A medicina personalizada em hemato-oncologia (1)*
Impacto das novas terapêuticas no mieloma múltiplo
“A medicina de precisão prende-se com o mecanismo da doença num doente, em particular”, clarifica a directora da Clínica Universitária de Hematologia da Faculdade de Medicina de Coimbra. “Nós fazemos medicina personalizada e não medicina de precisão, no verdadeiro conceito”, declara a académica Ana Bela Sarmento Ribeiro, investigadora em oncobiologia e hemato-oncologia.
Também da escola médica conimbricense, Catarina Geraldes, que nos fala do impacto das novas terapêuticas no mieloma múltiplo (MM), doença em que desenvolveu estudos, no âmbito da sua tese de doutoramento (defendida em 2016), abre perspectivas na etiopatogenia das gamapatias monoclonais (GM), “destacando a relevância dos plasmócitos com fenótipo não neoplásico e de alguns biomarcadores moleculares com potencial no diagnóstico, na progressão e no prognóstico de doentes com GM, bem como eventuais novos alvos terapêuticos”.
Recorde-se que, a 10 de Outubro de 2014, numa conferência sobre “A Ciência e a Ética”, organizada pelo Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto, Sergio Giralt, presidente da Sociedade Americana do Sangue e Transplante de Medula, afirmou haver um novo tratamento para o MM “adaptado ao doente e à doença”. Ou seja, “a terapêutica é optimizada em função do doente e das características da doença”. O que, como então considerou o director do Serviço de Transplantação de Medula Óssea do IPO/Porto (António Campos), se apresentava como “um avanço extraordinário”, atendendo a que “os doentes não são todos tratados da mesma maneira”, sendo “tratados em função de determinados parâmetros”.
Como define Catarina Geraldes, na sua tese de doutoramento, co-orientada por José Manuel Nascimento Costa e por Ana Bela Sarmento Ribeiro, o MM “é uma neoplasia hematológica associada à proliferação de plasmócitos monoclonais que infiltram a medula óssea e secretam paraproteínas, presentes no soro e/ou na urina”. Esta discrasia ou distúrbio dos plasmócitos caracteriza-se, igualmente, pela presença de hipercalcemia, de disfunção renal, de anemia e de lesões osteolíticas. Como refere a especialista, as lesões ósseas “podem encontrar-se localizadas ou dispersas por todo o esqueleto, com atingimento preferencial dos ossos do crânio, da coluna vertebral, das costelas e da bacia”.
“Neste momento, posso ter uma terminologia mais correcta para a medicina personalizada: é a medicina de precisão”, observa Ana Bela Sarmento Ribeiro, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC) e investigadora em oncobiologia e hemato-oncologia, em entrevista ao sinalAberto, através da plataforma Zoom, numa conversa que também envolveu a especialista Catarina Geraldes acerca do impacto das novas terapêuticas no mieloma múltiplo.
“A medicina personalizada é a medicina de precisão”, sublinha Ana Bela Sarmento Ribeiro, notando: “Praticamente, se formos ler o que está descrito relativamente à medicina de precisão, vemos que é ter o fármaco certo para o doente certo, na altura certa”. Recorrendo à definição básica na literatura médica, a nossa entrevistada verifica que, “no fundo, é termos um fármaco que vamos adaptar a um doente com uma característica específica de doença”. No caso que agora consideramos na nossa investigação jornalística, relativamente ao mieloma múltiplo, falamos de doença neoplásica. “Embora nós possamos dizer que vários doentes têm, por exemplo, um mieloma múltiplo ou um adenocarcinoma do pulmão ou outro tipo de cancro”, comenta Ana Bela Sarmento Ribeiro, “de facto, esses doentes vão ter comportamentos biológicos e respostas clínicas completamente distintas”. “Isso significa que, a nível molecular, as doenças são diferentes. E o facto de serem diferentes leva a que tenham surgido não só novos biomarcadores de diagnóstico e de prognóstico, como também novos alvos terapêuticos precisamente dirigidos àquelas alterações particulares naquele doente”, esclarece a docente da FMUC, que privilegia a investigação no domínio da Hematologia.
Em torno do mesmo conceito, a académica conimbricense reconhece que, hoje, “ainda não se pratica, completamente, uma medicina de precisão”. “Porque continuamos a trabalhar com esquemas terapêuticos aprovados para aquele subtipo de doença, embora em alguns casos já com determinadas características moleculares; mas ainda não ajustamos àquele doente, em particular”, frisa, acentuando a ideia de precisão “naquela doença e naquele doente”. “Nós não tratamos propriamente a doença, em si, mas o doente com aquela doença”, especifica.
Questionada sobre se não é um “despropósito” falarmos de medicina personalizada, quando sabemos que a medicina clássica ou convencional procura cuidar da pessoa humana, Ana Bela Sarmento Ribeiro responde que, “obviamente, se faz uma medicina individualizada”. Porém, “outra coisa é tratar doente a doente”, pois “a medicina de precisão prende-se com isso, com o mecanismo da doença naquele doente, em particular”. No entanto, “nós fazemos medicina personalizada e não medicina de precisão, no verdadeiro conceito”, declara a médica, admitindo que, “nalguns casos, até já se faça”, dependendo das situações.
Vários subclones no momento do diagnóstico
Por sua vez, a investigadora Catarina Isabel Geraldes dos Santos acrescenta estar “demonstrado, concretamente no mieloma múltiplo [MM], que todos os doentes têm vários subclones no momento do diagnóstico”. Para esta especialista que trabalha no Serviço de Hematologia Clínica do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), onde dirige a Unidade de Transplantes de Medula Óssea, “a maioria dos doentes tem um clone dominante ou, pelo menos, 50% dos doentes tem um clone dominante que corresponde ao tratamento, mas existem outros subclones que são os que, mais tarde, vão ser responsáveis por recidivas e por manifestações das doenças”. Segundo, Catarina Geraldes, “a leucemia é, por definição, uma doença incurável”. Refira-se que o MM é uma doença maligna disseminada, em que um clone de plasmócitos modificados se prolifera na medula óssea, desorganizando as suas funções e invadindo o osso adjacente.
“Quando se fala em medicina de precisão, isso não tem, exactamente, a ver com cuidados personalizados, porque esses cuidados são prestados desde sempre e devem continuar a ser prestados”, repara Catarina Geraldes, referindo-se, “inclusivamente, a todos os protocolos terapêuticos ajustados a uma série de parâmetros” não exclusivos da doença e que têm em conta a condição clínica dos doentes, as terapêuticas já realizadas, a reserva funcional de cada indivíduo e a “própria motivação do doente – que, cada vez mais, tem uma palavra a dizer – relativamente à realização de determinado tratamento”. A própria distância que o doente percorre para ir ao hospital influencia o programa terapêutico. “Há terapêuticas que são endovenosas e que obrigam a administração hospitalar”, menciona a médica, aludindo também às terapêuticas orais, “que o doente pode levar para casa e, eventualmente, fazer um controlo analítico, durante o ciclo, se for caso disso”, informando a equipa clínica, que tomará as decisões mais adequadas, “sem a necessidade de o doente ir ao hospital”.
Como recorda a investigadora Catarina Geraldes, “há múltiplos aspectos que já eram e continuam a ser, de facto, personalizados”. “Quando se fala em medicina de precisão, esta é uma terapêutica ajustada às características moleculares ou genéticas do próprio clone maligno, porque não há dois doentes iguais”, reitera a médica especialista do CHUC, reforçando que “há muitos doentes com mieloma múltiplo, mas não há dois doentes iguais”. Daí a importância de conseguir “identificar, o melhor possível, as especificidades do clone ou dos clones” envolvidos na doença. As novas terapêuticas também passam pela utilização das “próprias células imunitárias do doente, modificadas geneticamente e novamente administradas naquele doente, com especificidades para combater esse clone maligno”. “Só serve para aquele doente e para mais nenhum! Há muita precisão nesse tratamento”, sustenta a especialista do CHUC, que também desenvolve actividade no Instituto de Fisiologia e no Instituto de Investigação Clínica e Biomédica de Coimbra (iCBR).
A propósito dos caminhos e das novas perspectivas que se nos oferecem com a dita medicina personalizada, a investigadora Ana Bela Sarmento Ribeiro releva que “objectivo é o de tratar uma determinada doença que tem características particulares num determinado doente, apesar de a doença ser aparentemente a mesma em vários doentes”. Como reitera a mesma especialista, que integra o Conselho Científico do iCBR – Centro de Investigação em Meio-Ambiente, Genética e Oncobiologia (CIMAGO) da FMUC, onde coordena um grupo de investigação, “cada doença tem particularidades especiais a nível molecular que são distintas de doente para doente”. Assim, atendendo a que “o cancro é uma doença heterogénea, mesmo dentro de si, já para não falar do indivíduo”, na chamada medicina de precisão, o que importa mesmo “é conseguir tratar aquelas células naquele doente, em particular, com aquela característica também particular”.
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“O objectivo é prolongar”
“O objectivo, em última análise, seria curar. Ou, quando muito, fazer aquilo que já é, hoje, feito: transformar numa doença crónica, que mantemos durante o maior tempo possível; com a maior sobrevivência global ou sobrevivência livre de progressão. Ou seja, o maior tempo sem doença detectável”, clarificou a directora da Clínica Universitária de Hematologia, bem como do Laboratório de Oncobiologia e Hematologia (LOH) da FMUC. Concretamente, “o objectivo é prolongar”. “Se não conseguirmos curar o doente, pelo menos, procuramos prolongar-lhe a sobrevivência, sem doença detectável (o que é preferível) e com a maior qualidade de vida possível”, releva Ana Bela Sarmento Ribeiro.
“O avanço tecnológico foi muito grande. Temos múltiplas tecnologias, neste momento, à nossa disposição, as quais nos permitem já fazer muito do que estamos, aqui, a dizer. Ou seja, identificar diferentes características moleculares em diferentes tipos de células, em diferentes tumores e em diferentes doentes”, confirma a académica, que é co-PI (em inglês: co-principal investigator) de uma linha de investigação no consórcio Centro de Biomedicina e Biotecnologia Inovadoras (CIBB). “Essas diferentes características são possíveis de detectar, utilizando as novas técnicas que temos ao nosso dispor, a exemplo das técnicas de sequenciação, em que se identificam várias anomalias moleculares”, menciona Ana Bela Sarmento Ribeiro, prosseguindo: “Inclusivamente, podemos fazer a selecção dos vários clones (ou subtipos de células neoplásicas) e caracterizar cada um destes subtipos.”
“As células podem ser sequenciadas, previamente, em aparelhos que fazem essa selecção das células e, depois, podemos caracterizar individualmente cada uma dessas células. Evidentemente, isto não é ainda utilizado de uma forma massiva [ou em grande quantidade], porque são tecnologias muito caras e não existem em todos os hospitais e serviços de saúde. Assim, em alguns casos, isto já pode ser feito”, informa a directora da Clínica Universitária de Hematologia da FMUC, destacando, igualmente, “os altos avanços a nível da imagem”, entre os demais instrumentos e aparelhos médicos, equipamentos hospitalares e laboratoriais que, associados a novas técnicas e a novas metodologias, possibilitam “fazer a destrinça”, separando as células e, por outro lado, caracterizando-as sob o ponto de vista molecular.
Ao retomar a conversa, tendo como foco as pessoas e observando a especificidade das suas doenças, Catarina Geraldes, procurando clarificar ideias e conceitos, pensa que, concretamente, “em relação ao mieloma múltiplo, não podemos fazer essa afirmação” de modo peremptório ou decisivo. “O que nós sabemos é que o mieloma múltiplo [MM] é, sistematicamente, precedido por uma entidade benigna (pré-maligna) designada gamapatia monoclonal de significado indeterminado [MGUS – monoclonal gammopathy of undetermined significance] e que não necessita de tratamento, apenas vigilância; e que passará por uma fase intermédia entre o MM latente [assintomático – SMM, do inglês Smoldering Multiple Myeloma] para uma fase de MM sintomático, aí já com necessidade de uma abordagem terapêutica”, declara a especialista conimbricense que, desde 2007, é investigadora principal de múltiplos ensaios clínicos multicêntricos internacionais nas áreas do mieloma múltiplo, dos linfomas não-Hodgkin e da transplantação autóloga de progenitores hematopoiéticos.
“Não podemos ou não conseguimos predizer, na fase MGUS (hoje, temos MGUS de baixo risco, de risco intermédio e de alto risco), exactamente, o que vai acontecer ou quais os doentes que podem desenvolver mieloma múltiplo ou quais vão ficar na fase de gamapatia monoclonal de significado indeterminado”, constata Catarina Geraldes, aludindo à necessária estratégia de vigilância. “É importante reconhecer que os avanços tecnológicos existem”, sobretudo, “no ponto de vista do estudo do clone maligno e da respectiva abordagem terapêutica”, o que ajuda a conhecer melhor e de forma mais precisa “o comportamento da doença”.
Na opinião desta investigadora e docente na FMUC, esse “melhor” conhecimento do comportamento da doença oncológica “levou à identificação dos novos alvos terapêuticos e, posteriormente, à tentativa de desenhar e de construir [conjecturar ou elaborar] abordagens de fármacos” na intenção de que acertem nos ditos alvos, identificando-os, além de “atingirem as células que expressam esses alvos, para mais facilmente haver uma actuação específica”. “Uma actuação de precisão e não o que tínhamos antes, que era a quimioterapia convencional”, explicitou. Quanto ao conceito de “quimioterapia”, expresso na terceira edição (de 1997) dos Cadernos de Oncologia (da autoria de Ana Caseiro, Cristina Costa e Emília Guerreiro – enfermeiras na Oncologia Médica II do Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil – e de Júlio Ascensão, enfermeiro graduado em Urologia no Hospital Fernando Fonseca, Amadora/Sintra), a quimioterapia citostática “é a utilização de substâncias químicas com actividade citotóxica com o objectivo de tratar pessoas com doença oncológica”. Assim, com esta terapêutica, “pretende-se assegurar que cada célula de uma população tumoral seja exposta a um fármaco letal, em dose suficiente e por período adequado para a destruir”.
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Atender à singularidade de cada doente
Relativamente às estratégicas preventivas, de diagnóstico e terapêuticas, que podem ser consideradas no contexto da medicina personalizada, de forma a atender à singularidade de cada indivíduo, Ana Bela Sarmento Ribeiro advertiu para as respectivas diferenças a ter em conta nessas mesmas estratégias. “De forma geral, em termos de prevenção, são apreciados os hábitos de vida, a dieta, o ambiente em que nos inserimos e a exposição a alguns agentes genotóxicos”, recorda a docente universitária. No que concerne “a algumas neoplasias, são conhecidos alguns factores de risco de exposição a alguns agentes e a sua relação com o cancro”. Mas, como nota a investigadora, “não é assim tão fácil, porque essa situação não está bem estabelecida”, embora se saiba que, “no caso do mieloma múltiplo, haja alguns factores que possam aumentar o risco”.
Relativamente às estratégicas preventivas, de diagnóstico e terapêuticas, que podem ser consideradas no contexto da medicina personalizada, de forma a atender à singularidade de cada indivíduo, Ana Bela Sarmento Ribeiro advertiu para as respectivas diferenças a ter em conta nessas mesmas estratégias.
Todavia, “quando falamos de prevenção do desenvolvimento do cancro, em geral, temos de prestar atenção aos subníveis, que não são hereditários”. “Nos [subníveis] hereditários pode haver também um maior risco de desenvolver neoplasia” em indivíduos mais predispostos para determinado tipo de tumor. Mas, “nos casos que não são hereditários, a prevenção deve ocorrer a todos os níveis”, procurando controlar os determinantes de saúde negativos na alimentação e no meio ambiente (poluição ambiental e ocupacional), entre outros factores a evitar.
Segundo a directora da Clínica Universitária de Hematologia da FMUC, “não há, para todas as neoplasias, uma relação tão estreita como a que se verifica, por exemplo, entre o tabaco e o cancro do pulmão; ou entre alguns hábitos alimentares (fast food) e o cancro do cólon”, já que as comidas pré-confeccionadas estão muito associadas ao desenvolvimento de neoplasias digestivas.
Quanto aos cancros hematológicos, “embora existam alguns parâmetros e a possibilidade de exposição a agentes genotóxicos relacionados com algumas neoplasias hematológicas, essa correlação não é fácil de estabelecer”, diz a investigadora, não obstante as evidências de “raras excepções”.
Tendo em conta que a medicina de precisão está a revolucionar os cuidados de saúde, o domínio oncológico ganha um novo fôlego. Isso também se verifica nas neoplasias “líquidas” ou hematopoiéticas, a exemplo dos linfomas, das leucemias e dos mielomas, como acedem as nossas entrevistadas. Assim, admitem a possibilidade ou “o fio condutor” de, cada vez mais, “se conhecer melhor a doença a nível molecular”, a exemplo do mieloma múltiplo e de outras neoplasias oncológicas. “Isso permitiu, obviamente, o desenvolvimento das tais terapêuticas dirigidas a alvos moleculares”, sustenta Ana Bela Sarmento Ribeiro, relevando a respectiva aplicação “já, na prática clínica, não só para o mieloma múltiplo como para outras neoplasias hematológicas”.
“O objectivo é, de facto, prolongar a sobrevivência dos doentes – de preferência a sobrevivência global desses doentes – ou, pelo menos, a sobrevivência livre de doença no maior tempo possível e com melhor qualidade de vida”, fundamenta a mesma investigadora, continuando: “No caso do mieloma múltiplo, em particular, a inclusão destas novas terapêuticas – que atingem muitos alvos moleculares – aumentou bastante a sobrevivência dos doentes, comparando com o que se passava antes.”
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Existência de múltiplas novas terapêuticas
Sobre o que podemos esperar quanto à optimização terapêutica de várias neoplasias hematológicas e, especificamente, no impacto das novas terapêuticas no MM, Ana Bela Sarmento Ribeiro (embora sem querer especificar em termos científicos menos acessíveis à população geral, em que se incluem os leitores de sinalAberto) confirma a existência de “múltiplas novas terapêuticas”, como “os inibidores do proteasoma, complexos que degradam algumas proteínas”, “os fármacos antivirais, que modulam o sistema imunitário” e “os fármacos que são anticorpos monoclonais e que vão bloquear as vias de finalização que são activadas por essas moléculas na superfície da célula neoplásica”. “Temos uma série de fármacos que, no fundo, são dirigidos a esses alvos moleculares não só na célula do mieloma, mas também no seu micro-ambiente, com o objectivo de aumentar, de facto, a sobrevivência dos doentes”, complementa a especialista em Hematologia (do CHUC), comentando: “Se não conseguirmos aumentar a sobrevivência global e a sobrevivência livre de doença, com a melhor qualidade de vida possível. É o que pretendemos com esse tipo de estratégias.”
Por seu lado, a também docente universitária Catarina Geraldes que, desde 2012, participa em projectos de investigação e desenvolvimento no Centro de Investigação em Meio Ambiente, Genética e Oncobiologia da FMUC, acrescenta que, no caso do MM, “em concreto, no âmbito das patologias hematológicas, nas duas últimas décadas, mais do que duplicou a sobrevivência global dos doentes com esta patologia”. “Isto é notável, porque não há muitas patologias nas quais se possa fazer esta afirmação”, diz a médica, que, entre 2008 e 2012, coordenou o Banco de Tumores na área da Hematologia, no CHUC. A este respeito, Catarina Geraldes alude aos “inúmeros avanços e às terapêuticas recombinadas, em que são concertados “vários mecanismos de acção, de forma a adequar e a ter uma intervenção no clone maligno, a vários níveis, tentando ultrapassar alguns mecanismos de resistência que as células malignas vão criando”.
“Nós utilizamos vários mecanismos de acção e a possibilidade de esses mecanismos de resistência se conseguirem sobrepor ao tratamento é menor”, explicita a investigadora, a qual, sem entrar em grandes detalhes, adiantou que “as terapêuticas celulares têm vindo a ganhar terreno e a ser optimizadas”. Nesse quadro, “teremos brevemente, em Portugal, também ensaios clínicos que incluem essas terapêuticas”.
Ao procurarmos valorizar a literacia em Saúde e a perspectiva pedagógica dos leitores – ou seja, assumindo a intenção de clarificarmos ideias, de forma que toda a gente entenda –, convidamos as nossas entrevistadas a explicarem em que consiste o mieloma múltiplo (MM). E a investigadora Ana Bela Sarmento Ribeiro, que faz parte do Conselho Científico do iCBR da FMUC, elucida que o MM é uma doença que atinge, principalmente, umas células no sangue conhecidas por plasmócitos. “Aliás, existem sobretudo na medula e em pequena quantidade em circulação; e são, por excelência, produtoras de imunoglobulinas – ou seja, os anticorpos que nos defendem e de que as pessoas tanto ouvem falar”, anota a docente universitária, clarificando que “os plasmócitos são células que resultam da diferenciação dos linfócitos B”, os quais chegam até aos tecidos conjuntivos através do sangue.
Como informa a investigadora, o MM desenvolve-se “quando ocorrem alterações genéticas nos plasmócitos e também no seu micro-ambiente”, levando a que “o plasmócito normal, inicialmente, origine uma célula que já tem algumas alterações genéticas e moleculares, mas que ainda não é, propriamente, uma célula maligna, chamada MGUS e, entretanto, referida: gamapatia monoclonal de significado indeterminado”.
“Essa é uma célula pré-maligna que, depois, mercê de mais alterações genéticas adicionais e também no micro-ambiente, se transforma, primeiro, numa célula de mieloma múltiplo indolente [latente]; e que, depois, se converte numa célula de mieloma com características de MM sintomático, podendo, inclusivamente, atingir outros órgãos para além da medula”. Ou seja, “pode haver uma invasão, com o designado mieloma extramedular”, a par das “colecções que formam autênticos tumores, parecendo tumores sólidos, os quais podem estar isolados ou existirem vários – os plasmocitomas (únicos ou múltiplos), apresentando-se de várias formas, o que nos leva ao reconhecimento da sintomatologia dos doentes”.
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Incidência do mieloma múltiplo
Em relação à incidência do MM em Portugal, Catarina Geraldes, com base em dados recentes, afirma que ronda os 7,8 ou 7,9 novos casos por 100 mil habitantes. Questionada sobre qual a tendência de variação destes números, a assistente hospitalar graduada no Serviço de Hematologia do CHUC diz que, “para ser rigorosa, teria de dispor de dados anteriores”.
Todavia, na sua percepção, considerando os países que têm apresentado dados de incidência do MM “de forma consistente, como é o caso do Reino Unido” e em outras nações do mundo ocidental, “tendem para um aumento progressivo”, estimando-se que assim “possa continuar até cerca de 2035”. Efectivamente, “tem havido um aumento, de um modo geral, das neoplasias”, constata a médica especialista, reiterada por Ana Bela Sarmento Ribeiro, justificando com a provável “exposição à acção de poluentes e das radiações”, sem excluir “as características genéticas dos indivíduos e uma série da factores que também podem contribuir para isso”.
Como regista Catarina Geraldes, na sua tese de doutoramento, “a distribuição geográfica dos doentes com MM é muito díspar a nível mundial, com uma incidência superior nas regiões mais industrializadas da Europa, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia” (citando N. Becker, em 2011: Epidemiology of multiple myeloma. Recent results in cancer research. Fortschritte der Krebsforschung. Progres dans les recherches sur le cancer).
“Nós, neste momento, acabamos por manipular cada vez mais o sistema imunitário”, retomou Catarina Geraldes, mencionando diversos “factores moduladores do sistema imunitário, como as radiações dos computadores, a poluição e a alimentação sujeita a substâncias químicas”. “Todos eles acabam por ter impacto no nosso sistema de reparação celular e no sistema imunitário. Estamos, todos, sujeitos a estímulos que no passado não existiam”, verifica a responsável pela Unidade de Transplantes Hematopoiéticos do CHUC.
Na convicção de que, com os avanços da investigação médica, se abre uma “janela de esperança” para as pessoas afectadas e para a comunidade científica, a médica Ana Bela Sarmento Ribeiro, sem querer criar expectativas improcedentes, subscreve a opinião de Catarina Geraldes de que “os doentes com mieloma múltiplo têm uma esperança de vida muito superior à que tinham há uns anos”. “E não estamos a falar, assim, de há tanto tempo, porque as primeiras terapêuticas de alvos moleculares para o tratamento do mieloma surgem em 2004, se não estou enganada”, expressa a investigadora, reconhecendo que a identificação de novos alvos moleculares é fundamental para definir estratégias terapêuticas, a que se juntarão, proximamente, as terapias celulares para o MM. “Já estão aprovadas para outras neoplasias, mas ainda estão em fase de aprovação, eventualmente, para o mieloma múltiplo. O objectivo é, de facto, melhorar cada vez mais”, salienta Ana Bela Sarmento Ribeiro, investigadora que, desde, 2018, é membro do Comité Gestor da acção COST – CA17104 (STRATAGEM – Novas ferramentas diagnósticas e terapêuticas contra tumores multirresistentes).
A utilização de biomarcadores
Convidada a assinalar a utilização de biomarcadores, a nossa entrevistada declara: “Nós não temos, propriamente, biomarcadores de diagnóstico, no conceito clássico [no que concerne ao MM]. Teremos alguns casos de produtos moleculares que nos permitem caracterizar melhor o mieloma. E digo isto no contexto, por exemplo, de avaliar o risco, para estadiamentos de risco. Porém, temos biomarcadores para outras doenças, como a leucemia mieloide crónica.”
“Actualmente, poderemos ter biomarcadores de prognóstico de resposta à terapêutica para outras neoplasias hematológicas, mas ainda não para o mieloma múltiplo”, expõe Ana Bela Sarmento Ribeiro, insistindo: “Não propriamente o conceito de biomarcador clássico.” “Contudo, temo-los, no sentido de que [existem] algumas alterações em que determinados biomarcadores possam ser biomarcadores de prognóstico, os quais, de certa forma, poderão ser monitorizados ao longo do tempo. Até porque o doente não pode ter, de início, esse dito biomarcador, mas pode vir a desenvolvê-lo no decurso da doença, com clones, em que alguns grupos de células se tornaram mais proeminentes relativamente a outros”, manifesta a especialista.
“No domínio da investigação, já temos alguns biomarcadores – como refere a Professora Catarina Geraldes, na sua dissertação de doutoramento [defendida em Maio de 2016] –, alguns dos quais foram identificados no decurso desse trabalho e que poderão, eventualmente, vir a servir nas várias vertentes: diagnóstico, prognóstico e avaliação da resposta terapêutica”, confirma Ana Bela Sarmento Ribeiro, para quem “a maior parte destes conceitos ainda não estão transpostos na prática clínica, no contexto do mieloma múltiplo”.
Para Catarina Geraldes, responsável pela Unidade de Transplantes de Medula Óssea do CHUC e que – a exemplo dos demais profissionais de saúde – trabalha para inverter o prognóstico fatal de algumas patologias, “os biomarcadores precisam de ser validados, de forma a poderem ser tomadas decisões terapêuticas adaptadas aos mesmos”. “E, neste momento, isso ainda não é feito, nem em Portugal nem no resto do Mundo!”, comprova.
Ao querermos saber quais os exemplos mais marcantes na descoberta e na medição de novos parâmetros biológicos que abrem portas à medicina personalizada, especificamente quando falamos do mieloma múltiplo, a docente universitária Ana Bela Sarmento Ribeiro expõe que, graças ao “conhecimento da biologia do tumor, neste caso, do mieloma múltiplo, com a identificação de algumas moléculas relevantes ou de alguns sistemas biológicos relevantes, foram desenvolvidas terapêuticas dirigidas a essas alterações”. E exemplifica com “os inibidores do proteasoma”, esclarecendo que “os proteasomas são complexos enzimáticos que degradam proteínas, algumas delas com grande relevância no mieloma múltiplo”.
“Uma vez que inibem essas moléculas importantes no mieloma, se eu impedir a degradação dos inibidores dessas moléculas que são lesivas – porque são neoplásicas –, consigo travar a doença. É por isso que surgem os tais inibidores dos proteasomas, as enzimas ou complexos enzimáticos que degradam essas outras moléculas relevantes”, elucida a docente universitária e investigadora co-responsável (com Marília Dourado) pelo projecto Sistema da Ubiquitina/Proteasoma em doentes com neoplasias hematológicas – Potencial terapêutico dos inibidores dos proteasomas e responsável pelo trabalho de pesquisa A apoptose nas doenças hemato-oncológicas. Potencial terapêutico do Apo2L/TRAIL, ambos concluídos.
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Anomalias na regulação da morte celular
Como recorda Catarina Geraldes, na sua tese de doutoramento, as anomalias na regulação da morte celular podem contribuir, de forma decisiva, para inúmeras patologias, como o cancro, as doenças auto-imunes e neurodegenerativas, a isquemia ou a infecção HIV. Por conseguinte, em algumas destas patologias, “observa-se uma diminuição da apoptose, enquanto noutras está excessivamente aumentada”, escreve esta autora académica, citando Elmore [Elmore, S. (2007) Apoptosis: a review of programmed cell death. Toxicologic pathology].
Com efeito, o cancro “constitui um exemplo de uma patologia em que os mecanismos normais de regulação do ciclo celular se encontram disfuncionais, podendo estar presente uma hiperproliferação das células ou uma redução da sua destruição”, reconhece a investigadora de Coimbra, com base em King & Cidlowski [King, K.L. & Cidlowski, J.A. (1998) Cell cycle regulation and apoptosis. Annual review of physiology].
Um outro exemplo de intervenção prende-se com a utilização dos imunomoduladores, que são substâncias que agem no sistema imunológico, possibilitando um aumento da resposta orgânica, normalmente, no combate a determinados microrganismos. Porém, neste caso, “os imunomoduladores têm dois objectivos: modular o sistema imunitário e reportar células do sistema imune que, de certa forma, exercem a sua função citotóxica, além de permitirem a morte da própria célula neoplásica”.
Em face da nossa vontade de saber como se pode avaliar biomarcadores de resposta que ajudem a seleccionar, entre a quantidade de fármacos disponíveis, e sobre os mais adequados para um indivíduo em determinado contexto, na dose e no tempo correcto, Ana Bela Sarmento Ribeiro é peremptória: “Nós, no mieloma múltiplo, não utilizamos propriamente biomarcadores para definir a estratégia terapêutica. A estratégia terapêutica é definida em função, neste momento, de orientações internacionais e da utilização de vários fármacos que, no fundo, vão interferir com esses mecanismos de que estamos aqui a falar. Recorremos a cocktails – digamos assim – de fármacos, de uma forma simples. Precisamos, pois, de vários fármacos: uns que são inibidores do proteasoma e imunomoduladores; também podemos utilizar os anticorpos monoclonais; e usamos sempre um corticosteróide. No fundo, os doentes fazem sempre um destes conjuntos de três fármacos ou, casualmente, quatro. O mais comum é utilizar três fármacos que vão atingir coisas diferentes.”
A nossa interrogação subsequente procura descobrir, aqui, a medicina personalizada. Pelo que a professora da FMUC responde: “No contexto do mieloma múltiplo, nós utilizamos fármacos dirigidos a alvos moleculares. A única diferença é que podemos ser mais ou menos agressivos, dependendo da doença, em si, e da idade. O factor idade, neste caso, pode fazer a diferença; e as comorbilidades também.”
“Nós ainda não temos, rigorosamente, uma medicina de precisão, atendendo ao próprio conceito. Tratamos ainda hoje com estas terapêuticas que são dirigidas a alvos moleculares comuns a doentes com mieloma múltiplo. Não estamos a orientar-nos para aquela anomalia, em particular. Quando muito, entramos em linha de conta com alguns parâmetros de risco, além da idade do doente e das suas comorbilidades”, prossegue esta nossa entrevistada.
“Não é como a leucemia mielóide crónica [LMC], em que nós temos um biomarcador (a proteína BCR-ABL1, uma tirosinase) que é um inibidor; depois, monitorizamos os níveis de BCR-ABL1“, assinala a directora da Clínica Universitária de Hematologia da FMUC, especificando, para o caso do MM: “O que vamos avaliar é se ainda temos células malignas, qual a quantidade de células malignas existente e que quantidade de proteína monoclonal ou que proteína maligna temos na avaliação da resposta terapêutica.”
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Os fármacos de alvo molecular
Pelo que nos apercebemos, os fármacos de alvo molecular desenvolvidos de acordo com as proteínas encontradas na superfície ou no interior das células tumorais, atendendo às alterações genéticas do indivíduo e à detecção das células tumorais em circulação ainda não fazem parte da prática clínica quotidiana no tratamento do MM. O que é confirmado pela médica e investigadora Ana Bela Sarmento Ribeiro: “Hoje, ainda não utilizamos; a não ser que tenhamos um mieloma leucemizado – ou seja, uma leucemia de plasmócitos.”
“Actualmente, para fazer diagnóstico do mieloma múltiplo, ainda temos de efectuar uma análise à medula óssea. Todavia, nós estamos com um projecto de investigação nesta área [em relação ao MM], com utilização de marcadores periféricos de doença”, comenta, insistindo: “Não temos isso na prática clínica, mas está em investigação; quer sejam as células tumorais circulantes quer outras metodologias, a exemplo das chamadas biópsias líquidas; como são os casos das vesículas extracelulares e das plaquetas educadas pelo tumor [TEPs], entre outros mecanismos periféricos, outras células ou outros produtos que possam ser detectados no sangue. Isto está tudo em estudo, mas ainda não está nada aprovado em concreto. No caso do mieloma múltiplo, não está ainda nada aprovado!”
Na realidade, por enquanto, “é necessário fazer, sempre, um aspirado medular”, repete a docente da FMUC, salientando: “Estamos em investigação com um trabalho que procura, de facto, estudar, em sangue periférico, algumas destas características que possam, eventualmente, vir a colmatar ou, mesmo, a ultrapassar o aspirado da medula.”
Diversos estudos demonstram que a terapêutica continuada se associa a um controlo mais eficaz do MM, o qual não se restringe apenas a uma fase mais precoce da doença. Estão, entretanto, disponíveis (e aprovados) alguns fármacos para o mieloma múltiplo, com diferentes mecanismos de acção e que podem ser administrados por via oral, como acontece com os imunomoduladores e os inibidores de proteasoma; o que se torna mais cómodo para os doentes, reduzindo, sempre que possível, as idas ao hospital e menor permanência nos estabelecimentos de saúde. É igualmente importante uma terapêutica de manutenção sucedânea ao transplante autólogo dos progenitores hematopoiéticos (TAPH). “Apesar de os referidos fármacos terem acções mais dirigidas, nós realizamos quimioterapia convencional, em alta dose, nos doentes mais jovens (até 60 anos de idade, se não tiverem nenhuma comorbilidade que contra-indique”, declara Catarina Geraldes, aludindo ainda ao TAPH como “parte do algoritmo terapêutico destes doentes, numa estratégia de consolidação”. “E os estudos, inclusivamente os mais recentes, mostram que, de facto, ainda há interesse de que os doentes que fazem essa estratégia de quimioterapia de alta dose, combinada com os novos regimes terapêuticas, beneficiam no prognóstico. Ou seja, ainda não conseguimos, nem de longe nem de perto, colocar de parte a quimioterapia convencional”, reafirma esta especialista do CHUC.
Reconhecendo a importância da investigação que permita validar novos marcadores que ajudem os médicos a tomar decisões mais seguras, o sinalAberto indagou acerca das pesquisas, estudos e ensaios clínicos que estão a decorrer em Coimbra, a pensar no tratamento dirigido, particularmente na área do MM.
Relativamente à investigação, Ana Bela Sarmento Ribeiro realça que “uma das áreas de trabalho é a do mieloma múltiplo”, a fim de se conseguir “uma melhor caracterização molecular e celular dos mecanismos envolvidos no mieloma múltiplo”. Esta professora da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, apercebendo-se de que há muitos mecanismos por identificar e por explicar, destaca, novamente, que “parte do trabalho da tese de doutoramento” de Catarina Geraldes foi neste domínio, “com o objectivo de identificar os ditos biomarcadores de diagnóstico, de prognóstico e, mesmo, na terapêutica – ou como monitorização da resposta à terapêutica”. “Até foram identificados alguns potenciais biomarcadores que, agora, precisam de serem validados”, afirma ao sinalAberto, notando que “isso é na parte das características [que permitem] avaliar ou conhecer melhor a doença, para além do que já era conhecido; e de conseguir, entre esses mecanismos todos, retirar quais os que podem ser potenciais biomarcadores de diagnóstico, de prognóstico e alvos terapêuticos” do mieloma múltiplo.
A necessidade de “amplificar a resposta” e de reforçar sinergias
“E há outra área que nós estamos a desenvolver, verificando novas terapêuticas para o mieloma múltiplo, não só utilizando as que já são conhecidas, quer na terapêutica convencional – a chamada quimioterapia convencional – quer as novas terapêuticas, fazendo combinações entre elas e até com outras que ainda não tenham sido testadas e que já estão a ser utilizadas noutras neoplasias”, prossegue a docente da FMUC, argumentando com a necessidade de “amplificar a resposta” e de reforçar sinergias, “diminuindo a dose de cada um dos fármacos”.
“Uma outra área em que nós estamos, neste momento, com muito interesse é – à luz do que acontecia já com a quimioterapia convencional – a [relacionada com o] desenvolvimento de resistências aos fármacos utilizados”, menciona Ana Bela Sarmento Ribeiro, elucidando: “Ou o doente já é resistente, logo de início – com a designada resistência nata – ou, então, pode adquiri-la no decurso do tratamento. E isso é válido também para as novas terapêuticas. Cada vez mais, começamos a ver que os doentes começam a não responder à terapêutica e a desenvolver mecanismos de resistência.”
“Temos também, aqui, um projecto em curso, em que, precisamente, se procura avaliar quais são esses mecanismos de resistência particular aos tais inibidores do proteasoma, aos imunomoduladores e aos anticorpos monoclonais, de modo que, no futuro, possamos dizer se aquele fármaco é ou não o indicado para aquele doente”, acrescentou a directora da Clínica Universitária de Hematologia da FMUC, notando: “Uma vez que não conseguimos determinar se ele, à partida, é resistente, provavelmente, não é o fármaco indicado. Mas isto ainda não é a prática clínica, volto a dizer; pois, estamos na área da investigação.”
“O grande objectivo é avaliar como vamos ultrapassar essa resistência. Um dos trabalhos que estão a ser desenvolvidos é, exactamente, a avaliação dos mecanismos de resistência às novas terapêuticas dirigidas a alvos moleculares no mieloma múltiplo”, especifica a coordenadora do grupo de investigação conimbricense.
Acerca do desenvolvimento das respectivas actividades científicas, Catarina Geraldes informa que, actualmente, “os ensaios clínicos já terminaram”. “Estamos, já, em processo de avaliação de vários ensaios, embora, por motivos de confidencialidade, não podemos mencioná-los. Estamos em fase de qualificação e de avaliação, atendendo a várias combinações terapêuticas”, expressa a médica, cuja tese de doutoramento, na especialidade de Medicina Interna (Hematologia), sobre o mieloma múltiplo – área de eleição da sua actividade assistencial diária – representou “a possibilidade de aprofundar conhecimentos relativos à sua etiopatogenia [estudo das causas das doenças e dos mecanismos patogénicos que actuam sobre o organismo para provocarem essas doenças]”, além de constituir “um desafio ao qual não poderia resistir”.
De forma resumida, Catarina Geraldes destaca que o “mieloma múltiplo sintomático (MM) é uma discrasia de plasmócitos consistentemente precedida por uma entidade pré-neoplásica, designada gamapatia monoclonal de significado indeterminado (MGUS), com uma fase intermédia de mieloma múltiplo indolente (MMI)”. Como adianta a investigadora (à época doutoranda), a “expressão de moléculas envolvidas na apoptose [que é uma forma de morte celular programada ou de “suicídio celular”], no ciclo celular, na angiogénese [formação de novos vasos sanguíneos] e na resistência, nos plasmócitos dos doentes com gamapatia monoclonais (GM), assim com o estado de metilação de genes relacionados com estes mecanismos não estão totalmente conhecidos”. Por conseguinte, o objectivo do seu trabalho académico “foi analisar e comparar os parâmetros referidos, nos subgrupos de GM, de modo a identificar novos biomarcadores de diagnóstico e de prognóstico, relevantes na etiopatogenia das GM e na progressão de MGUS para MM”.
Avaliar os efeitos de novos fármacos
Outro objectivo indicado por Catarina Geraldes, a respeito do seu trabalho de investigação inerente à tese de doutoramento (defendida em Maio de 2016), “consistiu em avaliar os efeitos de novos fármacos, dirigidos a alvos moleculares e com mecanismos de a[c]ção relacionados, em monoterapia e em associação com o bortezomib [é um fármaco antineoplásico, utilizado como segunda opção no tratamento de mieloma múltiplo, o qual inibe os proteasomas], numa linha celular de MM”.
Segundo esta investigadora da FMUC, com actividade assistencial no CHUC, o seu trabalho demonstra que “os plasmócitos não tumorais dos doentes com GM apresentam características moleculares que os diferenciam não apenas dos controlos, mas também dos plasmócitos tumorais destes doentes, parecendo influenciar a etiopatogenia das GM e a progressão de MGUS para MM, enquanto as características moleculares dos plasmócitos tumorais parecem ser mais relevantes na resposta à terapêutica e na sobrevivência”.
“O nosso estudo permitiu a identificação de novos biomarcadores moleculares com potencial diagnóstico e prognóstico nas GM. As análises in vitro mostram que a associação do partenolide [é uma lactona encontrada em maior concentração nas flores e nos frutos e que funciona como inibidor selectivo] com o bortezomib poderá contribuir para ultrapassar as resistências a este fármaco e constituir uma nova estratégia terapêutica em doentes com MM”, sustenta Catarina Geraldes.
No que concerne aos “trabalhos de investigação mais translacional, mas também com investigação clínica, em Coimbra e a nível nacional, a pandemia atrasou-nos muito”, repara Ana Bela Sarmento Ribeiro. Pode entender-se por medicina translacional (ou ciência translacional) como uma disciplina que está a avançar rapidamente na investigação biomédica e que visa acelerar a descoberta de novas ferramentas de diagnóstico e de novos tratamentos, através de uma abordagem multidisciplinar altamente colaborativa. De acordo com a EUPATI (The European Patients’ Academy on Therapeutic Innovation), “a medicina translacional baseia-se em avanços básicos da investigação (por exemplo, estudos de processos biológicos que utilizam culturas de células ou modelos animais) e recorre a estes para desenvolver novos tratamentos ou procedimentos médicos”.
Segundo Catarina Geraldes, “apenas, cerca de três por cento dos doentes são de mieloma múltiplo”. Referindo-se a um estudo de origem norte-americana que abrange “doentes com cancro, de um modo geral, incluídos em ensaios clínicos”, a responsável pela Unidade de Transplantes Hematopoiéticos do CHUC, diz que são transpostos “os resultados dos ensaios clínicos para os outros 97% dos doentes”. “Na verdade, existem vários estudos, concretamente, em doentes com mieloma múltiplo. Por exemplo, um estudo mostra, precisamente, que os doentes elegíveis para ensaio clínico versus não elegíveis para ensaio clínico, numa população de doentes não elegíveis para transplante (ou seja, com mais idade), os prognósticos são distintos”, menciona a especialista do CHUC, registando que isso “significa, de facto, que a elegibilidade para transplante já pressupõe que é um doente com melhor reserva funcional, com menos comorbilidades e, portanto, um doente com um estado geral melhor do que muitos outros doentes”.
Questionada sobre a importância dos dados do mundo real no tratamento de doentes com MM, Catarina Geraldes comenta que “há vários estudos de mieloma múltiplo que incluíram milhares de doentes da dita vida real”. E explicita: “Os estudos prospectivos [aqueles que começam no presente e continuam avançando no tempo] dão-nos, muitas vezes, uma perspectiva mais realista daquela que é a utilização dos agentes terapêuticos em ambiente de vida real. Efectivamente, em ambiente de ensaio clínico, há uma listagem grande no grupo de critérios de inclusão e de exclusão, os quais têm de ser criteriosamente respeitados.”
“Na vida real, não podemos detectar os doentes todos, nem vermos que têm este critério ou aquele, acabando, sempre, por haver muitos doentes com muitas outras patologias; e algumas delas não estão bem controladas, o que vai ter reflexos no próprio resultado terapêutico”, atenta a médica, também responsável pela implementação do sistema de gestão da qualidade aplicado à Unidade de Transplantes Hematopoiéticos (UTH) dos Hospitais da Universidade de Coimbra (CHUC). “São doentes que têm de suspender a terapia mais cedo, que têm de reduzir doses e que têm muitas inter-recorrências e complicações muito maiores… Isto para dizer que, de facto, os dados da vida real são importantes, no sentido de nos validarem ou não alguns resultados dos ensaios clínicos”, expõe Catarina Geraldes.
Elegibilidade dos doentes para o transplante autólogo
Em face da diferenciação de candidatos para um transplante autólogo, há que ter em conta múltiplas circunstâncias. No que concerne à elegibilidade dos doentes para o transplante autólogo – no qual as células precursoras da medula óssea provêm do próprio indivíduo transplantado (com efeito, dador e receptor) –, Catarina Geraldes garante que “há vários factores” a considerar. Um deles é, desde logo, a idade da pessoa afectada com o mieloma múltiplo. “Doentes até aos 70 anos de idade”, sublinha a especialista do CHUC, argumentando, que “a maior parte dos estudos apresenta doentes até aos 75 anos de idade, mas a prática comum nas unidades de transplante, se não existirem comorbilidades, segue as recomendações europeias de tratamento (publicadas em 2021)”. Efectivamente, aconselha-se que os intervencionados não ultrapassem os 70 anos de idade, que “não apresentem comorbilidades que sejam, de alguma forma, uma contra-indicação” e que “tenham atingido uma boa resposta com a terapêutica de indução”. Recorde-se que a terapia de indução é a primeira parte do tratamento que recorre a um conjunto de medidas terapêuticas para tratar o cancro; e a sua finalidade é “induzir” a remissão.
“Os doentes devem ter atingido uma boa resposta, previamente, com as combinações de fármacos – como Ana Bela Sarmento Ribeiro já mencionou –, avançando-se para uma estratégia de consolidação, com quimioterapia de alta dose no transplante autólogo e, depois, uma estratégia de manutenção, também com o objectivo de preservar o controlo mais profundo e para mantermos a resposta durante mais tempo”, comunica Catarina Geraldes ao sinalAberto.
Ao perguntarmos se, nesta nova estratégia médica para identificar e tratar as neoplasias malignas, aumentando o tempo de sobrevivência e a qualidade de vida dos doentes, se mantém o paradigma de diagnóstico de muitas doenças do foro oncológico, Ana Bela Sarmento Ribeiro verifica que, “neste momento, em várias neoplasias, o paradigma já está completamente alterado”. “Em muitas neoplasias, nas quais o diagnóstico era meramente histológico ou morfológico, a morfologia é, cada vez mais, muito importante. Porém, no caso das neoplasias hematológicas, a morfologia continua a ter um papel bastante importante, mas, em algumas delas, começa a ser substituída ou, pelo menos, complementada com o diagnóstico molecular”, particulariza a professora associada, com agregação em Hematologia, a exercer na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.
“Estou a lembrar-me de várias neoplasias, a exemplo do cancro do pulmão, em que também já há diversos subtipos moleculares, além dos subtipos histológicos. Isso também começa a acontecer com algumas neoplasias hematológicas, em que a morfologia é importante, embora, depois, a parte molecular é que nos permite fazer o diagnóstico”, expressa a docente universitária e investigadora. “A leucemia mielóide crónica é o exemplo que todas as pessoas conhecem. Efectivamente, a identificação daquela anomalia molecular é que faz o diagnóstico”, comprova, admitindo: “Temos outras neoplasias em que a parte morfológica ainda conta muito, como sucede com as síndromes mielodisplásicas. Em muitas neoplasias, o estudo morfológico e histopatológico ainda é o standard [ou padrão], digamos assim; mas, em vários casos, cada vez mais, está a ser complementado ou, eventualmente, substituído – sobretudo, complementado – com o estudo molecular. E isso altera o paradigma do diagnóstico.”
Sem criar expectativas ilusórias na sobrevivência dos doentes, atendendo principalmente às alterações moleculares e celulares no mieloma múltiplo e às suas implicações clínicas e terapêuticas, quisemos saber em que medida o trabalho científico da equipa de investigadores coordenada por Ana Bela Sarmento Ribeiro se diferencia do que está a ser feito no País, relativamente à identificação de novos biomarcadores de diagnóstico e de prognóstico relevantes no estudo da doença oncológica. A responsável pelo Laboratório de Oncobiologia e Hematologia (LOH) da FMUC responde que, “a nível do País, há outros grupos que trabalham em investigação na área do mieloma múltiplo, com os quais é estabelecida colaboração”.
Diferentes projectos de investigação com pontos de contacto
“Os projectos não são iguais, como é óbvio, mas têm alguns pontos de contacto. Aliás, nós temos o Grupo Português de Mieloma [no qual Catarina Geraldes e Rui Bergantim (cuja entrevista dá corpo à próxima peça jornalística no âmbito do dossiê “A medicina personalizada em hemato-oncologia”) são vice-presidentes] com vários trabalhos em curso, alguns de natureza mais clínica e outros de investigação laboratorial e translacional”, anota Ana Bela Sarmento Ribeiro, informando que o grupo de investigação que lidera (na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, em ligação com o CHUC) “participa nos dois tipos de estudos”.
“Recentemente, submetemos um projecto para financiamento e que tem a ver com a identificação, precisamente, de marcadores periféricos da doença, que nos permitam chegar ao diagnóstico; ou, pelo menos, monitorizar a resposta à terapêutica”, realça a investigadora, enfatizando: “Para o diagnóstico, provavelmente, nós vamos precisar sempre de um aspirado medular. O aspirado medular vai ser sempre importante. A não ser que esses marcadores periféricos sejam de tal forma eficientes… Mas, posteriormente, para a monitorização e follow up [acompanhamento] dos doentes, e também para a avaliação da resposta, se calhar, se esses marcadores periféricos vierem a ser úteis e fidedignos, poderão substituir os aspirados medulares. Contudo, ainda não sabemos. Por isso, estamos com esse projecto – do qual somos proponentes – em que participam grupos nacionais e internacionais, envolvendo vários hospitais na região de Lisboa, no Porto e na região Centro”.
“Nós tentamos que se faça, de facto, trabalho de investigação com parcerias, porque o País é pequeno. Se queremos ter resultados fortes, robustos, teremos de envolver o máximo de hospitais e de doentes. Obviamente, tem de haver sempre alguém a coordenar. E também temos colaboradores internacionais nesta área, em particular, no mieloma múltiplo”, acentua a dirigente da Clínica Universitária de Hematologia e Biologia Molecular Aplicada da FMUC, para quem o conhecimento das vias moleculares envolvidas no MM levou ao desenvolvimento dos inibidores do proteasoma.
Convidada a expressar-se sobre a tecnocientização da medicina e da “molecularização” em face da humanização do acto médico, Ana Bela Sarmento Ribeiro julga que “a relação médico-doente nunca se pode perder”. “Nem se deve perder, independentemente de poderem existir, como já existem em algumas áreas, robôs de apoio às técnicas cirúrgicas. Porém, acho que isso nunca se sobrepõe ao médico. De facto, podem ajudar e são muito úteis. A inteligência artificial – de que se fala tanto – e todas as técnicas informáticas são muito úteis, mas o doente é uma pessoa. É um ser vivo constituído por moléculas, mas não só!”, considera a médica e investigadora.
“Não podemos esquecer que o doente é um todo; temos de o ver como um todo”, adverte. “Nessa perspectiva, a relação médico-doente continua a ser muito importante e espero que todos estes avanços tecnológicos nunca se sobreponham à interacção entre o profissional de saúde e o utente”, sublinha a especialista do Serviço de Hematologia Clínica do CHUC, reconhecendo que o MM ainda é uma doença incurável e que a resistência aos fármacos constitui um dos factores que compromete a sobrevivência destes doentes.
No alcance das novas terapêuticas e da medicina personalizada, indagamos se se observa uma autêntica participação do doente na decisão e na escolha do tratamento. Nessa conformidade, Ana Bela Sarmento Ribeiro frisa que a sua equipa médica, “pelo menos, em grande parte, procura envolver o doente nessa decisão, mesmo nas terapêuticas de que estamos a falar e que já estão aprovadas pelas agências internacionais”. “Na maior parte dos casos, temos de pedir autorização à Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde – Infarmed e, para isso, o doente tem de assinar um consentimento informado. Ou seja, o doente tem de ser informado e aceitar fazer esse tratamento”, exemplifica a médica, a qual admite: “Caminhamos, cada vez mais, para uma participação activa do doente. Mais que não seja, porque ele tem de dar o seu consentimento informado. E deve ser um consentimento verdadeiramente informado. Temos de informar o doente e de explicar-lhe quais são os riscos e os benefícios de determinada terapêutica.”
Procurando seguir as recomendações oficiais, Ana Bela Sarmento Ribeiro garante que, antes da submissão a qualquer cuidado de saúde, incluindo a realização de exames, a participação em qualquer investigação ou num ensaio clínico, os doentes são sempre esclarecidos. Por outro lado, “quando propomos tratar um doente com determinado sistema terapêutico no nosso serviço [hospitalar], isso é apresentado ao colégio dos especialistas, em reuniões para esse fim, e a decisão é conjunta; depois, essa proposta é colocada ao doente, que a aceitará ou não.”
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Limites terapêuticos a respeitar
Ao reconhecer que há limites a observar não só quanto à eficácia no tratamento, mas também no que respeita aos efeitos adversos, a investigadora – que materializa igualmente actividade no Instituto de Investigação Clínica e Biomédica de Coimbra – recorda que “os fármacos, apesar de serem dirigidos a alvos moleculares, têm toxicidades secundárias, muitas delas mensuráveis e controláveis”. “E, quando não são, teremos de suspender a terapia!”, expressa, argumentando: “Não vamos comprometer a sobrevivência de um doente, em detrimento de uma determinada eficácia. Nós queremos o doente vivo e em bom estado. Há limites! Só devemos utilizar uma terapêutica para um doente que seja elegível. Eu coloco o exemplo do transplante, em que a elegibilidade entra em linha de conta com a idade e com as comorbilidades da pessoa.”
“De facto, a investigação tem evoluído muito nos últimos anos, principalmente no âmbito das novas terapêuticas”, reitera Ana Bela Sarmento Ribeiro, comentando: “Se repararmos bem, milhares de fármacos são investigados todos os anos, mas só chegam ao mercado meia-dúzia deles com aplicabilidade clínica. Muitos outros ficam pelo caminho, porque não tinham a eficácia desejada ou porque as toxicidades secundárias eram impossíveis de manipular. Portanto, nem tudo chega à prática clínica.”
No quadro dos avanços que se manifestam relativamente aos movimentos de transformação da biomedicina e à dita medicina personalizada ou de precisão, a especialista – que é membro da Sociedade Portuguesa de Hematologia – repete: “Temos de analisar muito bem o nosso doente; de avaliá-lo sob os pontos de vista clínico e psicológico, porque o doente é um todo. Assim, vemos qual é a melhor estratégia para aquele doente em particular, escolhendo a terapêutica sem comprometer a sua eficácia na pessoa que está à nossa frente, com as suas particularidades. Eu dou ainda o exemplo deste período de pandemia, em que tivemos de adaptar algumas terapêuticas, precisamente, a essa situação, não comprometendo a eficácia, dando preferência aos medicamentos administrados por via oral, em detrimento dos injectáveis.”
Interrogada acerca de eventuais desigualdades no acesso aos benefícios das novas terapêuticas, a nossa entrevistada (que é, igualmente, coordenadora do grupo de investigação “Epidemiologia da Sinalização Celular, terapia clínica e do cancro”) acolhe a ideia de que “os fármacos de que estamos a falar são muito caros”. Porém, repara: “Dentro do possível, temos conseguido dar aos nossos doentes aquilo que achamos ser o melhor. Agora, tem de haver bom senso. Se calhar, noutros casos fora da hemato-oncologia, o benefício que traz para os doentes pode não compensar os custos, embora isso também seja muito questionável. Há alguns tumores ou neoplasias sólidas em que, de facto, a sobrevivência é de três meses. O que parece pouco. Mas é relativo, sobretudo quando uma pessoa não tem mais nada que lhe seja oferecido: três meses com alguma qualidade de vida.”
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Fazer melhor um diagnóstico precoce
“Sou médica e sei que não me posso alhear completamente dos custos. No entanto, prefiro falar daquilo que é melhor para o doente. Temos tido alguns constrangimentos em algumas fases, especialmente, quando não existe avaliação do impacto económico”, manifesta Ana Bela Sarmento Ribeiro, frisando que, “em todos os fármacos que já têm avaliação económica, não tem havido grande limitação no seu acesso”. “Naquilo que eu faço e de que tenho conhecimento no hospital em que estou inserida [pólo dos Hospitais da Universidade de Coimbra – CHUC], não há diferenças nesse aspecto”, assegura a médica, insistindo: “O custo não é um factor discriminatório. Se esse fármaco não estiver disponível para A, também não há para B nem para C. É porque ainda não tem a avaliação de impacto económico, apesar de poder estar aprovado.”
Ao aludir aos “endpoints” clínicos – ou seja, aos resultados ou marcadores clínicos, enquanto medidas de efeitos relativos à ocorrência de determinada patologia, aos sintomas ou anormalidades que constituem um desfecho alvo em ensaios clínicos –, Ana Bela Sarmento Ribeiro salienta que a actividade de investigação do grupo que coordena tem privilegiado o estudo dos mecanismos moleculares envolvidos na susceptibilidade e no desenvolvimento de cancros, particularmente as neoplasias hematológicas.
“Tem a ver com as áreas de avaliação das características moleculares da doença que permitam melhorar o diagnóstico e o prognóstico do doente, bem como desenhar ou desenvolver novos alvos terapêuticos, além da avaliação das assistências às terapêuticas. Essas são as nossas linhas de investigação na área do mieloma múltiplo”, explica ao sinalAberto, aludindo que, de uma forma geral, “as prioridades estabelecidas no campo da investigação – agora, mais translacional – dependem dos grupos de investigadores e dos seus próprios interesses”, incidindo bastante nos domínios da imunoterapia e da terapia celular. “Isso replica um bocadinho o que se faz a nível internacional”, expressa, persistindo na intenção de “caracterizar melhor as doenças e de identificar novos e melhores marcadores de diagnóstico e alvos terapêuticos”.
O grupo de investigadores que Ana Bela Sarmento Ribeiro lidera está, igualmente, interessado em “fazer melhor um diagnóstico precoce” do MM, cuja sobrevivência dos doentes pode variar. Graças à introdução das novas terapias, o prognóstico melhorou bastante esta forma tumoral maligna, que se caracteriza pela produção de proteínas atípicas por parte de células anormais resultantes das células plasmáticas (um tipo de glóbulos brancos produtores de anticorpos).
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GLOSSÁRIO:
ADN – A sigla assinala o ácido desoxirribonucleico (ou DNA, iniciais da designação em inglês DeoxyriboNucleic Acid), que é um composto orgânico cujas moléculas contêm as instruções genéticas que coordenam o desenvolvimento e o funcionamento de todos os seres vivos e de alguns vírus, as quais permitem transmitir as características hereditárias de cada ser vivo.
Agente patogénico – Tudo o que representa uma ameaça para as células, a exemplo das bactérias, dos vírus, moléculas de veneno ou células cancerosas.
Anticorpo – Molécula de proteína produzida pelos linfócitos, como resposta à presença de um antigénio específico, ao qual ataca e neutraliza. Os anticorpos são os primeiros defensores do corpo contra os agentes invasores, reconhecem certas moléculas proteicas destes como sendo estranhas e fixam-se quimicamente a elas.
Anticorpos monoclonais – São anticorpos produzidos em laboratório, usados para diagnóstico ou para o tratamento do cancro e de outras doenças.
Antigénio – Molécula (de “veneno” ou da parede celular de uma bactéria) que desencadeia uma resposta imunitária. Refira-se que nos vírus existem dezenas de antigénios potenciais. Diga-se ainda que o sistema imunitário tem a capacidade de memorizar os antigénios com os quais já tenha contactado, o que o deixa bem preparado para os voltar a enfrentar, se for o caso. Assim, os antigénios activam os anticorpos.
Apoptose – Ou suicídio da célula. É a morte programada da célula, por activação de determinados genes, motivada por algum defeito no seu ADN ou por já ter sido atingida determinada fase do seu desenvolvimento.
Autólogo – Os tecidos ou as células autólogas são os tecidos ou as células derivadas do mesmo indivíduo. Por exemplo, a pele transferida de uma parte do corpo para outra é um tecido autólogo; nas terapias avançadas, as células-tronco são removidas, armazenadas e posteriormente devolvidas à mesma pessoa. Os transplantes autólogos são usados para tratar vários tipos de cancro do sangue. O transplante autólogo de células-tronco se diferencia do transplante alogénico de células-tronco, em que o doador e o receptor das células-tronco transplantadas são pessoas diferentes.
Basófilos – São leucócitos que coram com as bases (ou substâncias básicas) e que estão, normalmente, nos tecidos periféricos, contendo grânulos de histamina que libertam quando encontram tecido lesado.
BCR-ABL1 – Identifica uma sequência genética encontrada no cromossoma 22 anómalo de algumas pessoas que apresentam determinadas formas de leucemia.
Biomarcadores – Também conhecidos por marcadores biológicos, são entidades que podem ser medidas experimentalmente e que indicam a existência de determinada função normal ou patológica de um organismo ou de uma resposta a um agente farmacológico. Os mais significativos em investigação médica são os marcadores bioquímicos, os quais podem ser utilizados na prática clínica para fins de diagnóstico ou para identificar a gravidade ou a evolução de uma patologia. Considerando o tema de partida do nosso trabalho jornalístico, importa salientar que a utilização de biomarcadores tem permitido a individualização de alguns tratamentos, bem como o desenvolvimento da medicina personalizada.
Biomarcador clássico – Em medicina, o biomarcador “clássico” é um parâmetro ou padrão laboratorial que o clínico pode usar como auxiliar de diagnóstico ou numa decisão terapêutica.
Biomarcadores de diagnóstico – São os biomarcadores usados com intenções de diagnóstico e que, efectivamente, proporcionam a confirmação de diagnósticos difíceis de fazer, além de ajudarem na identificação de indivíduos com alto risco de desenvolver uma doença, possibilitando uma actuação terapêutica oportuna ou atempada.
Carcinogénios – São substâncias que potenciam o risco de desenvolvimento de cancro, principalmente devido às alterações no ADN do núcleo da célula.
Clone – Este termo, que deriva do grego “klón” (rebento), refere-se à estirpe de células proveniente da cultura de uma única célula ou também à população originada da reprodução assexuada de uma única unidade, quer seja uma célula quer seja um organismo. Um clone celular é, pois, um conjunto de células geneticamente idênticas, com origem, por divisão mitótica, numa única célula-mãe. No âmbito deste trabalho jornalístico, um clone diz respeito a um subtipo de células neoplásicas.
Complexo de Golgi – Na biologia celular, o aparelho de Golgi ou o complexo de Golgi é um organelo de células eucarióticas (ou seja, com um núcleo celular cercado por uma membrana e com vários organelos) que realiza diversas actividades vitais.
Consentimento informado – Entende-se por consentimento informado a autorização esclarecida prestada por uma pessoa, antes da submissão a qualquer cuidado de saúde, incluindo, entre outros actos médicos, a realização de exames, a participação em investigação ou em ensaio clínico. Esta autorização pressupõe uma explicação e a respectiva compreensão quanto ao que se pretende fazer, ao modo de actuar, à razão e ao resultado esperado da intervenção consentida.
Estadiamento – É a avaliação da extensão da doença, efectuada após o diagnóstico de um tumor. Através desta avaliação, é possível classificar o estádio em que o tumor maligno se encontra (normalmente, de I a IV, em ordem crescente de gravidade). Refira-se que a estratégia de tratamento depende do estadiamento. O estadiamento é, pois, importante para o estabelecimento de estratégias terapêuticas, assim como para a determinação do prognóstico da doença, condicionando o objectivo do tratamento.
Fármacos de alvo molecular – As drogas ou fármacos de alvo molecular (como os inibidores de tirosina-quinase e os anticorpos monoclonais) funcionam actuando directamente no tumor e preservando as células saudáveis. Ou seja, atacam moléculas com alterações genéticas específicas que fazem com que uma célula normal se transforme em tumoral, tornando-se uma opção de tratamento menos agressiva ao organismo e, em alguns casos, mais eficiente contra a doença.
Genotóxico – Agente químico capaz de danificar a informação genética no interior de uma célula, causando mutações ou induzindo modificações na sequência nucleotídica ou da estrutura em dupla hélice do ADN de um organismo vivo.
Imunoglobulina – Qualquer proteína existente no plasma capaz de actuar como um anticorpo.
Imunoglobulinas monoclonais – Em afecções malignas caracterizadas por proliferação plasmocitária, como sucede no mieloma múltiplo, a presença de imunoglobulinas monoclonais permite a apreciação da massa tumoral.
Imunomoduladores – São os fármacos ou agentes terapêuticos que modificam uma resposta imunitária ou o funcionamento do sistema imunitário.
Imunotoxicidade – Tem a ver com os danos no sistema imunológico causados pela exposição a substâncias químicas. Os testes de imunotoxicidade são um procedimento padrão no desenvolvimento de substâncias com potencial, como sucede com os novos medicamentos. Os sintomas de imunotoxicidade podem incluir o aumento de ocorrências ou gravidade de doenças infecciosas ou cancro. Os agentes tóxicos também podem provocar doenças auto-imunes, nas quais o tecido saudável é atacado pelo sistema imunológico do próprio organismo.
Inibidor – Quando o alvo terapêutico é uma enzima e a sua função fica impedida pela união de um fármaco, este é denominado inibidor.
Investigação translacional – Diz-se da aplicação prática de investigação científica (sobretudo, na área da medicina).
Leucemia mieloide crónica (LMC) – Na LMC, muitas células estaminais transformam-se num tipo de glóbulos brancos anómalos, chamados granulócitos.
Linfócitos – Tipo de glóbulos brancos presentes, sobretudo, no sistema linfático. Combatem infecções virais através de destruição celular.
Linfócitos B – Ou grandes células B. Quando estimulados, transformam-se em plasmócitos, que produzem ou sintetizam anticorpos.
Linfoma não-Hodgkin – O linfoma não-Hodgkin é um tumor que começa ou que tem origem no sistema linfático.
Marcador tumoral – Substância, geralmente proteica, que pode ser doseada no sangue e usada para indicar a quantidade de tumor presente no organismo. Ou seja, uma substância passível de avaliação quantitativa no sangue, em outros líquidos orgânicos e também nos tecidos, podendo detectar a presença ou o desenvolvimento de uma neoplasia. Além disso, pode contribuir para a sua identificação e para a avaliação do grau de malignidade, e de qual é o órgão de origem, estabelecendo a extensão da doença, ajudando ainda a avaliar a resposta terapêutica e a descobrir precocemente a recidiva.
Mieloma múltiplo (MM) – De causa incerta, embora se lhe possa atribuir uma componente genética, o mieloma começa na medula óssea e, ao disseminar-se, causa danos e dores nos ossos (por vezes, fracturando-os), afectando a produção de anticorpos e sujeitando os doentes a infecções. Porém, apesar de afectar os ossos, o mieloma múltiplo tem origem nas células sanguíneas e não nas células do osso. No MM, as células do plasma monoclonais segregam apenas um tipo de anticorpos e multiplicam-se de forma desordenada, ocupando ou invadindo a medula óssea.
MGUS – Monoclonal gammopathy of undetermined significance, que envolve a produção da proteína-M (ou proteína monoclonal) pelos plasmócitos não neoplásicos na ausência de outras manifestações típicas do MM.
Monoclonais – Todas as células malignas de um único tumor são geneticamente idênticas. Todavia, são necessárias várias alterações genéticas ou mutações para que as células normais se tornem malignas.
Monoterapia – Terapia com um medicamento de cada vez (pop.).
Neoplasia – Crescimento tecidual decorrente da acção de agentes carcinogénicos ou não.
Nucleótido (ou nucleotídeo) – Em biologia molecular e bioquímica, são os blocos construtores dos ácidos nucleicos: o ADN e o ARN.
Plaquetas – São as células mais pequenas do sangue, que resultam da fragmentação de uma célula gigante (megacariócito), as quais, em actividade, se ligam a substâncias estranhas e aderem à parede lesada dos vasos sanguíneos (agregação plaquetária).
Plasmócito – Estamos a falar do último estado da evolução dos linfócitos B. Os plasmócitos são células com um retículo endoplasmático particularmente abundante e que sintetizam imunoglobulinas que libertam no meio extracelular. Os locais de fixação dos antigénios das imunoglobulinas segregadas correspondem aos que são marcados sobre a membrana dos linfócitos B pelos receptores B. A activação dos linfócitos B para a fixação de antigénios específicos desencadeia a síntese das imunoglobulinas e a sua secreção.
Plasmocitoma – Tumor maligno de células plasmáticas.
Progenitores hematopoiéticos – Os progenitores hematopoiéticos (ou células estaminais hematopoiéticas) são células estaminais com o potencial de originar quaisquer células sanguíneas, podendo ser obtidas através da medula óssea e do sangue periférico (ou também do sangue do cordão umbilical).
Proteasoma – É uma protease dependente de ATP (a adenosina trifosfato é uma das substâncias fundamentais das estruturas vivas, sendo utilizada como unidade energética nas transformações que criam a vida) usada para destruir proteínas danificadas ou proteínas com erros de síntese, as quais são marcadas para degradação através da ligação de cadeias de ubiquitina em série, que serão reconhecidas para que o processo se inicie. A ubiquitina é uma proteína encontrada nas células eucariotas constituída por 76 aminoácidos que desempenha uma função importante na regulação de proteínas. Como também informa, a académica Ana Bela Sarmento Ribeiro, os proteasomas são complexos enzimáticos que degradam proteínas, algumas delas com grande relevância no mieloma múltiplo.
Síndromes mielodisplásicas (SMD) – É um grupo de distúrbios relacionados com a produção de células hematopoiéticas com proliferação clonal de uma célula anómala. Concretamente, são doenças hemato-oncológicas que se caracterizam pela presença de uma medula óssea geralmente hipercelular, embora a medula óssea não seja capaz de produzir células sanguíneas normais em quantidade suficiente.
Sobrevivência global – A taxa de sobrevivência global indica a percentagem de pacientes que, no âmbito de um estudo, estão vivos num determinado período de tempo após o diagnóstico.
Sobrevivência livre de doença – Foi definida como o tempo, em dias, desde o desenvolvimento terapêutico ou a cirurgia (se for o caso) até à recidiva do cancro ou morte, por qualquer causa.
Sobrevivência livre de progressão – Período depois um tratamento que não conseguiu eliminar a doença durante o qual o cancro permanece estável, ou que não progride.
Terapêutica alvo – É a utilização de fármacos que “detectam” e destroem selectivamente as células cancerígenas, preservando, assim, as células saudáveis. A maior parte destes tratamentos ainda se encontra em fase experimental, sendo normalmente utilizados em associação com outros tratamentos no combate a determinados tipos de cancro. Parece permitir uma maior qualidade de vida ao doente, por se pensar que provoca menos efeitos secundários do que a quimioterapia tradicional.
Tirosinase – Também conhecida por monofenol monoxigenase, é uma enzima que contém cobre e que catalisa a oxidação de fenóis, quer em animais quer em plantas. A melanina é um dos produtos da acção desta enzima.
Transplantação autóloga de progenitores hematopoiéticos (TAPH) – Torna possível a recuperação hematopoiética, a seguir a regimes de condicionamentos mieloablativos com doses elevadas de quimioterapia/radioterapia. É assim denominada porque as ditas células progenitoras hematopoiéticas nem sempre são obtidas na medula óssea.
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NOTA: Para a elaboração deste glossário, foram principalmente consultados o Dicionário Infopédia de Termos Médicos e as páginas electrónicas da EUPATI (The European Patients’ Academy on Therapeutic Innovation) e da Liga Portuguesa Contra o Cancro, bem como www.infoescola.com e a enciclopédia livre Wikipédia.
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01/12/2021
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Abordagem única e dirigida substitui a clássica “one-drug-fits-all”
(*) Primeiro trabalho de reportagem, no jornal sinalAberto, inserido no dossiê “A medicina personalizada em hemato-oncologia”, no âmbito das Bolsas de Jornalismo em Saúde 2020, atribuídas pelo Sindicato dos Jornalistas, em parceria com a Roche.