A nova Lei da Saúde Mental: mais humana ou mais complexa?
Entrou em vigor, a 20 de agosto, a Lei da Saúde Mental, aprovada pela Lei n.º 35/2023, de 21 de julho, que revoga a Lei n.º 36/98, de 24 de julho, em vigor nos últimos 25 anos.
A nova lei, que o Presidente da República promulgou a 10 de julho, apesar de lhe apontar “falta de densificação de alguns conceitos e figuras jurídicas”, pretende alterar o paradigma da abordagem às pessoas com necessidades de cuidados de saúde mental e estabelece, na área da Justiça, que, após cumprirem a pena por crime a que tenham sido condenados, os inimputáveis terão de ser libertados. Neste sentido, as disposições mais inovadoras talvez sejam acabar a possibilidade de prolongamento automático do internamento de inimputáveis e admitir o tratamento involuntário. Todavia, é de ter em conta que a lei tem como objeto a disposição sobre “a definição, os fundamentos e os objetivos da política de Saúde Mental, consagra os direitos e deveres das pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental e regula as restrições” destes direitos e as garantias de proteção da sua liberdade e autonomia (cf n.º 1 do artigo 1.º).
Desde logo, define a “doença mental” como a condição caraterizada por perturbação significativa das esferas cognitiva, emocional ou comportamental, incluída num conjunto de entidades clínicas categorizadas segundo os critérios de diagnóstico da Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde (cf alínea a) do artigo 2.º).
Estamos, pois, ante um conjunto de situações que serão definidas por entidades terceiras competentes para o efeito na área da Saúde, e que serão, em parte, voláteis às circunstâncias atuais. Assim, a lei prevê que a política de Saúde Mental a adotar pelo governo tem âmbito nacional, sendo “transversal, dinâmica e evolutiva, adaptando-se ao progresso do conhecimento científico e às necessidades, contextos e recursos disponíveis a nível nacional, regional e local, visando a obtenção de ganhos em saúde” (cf n.º 2 do artigo 3.º).
No atinente aos direitos das pessoas com necessidades de cuidados de saúde mental, distingue os direitos em geral e direitos em especial.
Assim, a pessoa tem o direito de “aceder a cuidados de saúde integrais e integrados de qualidade, desde a prevenção à reabilitação”, com respostas aos seus vários problemas de saúde, “adequadas ao seu enquadramento familiar e social”; de “escolher livremente a entidade prestadora dos cuidados de saúde”, visando o “tratamento de proximidade indispensável à continuidade do plano integrado de cuidados, na medida dos recursos existentes”; de, a todo o momento, na medida da sua capacidade, “decidir, livre e esclarecidamente” sobre os cuidados de saúde propostos, salvo nos casos previstos na presente lei”, e sobre a sua participação em investigação e ensaios ou estudos clínicos ou atividades de formação, nos termos da lei”; de “ver respeitadas a sua vontade e preferências, expressas no momento ou antecipadamente, sob a forma de diretivas antecipadas de vontade ou através de procurador de cuidados de saúde ou de mandatário, com vista a acompanhamento, salvo nos casos previstos na presente lei”; de “ver promovida a sua capacitação e autonomia, nos vários quadrantes da sua vida, no respeito pelas suas vontade, preferências, independência e privacidade”; de “usufruir de condições de habitabilidade, higiene, alimentação, permanência a céu aberto, segurança, respeito e privacidade em unidades de internamento dos serviços locais ou regionais de saúde mental, estabelecimentos de internamento ou estruturas residenciais”; de “comunicar com o exterior”, por quaisquer meios, e “receber visitas de familiares, amigos, acompanhantes, procuradores de cuidados de saúde e mandatários, com vista a acompanhamento, quando se encontrem em unidades de internamento dos serviços locais ou regionais de saúde mental, estabelecimentos de internamento ou estruturas residenciais”; de “votar, ressalvadas as incapacidades previstas na lei”; e de “não ser sujeita a medidas privativas ou restritivas da liberdade de duração ilimitada ou indefinida” (cf artigo 7.º).
No âmbito dos direitos em especial, não pode ser submetida a “medidas coercivas, incluindo isolamento e meios de contenção físicos ou químicos, exceto nos termos previstos na presente lei”; a “eletroconvulsivoterapia ou a estimulação magnética transcraniana, sem o seu consentimento escrito, exceto nos termos previstos na presente lei”; a “intervenções psicocirúrgicas, sem o seu consentimento escrito e parecer escrito favorável de dois psiquiatras e de um neurocirurgião, designados pela Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental” (cf n.º 1 do artigo 8.º). Neste sentido, o artigo 11.º estabelece que as medidas coercivas, incluindo isolamento e meios de contenção físicos ou químicos, só podem ser usadas quando estritamente necessárias para prevenir ofensa grave e iminente ao corpo ou à saúde da pessoa carecida desses cuidados ou de terceiro, como último recurso e por período limitado à sua estrita necessidade, sendo tal recurso específico e expressamente previsto por médico ou por este aprovado, em caso de urgência ou perigo na demora.
No quadro do tratamento involuntário, o requerido tem direito de “ser informado dos direitos que lhe assistem”; de “participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito, presencialmente ou por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvido por teleconferência a partir da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental onde se encontre”; de “ser ouvido pelo juiz, sempre que possa ser tomada uma decisão que o afete pessoalmente; de “ser assistido por defensor ou mandatário constituído em todos os atos processuais em que participar e ainda nos atos processuais que diretamente lhe digam respeito e em que não esteja presente”; de “oferecer provas e requerer as diligências que se lhe afigurem necessárias”; de “ser acompanhado por intérprete idóneo, por si escolhido ou nomeado, sempre que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa”; de “ser acompanhado por intérprete idóneo de língua gestual, leitura labial ou expressão escrita, por si escolhido ou nomeado”, se for surdo ou deficiente auditivo; de “responder por escrito a perguntas formuladas oralmente ou ser acompanhado por intérprete idóneo, por si escolhido ou nomeado”, se for mudo; e de “indicar pessoa de confiança”, para os efeitos previstos na presente lei (cf n.º 3 do artigo 8.º).
Em tratamento involuntário, a pessoa tem direito a “ser informada e, sempre que necessário, esclarecida sobre os direitos que lhe assistem”; a “ser esclarecida sobre os motivos do tratamento involuntário”; a “participar, na medida da sua capacidade, na elaboração e execução do respetivo plano de cuidados e ser ativamente envolvida nas decisões sobre o desenvolvimento do processo terapêutico”; a “ser assistida por defensor ou mandatário constituído, podendo comunicar em privado com este”; a “participar em todos os atos processuais que diretamente lhe digam respeito, presencialmente ou por meio de equipamento tecnológico, podendo ser ouvida por teleconferência a partir da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental onde se encontre”; a “recorrer da decisão de tratamento involuntário e da que o mantenha”; a “requerer a revisão da decisão de tratamento involuntário”; e a “comunicar com a comissão prevista” na presente lei (cf n.º 4 do artigo 8.º).
A lei estabelece que o tratamento involuntário visa a recuperação integral da pessoa, mediante intervenção terapêutica e reabilitação psicossocial, tendo como pressupostos cumulativos a existência de doença mental; a recusa do tratamento medicamente prescrito, necessário para prevenir ou eliminar o perigo previsto e descrito a seguir; a existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais de terceiros, em razão da doença mental e da recusa de tratamento, ou do próprio, em razão da doença mental e da recusa de tratamento, quando a pessoa não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento; e a finalidade do tratamento. Porém, este só pode verificar-se, quando for a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito; adequado para prevenir ou eliminar uma das situações de perigo previstas nesta lei; e proporcional à gravidade da doença mental, ao grau do perigo e à relevância do bem jurídico, tendo primazia o internamento em regime ambulatório, salvo incapacidade deste, devidamente fundamentada, para alcançar as finalidades pretendidas. Por isso, o tratamento involuntário em internamento é substituído por tratamento em ambulatório, logo que aquele deixe de ser a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, sem prejuízo da sua revisão, nos termos do artigo 25.º, ou da sua cessação, nos termos do artigo 26.º (cf artigos 14.º, 15.º, 25.º, 26.º e 27.º).
A legitimidade para requerer o tratamento involuntário verifica-se perante as seguintes entidades: o representante legal do menor; o acompanhante do maior, no âmbito das suas atribuições; qualquer pessoa com legitimidade para requerer o acompanhamento de maior; as autoridades de saúde; o Ministério Público (MP); o responsável clínico da unidade de internamento do serviço local ou regional de saúde mental ou do estabelecimento de internamento, conforme os casos, quando no decurso do internamento voluntário se verifique uma das situações de perigo acima referidas. Além disso, qualquer médico que, no exercício das suas funções, verifique a existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 15.º poderá comunicar à autoridade de saúde competente para que requeira o tratamento involuntário (cf artigos 16.º e 17.º). E o artigo 12.º estabelece que, em tratamento involuntário, judicialmente decidido nos termos do artigo 23.º, só pode haver recurso a eletroconvulsivoterapia ou a estimulação magnética transcraniana, quando estas técnicas sejam medicamente prescritas, se revelem a melhor alternativa terapêutica e a prescrição seja confirmada por dois médicos psiquiatras, além do médico prescritor.
Relativamente ao internamento de urgência, nos termos do artigo 28.º, “quando o perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais do próprio ou de terceiros seja iminente, nomeadamente por deterioração aguda do estado da pessoa com doença mental, pode haver lugar ao tratamento involuntário em internamento”, desde que verificados os pressupostos e princípios gerais acima mencionados. Assim, verificados tais pressupostos, qualquer órgão de polícia criminal, por exemplo, Polícia de Segurança Pública (PSP), Guarda Nacional Republicana (GNR) ou autoridade de saúde pode determinar, oficiosamente ou a requerimento, através de mandado, que a pessoa seja conduzida a serviço de urgência hospitalar com valência de psiquiatria, para ser submetida a avaliação clínico-psiquiátrica e para lhe ser prestada a assistência médica necessária. E, em face da urgência associada ao caso concreto ou ao perigo de demora, esta condução pode ser efetuada em momento prévio à emissão de mandato, situação em que a mesma será, de imediato, comunicada ao MP.
É de advertir que, no respeitante à natureza do processo, tal como sucedia antes e como não podia deixar de ser, estamos perante processos de natureza urgente.
Em caso de privação da liberdade, nomeadamente no caso de internamento involuntário e/ou de urgência, o n.º 1 do artigo 45.º prevê que, excedido o prazo de 48 horas após realização das diligências consideradas necessárias para proferir decisão de manutenção ou não do internamento, sem que o tenha sido feito (cf n.º 2 do artigo 32.º); tendo sido a privação de liberdade efetuada ou ordenada por entidade incompetente, ou não se verificando os pressupostos para a privação da liberdade, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos ou o visado pode requerer ao tribunal a sua imediata libertação (cf n.os 1 e 2 do artigo 45.º).
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No domínio dos cuidados de saúde, informação divulgada pelo governo, a 18 de agosto, refere que o internamento compulsivo dá lugar “à figura do tratamento involuntário, preferencialmente em regime de ambulatório e só excecionalmente através de internamento”. A sujeição a tratamento involuntário só pode ser determinada “em caso de recusa do tratamento medicamente prescrito e só em situações de perigo para si ou para terceiros, salvaguardando-se a hipótese de participação e decisão do cidadão na elaboração do seu plano de cuidados”. E cria-se a figura da “pessoa de confiança”, que pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental podem eleger, para apoiar o seu percurso de cuidados, e a quem podem expressar diretivas antecipadas de vontade.
A entrada em vigor da nova lei implica a libertação de 46 inimputáveis, distribuídos pelo Continente e pela Região Autónoma da Madeira, mas o fim destes internamentos depende de decisões dos tribunais, diz a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP).
Segundo a DGRSP, estão internados em instituições psiquiátricas prisionais (Hospital Prisional de São João de Deus, em Caxias, e Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental anexa ao Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo – masculino) 228 inimputáveis. Em outras instituições de saúde mental não prisionais estão 194 inimputáveis a cumprir a medida de segurança de internamento.
Ora, o fim da prorrogação sucessiva das medidas de segurança de internamento de cidadãos inimputáveis, para acabar com um sistema que, na prática, resultava em medidas de internamento de duração ilimitada, e a consequente libertação dos 46 casos identificados terão associadas respostas que podem passar pela reinserção em meio familiar e pela instalação em estruturas residenciais, para pessoas idosas ou para pessoas com deficiência.
São também respostas consideradas no quadro das implicações da nova legislação diferentes tipologias de respostas habitacionais, colocação em instituições de saúde ou em unidades da rede de cuidados continuados integrados de saúde mental.
A informação divulgada pelo governo refere, ainda, que, “no caso das pessoas que necessitem de manter acompanhamento de saúde mental, este será sempre assegurado pelos serviços locais de saúde mental da área da residência”. “No caso de pessoas que, por razões de idade, saúde, deficiência ou pelo seu comportamento se encontrem impossibilitadas de exercer pessoal, plena e conscientemente os seus direitos, podem beneficiar do Regime do Maior Acompanhado”, aprovado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto.
A nova Lei, bastante complexa, prevê o aumento das atuais 10 para 40 das equipas de saúde mental e insere-se na reforma da Saúde Mental que o governo quer concluir até final de 2026 e que recorre a 88 milhões de euros para investimentos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a cuja duplicação Miguel Xavier, coordenador nacional da política de Saúde Mental, apelou em maio, considerando o seu valor inserido no PRR, não “uma bazuca”, mas “uma fisga”.
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Teremos, na realidade, o cada vez maior número de pacientes em Saúde Mental (nova forma de pobreza, pela limitação e pela dependência) tratados com maior dignidade ou as boas intenções jazerão no papel? Para tratar com dignidade, requer-se profissionalismo e calor humano!
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28/08/2023