que mistura virtual e real na mesma cifra. Portanto, tens de encontrar as soluções, tanto da invisibilidade dos mortos que falam, como dos vivos que parecem mortos-vivos. A própria Mulher Jovem sente-se morta por excesso de memória negativa, pelo trauma de quem foi violentado, sentindo destruída a sua intimidade. O corpo é gerador de outras vidas, instrumento de esperanças, literalmente, não é? Isso continua, como vemos no monólogo final, claramente positivo, mesmo que segundo a muito francesa dúvida metódica.
Este teatro mistura bem o político com o íntimo e nunca cede ao doméstico, ao comezinho. Não põe em cena apenas as relações de força conjunturais observadas no conflito que observa e glosa, antes transita da paranóia traumática. Socializada, a guerra é uma tragédia geral, exterior, que provoca feridas interiores que nenhum especialista trata. Para uma esfera que é privada, familiar, é com as paredes no chão que a vemos. Não há voyeurismo de nenhum tipo em causa.
O que estamos a tentar é, na realidade, pelo lado das Vozes, encontrar soluções que passem por mediar o que se ouve através de amplificação sonora, em ausência do directo acústico. Mas também, no escuro, ouvir essas Vozes numa lógica muito mais viva. Contudo, fantasmada, também invisível e, neste caso, acústica. Em busca de serem sem corpo, o que é trabalho de intérprete ou de actor, pois, uma voz assim, sendo neutra – que nunca é –, busca numa espécie de articulação, um etéreo que reconduz à vida. E dizem coisas muito dramáticas num processo sem drama na construção.
Nesta altura do campeonato, penso muito em vultos que se ouvem, em silhuetas, em fantasmas, em mortos em movimento. O que só a memória vivificada consegue, convocando-as para a cena, o que traduz o gesto do dramaturgo. Já os dois protagonistas exigem um trabalho diferente, que siga, de perto, a literalidade das formas rapsódicas que refiro acima. Mas também muita viagem pela psique, enquanto relação com o outro, com o outro em ti. Ou seja, és vários e com o outro que te é exterior e te devolve uma imagem de ti; ou a quem não queres reconhecer, pois, o teu outro não é este Ajax que tens diante.
Uma última questão: trabalhaste outros textos de Jean-Pierre Sarrazac no passado, é um autor que conheces bem. O que destacarias nesta peça por oposição às outras obras do mesmo autor em que estiveste envolvido?
Essa radicalização de um teatro que mistura bem o político com o íntimo, que leva, o mais longe que conheço nos seus textos, a exploração em cena da dimensão subjectiva que Sarrazac reivindica para o teatro pós-brechtiano, recosendo-o com Strindberg. Uma mistura impossível, segundo muitos. Neste texto, a mistura do sonho e da realidade, do pensamento e da relação com o outro estão num permanente desalinho, como se, de facto, as cabeças fossem o que são, perdidas nas suas feridas e num desejo ainda de viver, de relançar a vida. É esse o sentido final da palavra “regresso”, o regresso dela à vida e à maternidade. Será mãe de uma criança órfã. E poderá, eventualmente, voltar a conhecer o desejo de engravidar.
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16/03/2023