A moral da Novartis: Zolgensma

 A moral da Novartis: Zolgensma

Criança com atrofia muscular espinhal (AME) recebe o Zolgensma, dose única aplicada por meio de uma sonda. (Créditos fotográficos: Divulgação – noticias.uol.com.br)

(com Cristina Galocha, farmacêutica)

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Tudo serve para desviar atenções. De súbito, e ainda antes do tempo para nomear o novo primeiro-ministro, o Presidente da República surge sob os holofotes da suspeita, acusado, no que carece de prova, de influenciar o tratamento de favor de duas crianças, pela obtenção de um medicamento conhecido como o mais caro do Mundo. Na posição que ocupa o visado, o favorecimento de cidadãos é inaceitável, dado pôr em causa o dever de imparcialidade do mais alto magistrado da nação.

Onasemnogeno abeparvovec (Zolgensma) é usado em pacientes com AME tipo I. (Créditos fotográficos: Divulgação/Novartis)

Por outro lado, favorecer duas crianças cuja vida depende de um medicamento, facultando-lhes uma terapia que atenua a progressão de uma doença rara e incapacitante não parece constituir-se um aspecto digno de censura moral por aí além. Para sermos sinceros, não fossem todos os casos até agora não explicados, que são muitos – emails, distanciamento de pai (Marcelo) e filho (Nuno), administração do fármaco antes ainda de as crianças serem detentoras de número de utente do SNS, outras e quaisquer irregularidades –, poder-se-ia cotejar o caso com o de uma amnistia papal, de arbitrária discriminação positiva. Isso é mau? As crianças chamam-se Maitê e Lorena, e são luso-brasileiras – faz isso alguma diferença? Quer dizer, o facto de serem crianças e de não poderem esperar produz ainda alguma diferença? Sabemos, além disso, que a mãe das crianças não é uma mulher pobre nem de classe baixa, inábil para o exercício de influência que lhe permita chegar à presidência de um Estado, mas isso – pertencer a uma classe média-elevada e ser expedita – faz também a diferença?

Não é, dir-se-á, pressuposto que o Presidente da República atenda a pedidos a si dirigidos. Não: o Presidente não é a nossa mãe, nem a Virgem Maria nem o Pai Natal. E pode não nos merecer, por razões várias, entre as quais a ideológica, o nosso mais evidente respeito e estima. Mas a quem se recorre, depois de todas as instâncias, nos casos de natureza especial e em casos de manifesto desespero, estarem esgotadas?

A terapia genética Zolgensma (onasemnogeno abeparvovec) da Novartis tem permitido que bebés com atrofia muscular espinhal (AME) alcancem marcos adequados à idade. (europeanpharmaceuticalreview.com)

Finalmente, perguntamo-nos: a aflição da mãe das crianças, o contacto com o filho do Presidente, o embaraço em Belém, tudo isso não seria evitável, se o medicamento mais caro do Mundo fosse um fármaco acessível? Onde reside, afinal, a responsabilidade da indústria farmacêutica, cujos lucros astronómicos são incapazes de cobrir as despesas de fármacos indicados no tratamento de doenças raras? Quem nos desvia a atenção da verdadeira raiz do problema e nos reserva o bilhete para o mais medíocre espectáculo da politiquice nacional?

Para sermos curtos e grossos, por que diabo não é discutido o preço pornográfico deste tipo de medicamentos, afectado ao velho sistema capitalista global? Não será o Bem da Humanidade um princípio suficientemente convincente para submeter a indústria farmacêutica a regras do Direito Internacional?

A não ser que se prefira casos de corredores palacianos.

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11/12/2023

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António Jacinto Pascoal

António Jacinto Pascoal (nasceu no ano de 1967, em Coimbra) é mestre em Literaturas e Culturas Africanas de Língua Portuguesa, especializando-se nas obras poéticas de Nicolás Guillén e José Craveirinha. Estreou-se, em 1991, com «Pátria ou Amor» (Prémio da Associação Académica de Coimbra, prefaciado por Agustina Bessa-Luís). Ensaísta, poeta e contista, surge editado em variadíssimas antologias poéticas, é prefaciador de antologias e autores diversos, e traduziu a obra poética da chilena Violeta Parra. Publicou «Os Dias Reunidos» (1998), «A Contratempo» (2000), «Terceiro Livro» (2003), «No Meio do Mundo» (2005), «As Palavras da Tribo» (2005), «Cello Concerto» (2006), «Pátria ou Amor» (2011) e «As Sete Últimas Palavras» (2017), bem como «Mover-se o Fogo» (2018). Poemas seus estão traduzidos em Inglês e em Finlandês. Em 2018, editou o álbum fotográfico «Banda Euterpe de Portalegre – A Visão do Som». O conto «Os Joelhos do meu Pai» foi primeiramente editado na antologia «Contos da Língua Toda» (em 2018).

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