A música, o transcendente e a paz
É naturalmente escasso o eco que nos chegou do tempo em que a Humanidade começou. Escrita inexistente, artefactos poucos, valeu-nos para o conhecimento daqueles dias a lembrança e o engenho de quem, há tantos milénios, resolveu gravar ou pintar nas pedras quadros do dia-a-dia. Era a arte a antecipar-se a todas as outras formas de expressão que se lançaram no futuro. Mesmo sendo resumos, o que ali vemos. Momentos breves, episódios marcantes, figuras centrais, cores e sulcos que escaparam às erosões. Bichos muitos e variados, às vezes em repouso, outras vezes em fuga dos homens que os vão caçar, mas estes não vão de mãos nuas – levam armas.
Os homens caçavam as bestas, para alimento e agasalho. E caçavam-se uns aos outros também, por razões do território, que era terra e era água, mas também pela conquista de mais braços na invenção da escravidão. Talvez a paz tenha sido o estado natural dos protagonistas da Humanidade inicial, mas há o rasto de muita guerra nas paredes pintadas e gravadas de grutas espalhadas por todo o Mundo. Nunca saberemos que música seria a destes guerreiros, já que a vida útil dos sons é mais curta do que as dos pigmentos e sulcos. Mas, como se vê, não foi grande a evolução a nível de processos de relacionamento social sempre que o desentendimento prevalece sobre o acerto de razões.
Já que de nascimento se falou – no caso, da Humanidade –, a primeira música que ouviremos é uma canção de embalar, indutora e mensageira da paz essencial ao acto de adormecer, estado maior de conforto dos que na vida se iniciam.
OUVIR: “Embalo do Algarve”
Nunca se poderá queixar este infante de não ter sido informado da existência de um “Papá Negro” que, porém, a cantiga mantém à distância, invocando porventura os preconceitos de uma civilização que categorizou, numa paleta cromática, os júbilos e os temores. Ou, então, talvez o negro seja, aqui, apenas a qualidade ocultadora da noite e dos males que na sombra possam morar. São os mistérios das palavras, que as visitaremos ainda, mais adiante. Para já, o que nos interessa é constatar que os humanos reconheceram na música, desde o início dos tempos, poderes transcendentais – para o bem e para o mal.
Do embalo à encomendação das almas, da euforia festiva à prontidão guerreira, cabe à música sublinhar as existências nos diversos palcos da vida humana, variando consoante as condições e as intenções, transformando-se ao longo da História, sem nunca deixar de ser uma associação de sons que tem poder sobre os sentimentos, sobre os estados de espírito e sobre as motivações.
Por isso, na invenção dos deuses e sua instalação entre os comuns, sempre a dimensão dos templos se acompanhou da dimensão da música, uns e outra são casas maiores do que as das vidas habituais dos humanos, ao longo de milénios tementes às divindades e àqueles que se acreditou serem seus oficiais.
OUVIR: “Hino do Querubim”
Funciona a História de acordo com estranhas regras, usando os elementos naturais e estoutro de elevada complexidade a que chamamos Humanidade, capaz de todas as pazes, mas também das guerras todas.
Stanley Kubrick, um cineasta norte-americano que viveu entre 1928 e 1999, encenou, no filme “2001 – Odisseia no Espaço”, a sua visão da batalha inicial. Dois grupos distintos de seres primeiros, símios ainda, encontram-se à beira de uma poça de água pouca. A água seria, porventura, suficiente para matar aquelas sedes, mas o primeiro impulso foi o da conquista, não foi o da conciliação. Não bastaram as mãos nuas para o confronto de irracionalidades. Um fémur ali posto serviu de arma amplificadora da agressão. À arma atirada ao ar pelo vencedor transformou-a Kubrick em nave espacial num salto temporal de que a Ciência é incapaz – foi, de novo, a Arte o veículo mensageiro de uma dúvida que permanece: o que queremos nós fazer das ferramentas que usamos?
Afirme-se, desde já, que às ferramentas inventadas nos tempos todos da Humanidade não cabem as culpas das mãos que as usam. A Arte mesma! Ferramenta ainda há pouco referida por funções documentais, conheceu contraditórios usos, quais tenham sido, no caso da música, o da função bailadeira e o acompanhamento de rituais sacrificiais. Acostumada aos usos todos, no espectro que vai do horror ao sublime, a música do século XX soube traduzir em sons o horror absoluto, a ausência total de humanidade, como naquela obra que o compositor polaco Krzysztof Penderecki compôs, em 1960, em memória das vítimas de Hiroshima.
O som global dos 25 instrumentos de corda que vamos ouvir não nos deixa perceber “quem” é violino, violeta, violoncelo ou contrabaixo. O início da obra consiste numa sucessão de gritos que resumem o estupor que durou o instante da deflagração, ampliado nesta obra até aos oito minutos e 37 segundos. Não iremos ouvir a obra seguida – tão-só alguns quadros, para que tenhamos a noção das potencialidades da orquestra (da música) na tradução de um momento escuro que, tal como no quadro Guernica, de Pablo Picasso, obriga a arte a inventar vocabulários.
OUVIR: “Threnody for/to the Victims of Hiroshima”
É grande e diversificado o reportório musical que se foca nas grandes tragédias. E é contrastante, também, nos recursos utilizados para exprimir o desejo de Paz. A ausência total de melodia e de harmonia do lamento que acabámos de ouvir é acompanhado, nesta civilização de muitos fazeres, por outros tipos de abordagem. Um grupo brasileiro do início da década de 1970 publicaria a canção “Rosa de Hiroshima”, em música composta para um poema de Vinicius de Moraes. Cantava a canção Ney Matogrosso.
OUVIR: “Rosa de Hiroshima”
Enquanto veículo de mensagem, educadora de convicções, a música goza de reconhecido valor. Também em Portugal, o regime salazarista procurou veicular o seu entendimento acerca da guerra através da música dita ligeira, isoladamente ou integrando revistas e filmes, como este “Fado do Zé Ninguém”, do filme “Maria Papoila”, de 1937, a dois anos do início da II Guerra Mundial.
OUVIR: “Fado do Zé Ninguém”
No lado contrário ao dos autores do fado que acabámos de ouvir, encontra-se Fernando Lopes-Graça, militante comunista, pacifista, grande nome da música, da critica musical e do ensaio, que aborda o tema da guerra a partir de uma canção popular do Douro Litoral. A obra coral “Os homens que vão pra guerra” opõe-se, com cristalina claridade, à tese ainda agora exposta de que só se morre uma vez. Para Lopes-Graça só se vive uma vez.
OUVIR: “Os homens que vão pra guerra”
Para a maioria de nós, a guerra é um segmento do noticiário, um acontecimento lá longe que não nos interfere no acendimento do interruptor da luz, no funcionamento da torneira, na possibilidade de atravessar a rua. E, para a maioria dos nossos jovens, é apenas um jogo mais da imensa biblioteca electrónica em que ocupam horas do seu tempo livre a matar inimigos virtuais, gozando as delícias dos, cada vez mais reais, gráficos de computador. Seja como for, a guerra é longe.
E era longe também no ano do apelo belicista daquele “Fado do Zé Ninguém”, convocando patriotismos para uma batalha que se revelaria sangrenta para os avós dos nossos universitários. “Não tenhas medo da morte / que só se morre uma vez”, dizia, ainda há pouco, o actor-soldado – e era certa a macabra convicção. Nas colónias africanas, morreram só uma vez e para sempre mais de 10 mil soldados das Forças Armadas portuguesas e cerca de 100 mil africanos, entre guerrilheiros e população. Mas 20 mil dos nossos jovens que partiram para África regressaram a casa mutilados, morrendo, alguns deles, várias vezes numa vida só. É a memória dos regressados que Sérgio Godinho traduz na canção “Fotos do Fogo”, escrita, há já 30 anos, sobre imagens de um álbum com apenas 50/60 anos.
OUVIR: “Fotos do Fogo”
A guerra é sempre um assunto de trincheira, um assunto pessoal. Por muito que se insista em colocar a guerra no patamar da transcendência, do desígnio extra-humano, do acesso à eternidade e à gratidão futura sem prazo de validade, a guerra é sempre o final do poema de Fernando Pessoa: “Lá longe, em casa, há a prece: / ‘Que volte cedo, e bem!’ / (Malhas que o Império tece!) / Jaz morto, e apodrece, / O menino da sua mãe”. Percebe-se, por isso, que os hinos militares evidenciem toda uma euforia de missão – partir para a guerra nunca poderia ser menos do que uma subida honra, uma distinção conquistada nas “sortes” que os adolescentes da minha infância celebravam numa incursão pela Rua Direita. Garantido o capital do vigor juvenil, cabia ao decrépito Estado Novo saber orientá-lo.
OUVIR: “Angola é Nossa!”
Angola era nossa, mas não era das mães dos soldadinhos. As mães dos soldadinhos portugueses chegavam a nem ambicionar os filhos inteiros – queriam, apenas, nunca ter de os chorar nas bordas de uma cova, queriam nunca receber, das mãos do senhor chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, a medalha de lata esmaltada – insultuosa recompensa de quem combate nas guerras dos outros. É essa a razão do lamento que Adriano Correia de Oliveira e Rui Pato aqui nos trazem, na canção escrita por Reinaldo Ferreira e José Afonso.
OUVIR: “Menina dos Olhos Tristes”
Referi, ainda há pouco, as guerras dos outros e explico, agora, o que pretendo dizer, que melhor o disse o poeta Sílvio Rodriguez, quando afirmou que “o que é mais difícil aprende-se depressa. / Só o mais belo é que pode custar-nos a vida”. Falámos de trincheiras lá longe, mas nunca é demais referirmos as mais próximas trincheiras que se insinuam e arrebanham vozes e votos para o impudor do aprofundamento das injustiças, cujo expoente maior é a pobreza. Cantaram-se essas trincheiras em que soldados fardados, mandados no elogio da guerra, combatiam outros soldados desfardados determinados na conquista da paz. Era sofrimento na mesma, o destes guerrilheiros sem armas, mas escolhido em nome próprio e dos seus semelhantes de convicção e de classe. Cantavam os primeiros, em vistosas marchas saudadas de braço no ar.
OUVIR: “Hino da Mocidade Portuguesa”
Violenta que pudesse ser a luta pela paz no Portugal em que a mocidade era alegremente convocada para erguer torres e rasgar clareiras, as canções que a censura proibia e a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) confiscava eram relatos da condição humana, em que a transcendência era a da muita coragem física e intelectual.
Nesta luta desigual, apresentaram-se conterrâneos nossos como Alberto Vilaça, Louzã Henriques e Arnaldo Simões Januário, entre muitos, todos eles presos, torturados, mas, assim mesmo, resistentes. Para eles, escreveu David Mourão Ferreira um poema que Alain Oulmain musicou e Amália Rodrigues cantou. O fado “Abandono” foi proibido pela PIDE e acabou por adoptar a designação corrente de “Fado Peniche”, em homenagem aos encarcerados na Fortaleza de Peniche (ou Fortaleza de São Francisco).
OUVIR: Fado “Abandono”
Permitam-me que destaque, dos atrás referidos, Arnaldo Simões Januário, nascido em Coimbra, barbeiro, anarquista, sindicalista. Foi preso, pela primeira vez, em 1927, e enviado, a 22 Outubro de 1931, para o Campo de Concentração de Oecússi, em Timor. Devolvido à liberdade, entrou na clandestinidade e envolveu-se na preparação do 18 de Janeiro de 1934, na sequência da qual foi preso no dia 26 daquele mês e encarcerado na Prisão do Aljube, vindo do Comando da Polícia de Segurança Pública (PSP) de Coimbra. Foi violentamente torturado e enviado para a Prisão da Trafaria. Em 8 de Setembro de 1934, seguiu para a Fortaleza de Angra do Heroísmo, nos Açores e, em 23 de Outubro de 1936, Arnaldo Januário foi transferido para o Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, onde acabou por morrer a 27 de Março de 1938, vitimado por uma biliosa anúrica e sem qualquer assistência médica ou medicamentosa.
OUVIR: “Le temps des cerises”
O 18 de Janeiro de que atrás se falou foi um acontecimento inspirado na Comuna de Paris, a que pertence “Le Temps des cerises”. Por alguma razão que aos musicólogos e historiadores há-de interessar, há, na música adoptada pelos partidários da paz, uma intenção estética que não é a do esmagamento às mãos dos metais da orquestra, entre o peso dos trombones e o triunfalismo dos trompetes. O tempo das cerejas é o nosso tempo, ano a ano, metáfora da esperança da passagem dos dias, que é privilégio dos vivos no tempo de paz.
Diferente tempo há-de ter sido o do compositor francês Olivier Messian, prisioneiro no campo de concentração nazi de Gorlitz. Escreveu e apresentou, ali, em Janeiro de 1941, o “Quarteto Para o Fim do Tempo”, para piano, violino, violoncelo e clarinete. Exceptuando Messian, todos os músicos eram amadores. No concerto, perante os militares alemães e prisioneiros, Messian explicou ter-se inspirado no décimo capítulo do “Livro do Apocalipse”, (ou “Apocalipse Segundo São João”), onde está dito: “Eu vi um anjo pleno de força, descendo do céu, revestido de uma nuvem, tendo sobre a cabeça um arco-íris. O seu rosto era como o sol, seus pés como colunas de fogo. Pousou o seu pé direito sobre o mar e o seu pé esquerdo sobre a terra, e, mantendo-se sobre o mar e sobre a terra, elevou a mão para o Céu e jurou por Aquele que vive pelos séculos dos séculos, dizendo: não haverá mais Tempo: mas no dia da trombeta do sétimo anjo, o mistério de Deus se consumará”. De transcendência viemos aqui falar.
Naquela noite fria de Janeiro de 1941, amontoados nos bancos do barracão N.º 27, ouvimos – alguns levados por um entusiasmo inesperado, outros como que incomodados por ritmos e sons a que não estavam habituados – o nascimento daquilo que Messiaen desejava que fosse “um grande acto de fé”, escreveria, mais tarde, um prisioneiro do Campo.
OUVIR: “Dança da Fúria para as sete trombetas”
Dmitri Shostakovitch compôs a “Sinfonia n.º 7” (em Leninegrado) no tempo da guerra mais feroz que a Humanidade conheceu. Porém, aquela que garantiu uma paz mais duradoura nos territórios da Europa. Por razões que aqui não cabe descortinar, não se tratou, mesmo na Europa, de uma paz sem fogo, sem sofrimento, sem barbárie. Mas o que interessa reter é que a conquista da paz é possível e que a música tem um lugar essencial na mobilização das diversas vontades – também as da paz. A apresentação da sinfonia na cidade sitiada aconteceu a 9 de Agosto de 1942, pelas mãos de músicos amadores e de soldados das bandas militares, em condições de extrema debilidade física.
É música para levantar ânimo numa cidade que, ao longo de 900 dias, sucumbiu à fome, mais do que aos bombardeamentos, num exemplo histórico de resistência física e moral a partir também da mobilização da Arte.
É música concebida para ser música, mas também guião sonoro de uma história humana – com os seus medos, memórias, angústias, felicidades, confrontos. Comentando a designação do último andamento da sinfonia “Vitória”, Shostakovitch deixou dito: “A minha concepção de vitória não é a da brutalidade; a minha definição de vitória é a da vitória da luz sobre as trevas, da humanidade sobre a barbárie, da razão sobre a reacção.”
OUVIR: “Sinfonia Leninegrado”
Começámos com um canto de embalar, encaminhamo-nos para o final com a história de uma criança – a minha filha – que gostava de uma canção de poema anónimo que Mafalda Veiga musicou, e que fazia parte de uma daquelas compilações que trazemos no carro. A minha moça tinha quatro ou cinco anos e atendia mais à melodia da canção do que ao texto, em Espanhol. Um dia, traduzi-lhe a canção e o impacto foi tal que, até hoje, já lá vão vinte e muitos anos, nunca mais pôde ouvir a cantiga do soldado que, disparando sobre um soldado inimigo, reconheceu nele o rosto do seu amigo José, com quem tanto ele brincou aos soldados e às trincheiras.
OUVIR: “Balada de um soldado”
A ambição da paz também se educa na vivência da paz, nunca na estimulação da violência seja em que circunstâncias for. Não se trata, contudo, de dar sequência ao “sermão da montanha”, segundo o qual ofereceremos a face a quem no-la golpear, ensinamento tanto mais surpreendente quanto foi a violência o mecanismo de funcionamento da sociedade, apesar de tudo atenuado ao longo dos milénios. Não entrarei, todavia, na explicação da violência e da sua importância na própria obtenção da paz, enquanto praça de convívio de humanos iguais em direitos e em deveres, qual sonho serem iguais as condições dos humanos neste mundo de desequilíbrios. Ficaram por mostrar muitas canções, muita música dita clássica, muita poesia pela paz.
Ficaremos, então, por uma canção, um poema fundador do nosso pensamento democrático, pacífica guerrilheira de uma luta inacabada pela paz que a sociedade de classes, hoje dominante à escala global, nunca deixará que aconteça. Os “eles”, de que fala a última canção, contarão certamente com a nossa resistência. Pela paz.
OUVIR: “Pedra Filosofal”
.
.
…………………………..
Nota da Redacção:
Com este artigo, que serviu de base à palestra “A Música, o Transcendente e a Música”, proferida na tarde de 26 de Março de 2024, no espaço Liquidâmbar, em Coimbra, numa iniciativa do colectivo “Paz em Movimento”, Manuel Rocha dá início à sua colaboração no jornal sinalAberto, no contexto da nova rubrica “Histórias da Música”.
.
28/03/2024