A mulher que amou demais: Mariana Alcoforado (1664)
Beja – 1664
Convento de Nossa Senhora da Conceição. Duas jovens freiras estão junto da janela que dá para o exterior. Observam dois cavaleiros oficiais franceses que passam, nas montadas, perto do convento. Uma das religiosas é Mariana Alcoforado.
É este o momento-chave que vai marcar a tua vida, Mariana Alcoforado. Fixaste aquele jovem cavaleiro francês e, por força alguma terrena ou celestial, não vais conseguir retirar o olhar dele.
Ainda não sabes o seu nome, mas estás quase a pressentir que o jovem cavaleiro será a única chama da tua vida, a chama que te vai iluminar a vertiginosa felicidade e a que te vai acender a descida ao Inferno.
Mariana Alcoforado olha fixamente para um dos cavaleiros.
De nada valerão os votos que fizeste a este convento: castidade, obediência e pobreza. Aos dois primeiros vais renunciar até te faltarem as forças. Porque vais amar perdidamente este homem, até mergulhares no mais vil sofrimento.
O jovem oficial cavaleiro francês Noël Bouton pára o cavalo. Também olha fixamente para Mariana e sorri. Mariana retribui o sorriso.
Noël Bouton conduz o cavalo em direção à janela onde está a Mariana. Cumprimenta e sorri de novo para ela. Mariana corresponde com um sorriso discreto, sem conseguir disfarçar o seu interesse por ele.
Hoje, ninguém saberia de ti, Mariana Alcoforado, se não tivesses escrito as mais belas e dolorosas cartas de amor conhecidas na literatura europeia.
Passaram-se cinco dias. Mariana Alcoforado olha, através da janela do convento, para o exterior. Está ansiosa por avistar Noël Bouton.
Já nada te fará voltar atrás, Mariana Alcoforado. Sentes um presságio e sabes que não é de Deus nem de Nossa Senhora da Conceição, a padroeira do teu convento e de Portugal.
Queres ver novamente o gracioso oficial francês. Não tens dúvidas: ele sorriu para ti.
E sabes que sorrirá de novo, se te avistar. Quando isso acontecer, tu não vais disfarçar a afabilidade nem esconder o afeto.
Desejas vê-lo. Queres saber como se chama, como passa o dia, por que razão está em Beja, assim como ouvir, pela sua voz, mais palavras, em vez de um mero cumprimento.
Anseias por conhecer a sua história, que luminosa deve ser, ao contrário da tua, tão triste e encarcerada nestas paredes, desde os 11 anos de idade.
Treze anos antes. Acompanhada da mãe, a pequena Mariana é recebida no convento pela abadessa. A criança está triste, cabisbaixa.
Neste momento, és uma criança de 11 anos, Mariana, e farias tudo para ficares com os teus, a nobre e abastada família Alcoforado.
Mas há tempos ingratos, com costumes severos e mentalidades intransigentes. Apenas os filhos varões herdam os haveres da família. Aos outros irmãos apenas resta a boa vontade do varão ou, o mais comum, enveredar pela vida militar ou religiosa.
Convento. Uma freira corta o cabelo à menina Mariana, que já se encontra com trajes conventuais.
A tua mãe prometeu-te ao Convento de Nossa Senhora da Conceição, assim como à tua irmã mais nova, que também há de chegar, dentro de cinco anos.
Apesar da tua juventude, Mariana Alcoforado, sabes que jamais terás vocação religiosa.
O convento será, para ti e para tantas outras como tu, um presídio para o corpo e para a alma.
Mariana faz juramento perante a abadessa e outras freiras.
A abadessa vai-te perguntar se, perante Deus, juras castidade, pobreza e obediência. E tu, Mariana Alcoforado, vais responder: – Sim!
Os votos são para toda a vida. E, mais do que isso, juraste perante Deus.
Acabados os votos, as religiosas passam junto de Mariana e fazem o sinal da cruz.
Beja – 1664
Montado a cavalo, desta vez sozinho, Noël Bouton aproxima-se da janela do convento onde viu Mariana Alcoforado.
Tal como tinhas desejado, Mariana Alcoforado, o jovem oficial francês voltou ao mesmo sítio onde te acorrentou com o olhar.
Mariana avista o oficial francês através da janela do convento.
Agora, sabes que o desejo de repetir o admirável instante do encontro não é só teu. Também é dele.
A ansiedade quase te sufoca, Mariana Alcoforado. Corres em direção ao chamamento silencioso, voz poderosa de todas as ordens.
Na janela, Mariana, de sorriso rasgado, cumprimenta Noël. Este retribui o sorriso e o cumprimento.
Vais ficar a saber que o seu nome é Noël Bouton, filho do conde de Chamilly.
Noël Bouton é capitão e está ao serviço de um regimento francês que está a apoiar o exército luso na Guerra da Restauração contra Espanha, que ainda não reconheceu a independência de Portugal.
O jovem capitão Noël é um entre centenas de oficiais franceses que chegaram a Portugal, com o general conde de Schomberg, para tomar parte na Guerra da Restauração contra Espanha.
Desde 1 de dezembro de 1640, Portugal recuperou a sua independência perante a Espanha. Desde então, não houve mais paz neste reino.
A poderosa Espanha não reconhece a independência portuguesa e tudo está a fazer para readquirir a coroa lusa.
Noël Bouton, tens 28 anos e és capitão de cavalaria do regimento francês. Estás às ordens do conde de Schomberg, o mais hábil comandante do seu tempo.
O teu contingente está instalado no Alentejo, por ser aí que os espanhóis fazem as principais incursões sobre o solo português.
Faz um ano que Portugal teve uma importante vitória na Batalha do Ameixial, perto de Estremoz. Mas a vitória decisiva vai ocorrer em 1665, na Batalha de Montes Claros, ao lado de Borba.
1668
Tanta guerra tinha de acabar. D. Carlos II de Espanha e D. João VI de Portugal assinam um tratado de paz, sob a mediação de D. Carlos II da Grã-Bretanha.
O tratado, que tem 13 artigos, estabelece uma paz duradoura e a cessação imediata das hostilidades entre os reinos de Espanha e de Portugal.
E mais diz:
Deve haver “boa correspondência e amizade”, esquecendo os danos e ofensas passadas, podendo voltar a circular livremente as pessoas e as mercadorias.
Ambas as partes devem restituir prisioneiros e artilharia, deixando as praças e terras indevidamente ocupadas, com exceção de Ceuta, que fica em poder de Espanha.
1664
Convento. Mariana Alcoforado passa todo o tempo que tem livre à janela. Aguarda por Noël. Aí vem ele, cavalga apressado.
A jovem freira encosta a face às grades da janela para ficar visível.
Mais um encontro, e já são tantos! Entre algumas religiosas, não passa despercebida a troca de olhares, de sorrisos e de palavras entre Mariana e Noël. No convento, entre o tocar dos sinos e as orações, comenta-se em surdina.
(ouvir)
Já não é só por cortesia que o oficial francês te visita repetidas vezes, Mariana Alcoforado. Não consegues ocultar o fascínio que tens por ele.
As irmãs estão inquietas perante a tua ousadia de quebrares o voto de obediência. Mas é a tua felicidade que te empurra para um qualquer lugar bendito, que sabes não ser o do convento.
Imploras para que Noël Bouton regresse, sempre e cada vez mais vezes, porque já não consegues imaginar o dia sem a luz dos seus olhos.
Por ter vindo da abastada família Alcoforado, Mariana goza de alguns privilégios. Tem um quarto anexo privado mais espaçoso do que as celas do convento, com janela, cama, escrivaninha, móvel e utensílios de higiene.
Não escolheste a vida religiosa nem reconheces qualquer chamamento divino, Mariana Alcoforado. Sentes-te desconfortável, apesar da regalia de teres aposentos privados financiados pelos teus pais. Mas, agora, estás apaixonada e tudo vais fazer para cumprir o teu desejo.
Enquanto o convento dorme, há um vulto que desliza na penumbra. Uma religiosa percorre, cautelosamente, o espaço interior do convento em direção à porta exterior.
É a Mariana. Abre a porta exterior do convento.
(ouvir)
Sorrateiramente, entra um homem de capuz. É Noël Bouton, pois claro!
Tu, Mariana Alcoforado, protegida pelas sombras da noite, abriste a porta à maior ousadia da tua vida.
Introduzir um homem no convento é transgredir as regras, mas nada comparado com o que ainda vais pecar nesta noite e nas outras que se seguirão.
Nesta casa de Deus, ensinam-te que deves amar, Mariana Alcoforado, mas não um amor carnal. Instruíram-te no sentido de que todo o amor lascivo é heresia profana. Mas o teu, acreditas, não pode ser assim, por ser tão puro e profundo.
Como pode alguém dizer que estás a ofender Deus, se amar é o maior desígnio dele? Esta pergunta colocarás a ti, vezes sem conta, Mariana Alcoforado. E a cada resposta tu abrirás, novamente, a porta do convento.
Como pode tanta felicidade e amor serem reprovados por Deus? Esta pergunta também colocarás a ti, vezes sem conta, Mariana Alcoforado. E a cada resposta tu abrirás, de novo, o teu corpo a Noël.
Enquanto depender de ti, Mariana Alcoforado, nada te fará deter. Tentarás respirar o teu deleite até ao último fôlego.
Passadas duas semanas. Duas freiras confidenciam sobre algo grave à abadessa. Esta fica atónita.
Nada que não pudesses imaginar, Mariana! O teu amor, que agora se transformou em pecado, foi descoberto.
A madre superior manda chamar a prevaricadora das leis do convento. Mariana surge a chorar. Sabe que não tem argumentos, por mais racionais e compreensíveis que sejam.
Para ti, Mariana Alcoforado, não há delito maior do que privarem-te da tua paixão. Sabes que te espera um castigo, por infringires as normas do convento e por quebrares o teu juramento perante Deus. Não te conformas com tão ignóbil injustiça. Dizes à madre superior que o teu nascimento foi o teu único pecado para estares num convento.
Prepara-te para momentos difíceis. O mundo não acabará, a rotina do convento continuará, mas a tua vida não será a mesma.
As más notícias correm rápidas e os escândalos são ainda mais velozes. A cidade de Beja coscuvilha e o regimento francês graceja da tua aventura amorosa com Noël Bouton. Mas, pior ainda, a tua família já sabe. A tua mãe foi chamada ao convento e negoceia o teu futuro com a madre superior. “Manchaste o nome da família e quem te desonrou também há de temer a fúria dos Alcoforados!” – assim diz a tua mãe.
Incontáveis vexames e castigos não serão suficientes para te arrependeres de tão luminosa paixão, Mariana. Estás disposta a padecer as mesmas chagas de Cristo, porque ele também sofreu tanto por amor.
Aquartelamento francês. Sete dias depois, Noël Bouton prepara as bolsas de viagem no cavalo. Está de partida.
Noël Bouton, sabes que os Alcoforados querem que respondas pelo ultraje que infligiste à família. Monta o teu cavalo e sai do regimento quanto antes.
(ouvir)
Pediste autorização ao comandante para regressares a França, a pretexto da doença do teu irmão. Mariana há de pensar que não partiste para França, mas, sim, que fugiste de Beja. Seja como for, amaste uma freira portuguesa, ainda que esse estatuto não seja muito digno de um oficial militar.
Veneraste Mariana com afeto, ela reconhece. Ofereceste-lhe pulseiras, o teu retrato e, a mais preciosa de todas as prendas, o teu amor ou seja lá o que for. Mas sabes que Mariana apenas quer uma coisa na vida: a tua presença!
Convento. Obstinada, Mariana refugiou-se no seu quarto durante dias e dias, que ela já não sabe quantos. Escreve mais uma carta.
De Noël Bouton restam-te as felizes memórias e a esperança de que, um dia, ele virá buscar-te, tal como prometera. Mas os meses passam, Mariana Alcoforado! Permaneces encarcerada no convento e o teu incondicional amor está suspenso no tempo.
Escreves.
Escreves compulsivamente palavras desesperadas de amor e de martírio, como se, em ti, um desses lados não pudesse existir sem o outro.
Escreve, Mariana Alcoforado, diz todas as palavras que se conjugam na tua alma. Não deixes nenhuma esquecida ou, pior do que isso, em silêncio.
Carta:
“Parece-me, no entanto, que até ao sofrimento, de que és a única causa, já vou tendo afeição.
Mal te vi, a minha vida foi tua, e chego a ter prazer em sacrificar-ta.
Mil vezes ao dia os meus suspiros vão ao teu encontro, procuram-te por toda a parte e, em troca de tanto desassossego, só me trazem sinais da minha má sorte, que cruelmente não me consente qualquer engano.”
Navegas entre a tua insustentável solidão e a angústia do esquecimento.
Carta:
“Cessa de te mortificar em vão, e de procurar um amante que não voltarás a ver, que atravessou mares para te fugir, que está em França rodeado de prazeres, que não pensa um só instante nas tuas mágoas, que dispensa todo este arrebatamento e nem sequer sabe agradecer-to.
Mas não, não me resolvo, a pensar tão mal de ti e estou por demais empenhada em te justificar.
Nem quero imaginar que me esqueceste. Não sou já bem desgraçada sem o tormento de falsas suspeitas? E porque hei de eu procurar esquecer todo o desvelo com que me manifestavas o teu amor?
Tão deslumbrada fiquei com os teus cuidados, que bem ingrata seria se não te quisesse com desvario igual ao que me levava a minha paixão, quando me davas provas da tua.”
O ardor e a mágoa desorientam-te, Mariana Alcoforado. As tuas felizes memórias lutam com o tormento da ausência.
Carta:
“Como é possível que a lembrança de momentos tão belos se tenha tornado tão cruel? E que, contra a sua natureza, sirva agora só para me torturar o coração?
Ai!, a tua última carta reduziu-o a um estado bem singular: bateu de tal forma que parecia querer fugir-me para te ir procurar.
Fiquei tão prostrada de comoção que durante mais de três horas todos os meus sentidos me abandonaram: recusava uma vida que tenho de perder por ti, já que para ti a não posso guardar.
Enfim, voltei, contra vontade, a ver a luz: agradava-me sentir que morria de amor, e, além do mais, era um alívio não voltar a ser posta em frente do meu coração despedaçado pela dor da tua ausência.”
As tuas cartas fervem de emoções e gostarias que as dele também. Estarias a amá-lo em toda a parte, se pudesses, se pudesses…
Carta:
“Não enchas as tuas cartas de coisas inúteis, nem me voltes a pedir que me lembre de ti.
Eu não te posso esquecer, e não esqueço também a esperança que me deste de vires passar algum tempo comigo.
Ai!, porque não queres passar a vida inteira ao pé de mim? Se me fosse possível sair deste malfadado convento, não esperaria em Portugal pelo cumprimento da tua promessa: iria eu, sem guardar nenhuma conveniência, procurar-te, e seguir-te, e amar-te em toda a parte.”
Por agora basta de escrever, Mariana Alcoforado. O teu irmão vai despachar essa carta, que vai chegar às mãos de Noël Bouton. Despede-te como sabes e como podes.
Carta:
“Adeus. Não posso separar-me deste papel que irá ter às tuas mãos. Quem me dera a mesma sorte! Ai, que loucura a minha! Sei bem que isso não é possível!
Adeus; não posso mais. Adeus. Ama-me sempre, e faz-me sofrer mais ainda.”
Não consegues deixar de sonhar que um dia poderás estar ao lado do Noël. Mas, ao mesmo tempo, martirizas-te com a dura realidade.
Carta:
“Reconheço que me enganei, ao pensar que procederias com mais lealdade do que é costume: os excessos do meu amor parece que deviam pôr-me acima de quaisquer suspeitas e merecer uma fidelidade que não é vulgar encontrar-se.” (…)
“Já lá vão seis meses sem receber uma única carta tua. Só à cegueira com que me abandonei a ti posso atribuir tanta desgraça: não tinha obrigação de prever que as minhas alegrias acabariam antes do meu amor?” (…)
“Nenhum alívio há para o meu mal, e se me lembro das minhas alegrias maior é ainda o meu desespero.”
Carta:
“Terá sido então inútil todo o meu desejo, e não voltarei a ver-te no meu quarto com o ardor e arrebatamento que me mostravas?
Ai, que ilusão a minha! Demasiado sei eu que todas as emoções, que em mim se apoderavam da cabeça e do coração, eram em ti despertadas unicamente por certos prazeres e, como eles, depressa se extinguiam.”
Sofres tanto, Mariana Alcoforado, como se o teu infinito amor fosse uma oferenda de Satanás, uma espécie de chave para a porta do Inferno.
Carta:
“Sei bem qual é o remédio para o meu mal, e depressa me livraria dele se deixasse de te amar.
Ai, mas que remédio… Não; prefiro sofrer ainda mais a esquecer-te.
Não posso censurar-me ter desejado um só instante deixar de te querer.” (…)
“Orgulho-me de te haver posto em estado de já não teres, sem mim, senão prazeres imperfeitos.” (…)
“Não estou arrependida de te haver adorado. Ainda bem que me seduziste.
A crueldade da tua ausência, talvez eterna, em nada diminuiu a exaltação do meu amor.
Quero que toda a gente o saiba, não faço disso nenhum segredo; estou encantada por ter feito tudo quanto fiz por ti, contra toda a espécie de conveniências.
E já que comecei, a minha honra e a minha religião hão de consistir só em amar-te perdidamente toda a vida.”
Estás frágil e deprimida, Mariana. Reduziste o planeta ao teu quarto e o mundo à ilusão de te reencontrares com Noël.
Carta:
“Desde que partiste, nunca mais tive saúde, e todo o meu prazer consiste em repetir o teu nome mil vezes ao dia.
Algumas freiras, que conhecem o estado deplorável a que me reduziste, falam-me de ti com frequência.
Saio o menos possível deste quarto onde vieste tanta vez, e passo o tempo a olhar para o teu retrato, que amo mil vezes mais que à minha vida.
Sinto prazer em olhá-lo, mas também me faz sofrer, sobretudo quando penso que talvez nunca mais te veja.”
Foste destituída das funções de precetora e de escrivã. Agora, Mariana Alcoforado, ocupas o cargo mais baixo do convento. És simplesmente porteira, tarefa que não exige qualquer habilitação nem destreza psíquica.
Todas, no convento, pensam que estás doida e, nesta condição, vais permanecer durante algum tempo.
Carta:
“Que há de ser de mim? Que queres tu que eu faça? Estou tão longe de tudo quanto imaginei!
Esperava que me escrevesses de toda a parte por onde passasses e que as tuas cartas fossem longas; que alimentasses a minha paixão com a esperança de voltar a ver-te; que uma inteira confiança na tua fidelidade me desse algum sossego, e ficasse, apesar de tudo, num estado suportável, sem excessivo sofrimento.” (…)
“Não sei o que sou, nem o que faço, nem o que quero; estou despedaçada por mil sentimentos contrários.”
“Não deveria oferecer-te o que tenho de mais precioso? E não devo sentir-me satisfeita por ter feito o que fiz?”
Como é possível que memórias de momentos tão agradáveis se tenham tornado tão cruéis? Colocas esta pergunta vezes sem conta, Mariana Alcoforado, mas a resposta porque tanto imploras nunca a terás.
Carta:
“Ordena-me que morra de amor por ti! Suplico-te que me ajudes a vencer a fraqueza própria de uma mulher, e que toda a minha indecisão acabe em puro desespero.
Um fim trágico obrigar-te-ia, sem dúvida, a pensar mais em mim; talvez fosses sensível a uma morte extraordinária, e a minha memória seria amada. Não é isso preferível ao estado a que me reduziste?” (…)
“Era melhor nunca te ter visto. Ah, sinto até ao fundo a mentira deste pensamento e reconheço, no momento em que escrevo, que prefiro ser desgraçada amando-te a nunca te haver conhecido.
Aceito, assim, sem uma queixa, a minha má fortuna, pois não a quiseste tornar melhor.” (…)
“Adeus; parece-me que te falo de mais do estado insuportável em que me encontro; mas agradeço-te, com toda a minha alma, o desespero que me causas, e odeio a tranquilidade em que vivi antes de te conhecer.”
Não padeces por sofrimento físico, mas sim por amor, Mariana Alcoforado. É uma estranha e lancinante forma de amar.
Carta:
“Antes de dizeres que me querias já eu te julgava digno de amor, manifestaste-me a tua paixão, fiquei deslumbrada, e abandonei-me a ti perdidamente.”
“Como pudeste, conhecendo o meu coração e a minha ternura até ao fundo, decidir-te a deixar-me para sempre e a expor-me a este tormento.”
“Bem sei que te amo perdidamente; no entanto, não lamento a violência dos impulsos do meu coração; habituei-me à sua tirania, e já não poderia viver sem este prazer que vou descobrindo: amar-te entre tanta mágoa.
O que me desgosta e atormenta é o ódio e a aversão que ganhei a tudo.
A família, os amigos e este convento são-me insuportáveis.
Tudo o que seja obrigada a ver, tudo o que inadiavelmente tenha de fazer, me é odioso.
Tão ciosa sou da minha paixão que julgo dizerem-te respeito todas as minhas ações e todas as minhas obrigações.
Sim, tenho escrúpulo de não serem para ti todos os momentos da minha vida.”
Depois de teres sido proscrita e renegada, agora toda a gente no convento se comove com o teu sofrimento, que não pára de jorrar.
Carta:
“Até as freiras mais austeras têm dó do estado em que me encontro, que lhes merece alguma simpatia, e até cuidado. Todas se comovem com o meu amor, só tu ficas profundamente indiferente, escrevendo-me apenas frias cartas, cheias de repetições, metade do papel em branco, dando grosseiramente a entender que estavas morto por acabá-las.”
Tens um jovem tenente à espera da tua carta. Ele se encarregará de a fazer levar até ao teu amado.
Com a tua última carta, vais enviar a Noël o seu retrato, as cartas que te escreveu e as pulseiras que te ofereceu.
Queres queimar as perturbadoras memórias, para recuperares a tua vida e o juízo.
Carta:
“Escrevo-lhe pela última vez e espero fazer-lhe sentir, na diferença de termos e modos desta carta, que finalmente acabou por me convencer de que já me não ama e que devo, portanto, deixar de o amar.”
“Creio que me teria sido menos doloroso continuar a amá-lo, apesar da sua ingratidão, do que deixá-lo para sempre.
Descobri que lhe queria menos do que à minha paixão, e sofri penosamente em combatê-la, depois que o seu indigno procedimento me tornou odioso todo o seu ser.
O orgulho tão próprio das mulheres não me ajudou a tomar qualquer decisão contra si.
Ai, suportei o seu desprezo, e teria suportado o ódio e o ciúme que me provocasse a sua inclinação por outra! Ao menos, teria qualquer paixão a combater.
Mas a sua indiferença é intolerável. Os impertinentes protestos de amizade e a ridícula correção da sua última carta provaram-me ter recebido todas as que lhe escrevi e que, apesar de as ter lido, não perturbaram o seu coração.”
Como dizes, esta é a tua última carta, Mariana Alcoforado, mas ninguém acredita – nem mesmo tu – que o teu amor por Noël Bouton de Chamilly se apague para sempre, como se nunca tivesse existido paixão tão exacerbada e impiedosa.
Carta:
“Muito tempo vivi num abandono e numa idolatria que me horrorizam, e o remorso persegue-me com uma crueldade insuportável.
Sinto uma vergonha enorme dos crimes que me levou a cometer; já não tenho, pobre de mim!, a paixão que me impedia de conhecer-lhes a monstruosidade.
Quando deixará o meu coração de ser dilacerado? Quando é que me livrarei desta cruel perturbação?”
“De si nada mais quero. É preciso deixá-lo e não pensar mais em si. Que obrigação tenho eu de lhe dar conta de todos os meus sentimentos?”
Poucos anos depois, em 1669, é publicado em Paris um livro intitulado “Cartas Portuguesas”.
No mesmo ano, em Colónia, é editado um exemplar com o título “Cartas de amor de uma religiosa portuguesa”. Nesta edição, uma nota refere que as missivas foram dirigidas ao cavaleiro Noël Bouton de Chamilly.
Desde então, a verdadeira autoria das cartas tornou-se numa apaixonante discussão, particularmente em França e em Portugal.
Os estudiosos franceses inclinam-se para que as cartas tenham sido escritas por um literato francês, enquanto os portugueses acreditam que a autoria é de Mariana Alcoforado.
Seja como for, Mariana Alcoforado e Noël Bouton coexistiram no tempo em Beja e o escândalo do convento foi real.
Progressivamente, ao longo dos anos, Mariana Alcoforado restabeleceu-se da depressão e recuperou o cargo de precetora e de escrivã. Mais tarde, passou a ter uma posição de relevo no convento. Adquiriu o título de soror e chegou à posição de abadessa.
Mariana Alcoforado morreu em 1723, no Convento de Nossa Senhora da Conceição, em Beja. Tinha 83 anos.
09/05/2022