A literatura portuguesa que Portugal ignora
Curiosamente, o ano de 2021 trouxe-nos, logo no seu início, duas publicações de poesia escrita por imigrantes em Portugal: Volta Pra Tua Terra. Uma Antologia Antiracista/Antifascista de Poetas Estrangeiros em Portugal (organizada por Manuella Bezerra de Melo e Wladimir Vaz para a Editora Urutau, que se desdobra por Portugal, Galiza e Brasil) e Antologia Poética da Imigração Lusófona (organizada por Lucas Augusto Silva para a Kotter editorial de Curitiba, no Brasil).
Digo curiosamente, porque não tem sido comum encontrar espaços de escuta para estas vozes, muito menos no campo literário português. E se, em vez de imigração, se tratasse de emigração, seria igualmente verdade. Quando, em 1993, publiquei um artigo sobre poetas da emigração portuguesa nos estados de Rhode Island e Massachussetts, nos EUA, artigo resultante de um projecto de investigação de cerca de 4 anos, não só a comunidade académica portuguesa desconhecia este tipo de poesia (tal como eu, de resto, não fora a indicação de Onésimo Teotónio de Almeida a abrir-me os olhos), como, numa primeira abordagem, a sua reacção ao meu trabalho e à divulgação desta escrita não foram das melhores.
Estudava-se já por cá a poesia de índole multicultural e multiétnica dos EUA (destacando-se o trabalho pioneiro da professora da Universidade de Coimbra Maria Isabel Caldeira), mas parecia estranho e até fútil, para uma certa intelligentsia literária, que se estudassem textos da mesma natureza escritos por autores e autoras portuguesas. Chamar-lhes “poetas”, então, era quase um sacrilégio! Não esmoreci e continuei na senda dessa investigação, desta feita, no Brasil — e financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, o que, desde logo, a tornou, pelo menos a alguns olhos, mais respeitavelmente científica.
A verdade é que, felizmente, passados uns anos, muitos outros investigadores e investigadoras se vieram a interessar pelo assunto, cientes, tal como eu, de que os critérios de análise literária têm de se adequar aos contextos e de que as variáveis em observação nos revelam dimensões múltiplas e diversas do texto literário.
No que respeita à escrita da e/imigração, por exemplo, variáveis como os processos de subalternização, da classe e da identidade, irão de imediato chamar a nossa atenção, mas também os aspectos traumáticos decorrentes do processo de deslocação, de si e da linguagem; e talvez menos, os processos relacionados com o estar mais dentro ou mais fora da grande tradição ou do experimentalismo vanguardístico com que abordamos poetas da cultura dominante ou, como lhe chama o poeta e teórico Charles Bernstein, da “cultura oficial”.
O que sempre me interessou foi escutar as vozes que estão, quase sempre, silenciadas, porque estas vozes estão entre nós, fazem parte da urdidura da língua e da cultura de Portugal — e esquecemo-nos demasiadas vezes dessa participação e desse contributo para aquilo a que chamamos “a realidade portuguesa”.
Contudo, apesar de tantos estudos já existentes, ficam algumas perguntas: fora das suas comunidades ou fora do grupo de investigadores e investigadoras que sobre eles se debruçam, alguém conhece o nome de algum ou alguma destes poetas emigrantes portugueses? Alguém ouviu falar destes nomes nas escolas? Ou nos meios de comunicação social? Ou nos representantes do Ministério da Cultura? Ou nos prémios literários?
Do outro lado, a situação não se altera. Lembro-me de um dos meus entrevistados no Brasil, que me dizia: “Quando pedimos apoio para a cultura portuguesa aqui, mandam-nos uns artistas ou escritores lá de Lisboa. Mas, sabe, somos nós, aqui, que fazemos a cultura portuguesa: com a escrita, com o teatro, com o folclore, com o fado, com as nossas tradições!” Talvez fosse tempo de começarmos a escutar estas vozes…
Quanto aos imigrantes em Portugal, a que estas antologias procuram dar voz, vejamos apenas dois curtos excertos para nos darmos conta do que o processo de desterritorialização acarreta:
HOMEM DE CÔR
Sou balanta, sou kimbundo
Sou badio, marronga ou angular
Continental ou insular
Há quem me chame homem de côr
Tenho nome e apelido
Sou do norte, sou do sul
E como tu, gerado no centro
Bendito esse teu ventre Mamãe
Sou exótico p’ra a folia
Sou selvagem quando incomodo
Sou dos teus quando convém
Sou o tal homem de côr
Dizem que sou do terceiro mundo
E, segundo bocas infames
Neste universo sem primeiro
Nem civilizado sou
Sou maconde, sou forro
Sampadjudo, mandjáku, kinkôngo
Operário e intelecto
Mas só me chamam homem de côr
Sou de lá já sou de cá
Vou, não sei p’ra onde
Com o vento que já sopra
Ora p’ra lá, ora p’ra cá
Sou filho disto
Sou filho daquilo…
Sou filho do vento
Sou filho deste mundo.
Costa Neto
Natural de Moçambique. Residente em Portugal
(in Volta Pra Tua Terra)
Esse estar entre cá e lá e os mecanismos de desidentificação, aqui claramente permeados por uma linguagem racista, são ironicamente apropriados pelo poeta que, em vez de se deixar menorizar e/ou invisibilizar, os utiliza como celebração da sua multiplicidade num não-lugar, que é todo o lugar, o mundo.
O mesmo tipo de vivência deste poeta moçambicano, Costa Neto, aproxima-se daquela que encontramos no poema “Estrangeiro”, de um poeta brasileiro também a viver em Portugal, isolado na sua “selva digital”:
Não tem lugar
o homem de corpo e alma
nessa inexpugnável
selva digital
Cada ser deixou de ter
coração e linguagem
e perdeu-se nessa
imensa teia
devorado pela escuridão do não-ser.
Insular geografia,
Fábrica de tantos exílios.
Ronaldo Cagiano
Natural do Brasil. Residente em Portugal
(in Antologia Poética da Imigração Lusófona)
De vez em quando vou à Beira Baixa e, ultimamente, encanto-me a ver a transformação das ruas. Pelo meio dos poucos idosos e idosas que ainda por lá sobrevivem, vejo passar de vez em quando famílias Sikh, eles de turbante amarelo majestoso, elas de saris lindíssimos e brincos no nariz, as crianças à frente, os rapazes com o cabelo apanhado ao alto, amarrado numa pequena bola branca— e a falar português entre si.
Entro no supermercado e ouço as empregadas brasileiras, mas também o inglês e o holandês dos novos hippies que, após conhecerem a zona através do Festival Boom, compraram terras e vieram morar para algumas das aldeias já quase desertas; ou ainda o ucraniano ou o moldavo dos que vieram antes, para trabalhar na campina ou na construção civil.
Passo pelo café mais popular e ouço flamenco, música de eleição da família Romani que agora é dona do lugar.
No pátio da escola, vejo os filhos dos bolseiros e bolseiras S. Tomenses, que vieram para estudar no Instituto Politécnico e que acabaram por criar a sua família na vila raiana.
E, se precisar de alguma bugiganga prática, vou a uma das duas lojas chinesas, onde as crianças só andam por ali até chegar à idade escolar, altura em que são enviadas para os avós, na China.
Sinto uma enorme alegria por ver toda esta diversidade étnica, linguística e cultural dentro da minha terra, agora tão cosmopolita. Mas percebo tratar-se de uma ilusão, pois me dou conta de que, apesar da dimensão exígua do espaço, as culturas destas pessoas não têm voz, nem estas pessoas interagem entre si e, pior, nada é feito por quem de direito — o poder local, a escola ou a própria igreja — para alterar esta situação. As consequências serão fatais, porque, não havendo qualquer dinâmica social, não havendo qualquer possibilidade de encontro e de enriquecimento com a cultura do outro, não há vida — e a terra acabará por definhar definitivamente.
Transportando este pequeno exemplo para o todo de Portugal, as perguntas voltam: que sabemos nós da vida e da cultura destas pessoas que vivem entre nós? Como estão elas representadas na cultura portuguesa? As suas diferentes culturas portuguesas também são ensinadas nas escolas? Qual a sua presença nos meios de comunicação social?
Na música, parece que estamos, finalmente, a dar os primeiros passos, com várias vozes africanas a tornarem-se audíveis e a falarem da sua realidade, que é também a portuguesa.
Mas, com essa excepção, talvez pouco mais pudéssemos acrescentar acerca do panorama inter-e multicultural português. O que me faz sempre querer “transmutar” o título de uma obra de 1976, já clássica na Inglaterra, The Arts Britain Ignores, de Naseem Khan: As Artes Portuguesas que Portugal Ignora.
É por isso que considero tão vital para a sobrevivência e para o enriquecimento da cultura portuguesa que antologias como as que comecei por referir sejam publicadas em Portugal. É tempo de escutarmos estas vozes portuguesas, que não serão apenas portuguesas e que, por isso mesmo, tanto enriquecerão a cultura do nosso país.
Graça Capinha é americanista, professora da FLUC e investigadora do CES, trabalha sobre poesia e poética contemporâneas. Coordenou, durante 17 anos, a revista e o curso livre de escrita criativa “Oficina de Poesia”.
10/05/2021