A padeira de Aljubarrota: Brites de Almeida (1385)
Faro – 1376
Chamas-te Brites de Almeida e, neste momento, tens 26 anos. És uma sobrevivente entre a população pobre. És feia, muito feia. Os homens desinteressam-se de ti e as mulheres olham-te de soslaio por seres alta, rude e musculada. Além disso, tens seis dedos em cada mão. Tu não sabes, mas vais ser uma heroína da História de Portugal.
O teu nome de batismo vai ficar esquecido na memória coletiva, mas todos os portugueses vão-te conhecer pela padeira de Aljubarrota.
Mas, para já, és Brites de Almeida e tens a alcunha de Pesqueira…
… e, até seres venerada pela nação, vais passar por incríveis desafios, dos quais só escaparás graças à tua força física e psicológica.
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Taberna. A tasca é humilde e tem aspeto mal recomendado. Cinco mesas estão ocupadas com clientes. Alguns são rudes, outros não, mas todos estão irmanados na bebida, seja cerveja ou vinho. Cheira a embriaguez e as vozes falam cada vez mais alto.
Brites de Almeida serve mais uma rodada de vinho numa mesa.
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Estás só. Os teus pais morreram e deixaram-te a taberna, um lugar mal-afamado e perigoso para uma mulher solitária.
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Um homem embriagado, de aspeto rude e sujo, sentado a uma mesa, puxa o braço de Brites de Almeida. Ela repele-o com força e esboça uma ameaça.
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Dizem que esse homem quer deitar-se contigo. E mais do que isso: ele gaba-se de que será o único capaz de vergar-te a altivez.
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O homem insiste. Brites de Almeida empurra-o e ele cai desamparado.
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Mas tu nunca te vergarás a ninguém, seja homem ou mulher, plebeu ou nobre, cristão ou mouro.
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Brites de Almeida ameaça o homem de novo, mas, desta vez, mais firme. Empurra-o e ele cai desamparado no chão. Muitos riem-se.
(ouvir)
Avisas o homem de que será a última vez que vais tolerar tal insolência. E quando dizes que é a última vez, não recuas uma palavra.
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Brites de Almeida afasta-se para o seu reduto na taberna. Olha para o homem com o sobrolho franzido. Vai para junto de um barril de vinho. Sem virar as costas, procura a espada que está escondida junto à parede. Agarra firme a empunhadura da arma e mantém a mão escondida.
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Tens fama de ser brava e assim vais continuar para sempre. Nunca suportaste um ultraje ou um desafio. E ninguém, mesmo ninguém, ficou a rir-se de ti.
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O homem levanta-se do chão e dirige-se a Brites de Almeida. Tem ar de ofendido e de ameaçador.
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És conhecida pela tua valentia, Pesqueira, que é assim como és conhecida por cá. Quantos homens despachaste ao murro, ao pontapé e à espada nas feiras das redondezas? Dizem que muitos.
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Junto de Brites de Almeida, o homem vocifera e gesticula. Ela, sem dar indícios de receio, faz-lhe sinal para se retirar da taberna. O homem fica mais furioso.
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Mas, agora, estás a um minuto de mudar radicalmente a tua vida. Não vais suportar que o homem te toque mais uma vez…
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Outro homem aproxima-se e tenta acalmar o provocador. Este repele-o. Ato contínuo, tenta agarrar o braço esquerdo de Brites de Almeida.
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… e vais reagir, compulsivamente, assim, sem hesitação, à vista de todos os clientes da taberna.
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Num gesto rápido, Brites de Almeida avança com a espada e trespassa o abdómen do homem. Este cai de joelhos e, depois de ela ter retirado a espada, jaz no chão.
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Mataste um homem, Brites de Almeida. A lenda dirá que não foi o primeiro nem será o último. Mas, desta vez, a diferença é que há várias testemunhas do teu ato homicida. Em breve, toda a cidade de Faro saberá que a Pesqueira matou um homem… ou mais um homem.
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Brites de Almeida manda sair todos os clientes. Fecha a taberna. Dirige-se para os seus aposentos nas traseiras da taberna. Faz uma pequena trouxa e recolhe todo o dinheiro que tem. Embrulha a espada numa manta.
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De nada te valerá alegar que mataste em legítima defesa. A partir de agora, serás uma criminosa à luz da justiça do reino.
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Ruas de Faro. Brites de Almeida sai apressada da taberna.
Se não fugires rapidamente, serás perseguida, presa e encarcerada numa masmorra, onde morrerás em pouco tempo, como todas as outras.
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Praia. É noite e o areal parece prateado. Brites de Almeida entra num pequeno bote e rema, afastando-se da costa.
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Tu, Brites de Almeida, conhecida pela Pesqueira, a mulher dos seis dedos, és agora uma criminosa fugida à justiça da coroa portuguesa.
Não há perdão para os assassinos. São tantos neste reino que os cárceres não os comportam. E, além disso, os que escapam à forca, os carcereiros encarregam-se de os fazer padecer tanta dor, fome, sede e imundice até que alguma peste os mate.
Tu não queres ser presa, não podes ser presa, porque tens um destino para cumprir: ser a padeira de Aljubarrota.
Vendeste, à pressa, os parcos haveres que tinhas. Tudo por pouco dinheiro. Mas, agora, estás a fugir para longe.
Com o bote que furtaste, queres fugir para a Andaluzia, porque lá estarás segura.
Rema, rema até esgotares as tuas forças.
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Argel – 1378
Casa de um mouro rico. Brites de Almeida está vestida com trajes femininos muçulmanos. Lava os pés a uma dama moura.
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Não sabes se foi castigo de Deus ou prenda do Diabo, por tão danada vida que levaste. Tu, aqui, não és Brites de Almeida nem a Pesqueira. Não tens nome cristão. És apenas uma escrava portuguesa.
Não, não me enganei. És uma escrava como tantas outras, indefesas da sua dignidade. E, como todas as escravas, viveste a desonra e o maltrato.
Estás em Argel, na casa de um mouro rico. Fazes o que te mandam fazer, porque é assim a condição de escrava.
Foi o maldito vento que desviou o teu bote para alto mar, quando fugias para a Andaluzia.
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Acabada a tarefa, Brites de Almeida leva os utensílios para uma sala contígua.
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Foste apanhada por piratas sarracenos, que te venderam, num mercado de escravos em Argel, a um abastado mouro.
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Sala contígua. Sozinha, Brites de Almeida olha através da janela.
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És escrava ao serviço das mulheres do mourisco. Apesar de tudo, tiveste um pouco mais de sorte do que dois escravos portugueses, que fazem todo o trabalho pesado na casa do sarraceno.
Mas, depois de quase dois anos de ímpia humilhação, a fuga para a liberdade está a um passo.
Será mais uma aventura tua, mas não é nada que te assuste.
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Brites de Almeida vai a um aposento anexo, abre uma arca e retira um sabre. Esconde a arma entre as roupas.
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Tens um plano de fuga em conluio com os outros dois escravos portugueses.
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Discretamente, Brites de Almeida dirige-se aos aposentos da sua dama e furta algumas joias.
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Voltarás a matar para fugires do palácio que te oprime; e outra vez matarás para roubar o barco da fuga.
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Brites de Almeida retira-se do quarto, assegurando-se de que não foi vista.
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Algarve – 1378
Brites de Almeida desembarca no Algarve com um bote. Está maltrapilha e cansada.
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Por pouco não morrias na longa viagem até ao Algarve, Brites de Almeida! Mesmo fazendo navegação à vista e atracando aqui e acolá, o mar encerra perigos inauditos dos quais muitos não escapam.
Mas a tua viagem e as tuas canseiras ainda não terminaram. Aliás, estão longe de terminar. Esperam-te novos desafios. E, como sempre aconteceu na tua vida, novos sarilhos. Voltarás a brigar com homens como antigamente e a morte estará sempre perto da tua faca afiada.
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Caminho entre povoações. Brites de Almeida tem o cabelo curto e está vestida como um homem. Caminha com uma trouxa presa por um pau em cima do ombro.
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Se a justiça sabe que és tu, Brites de Almeida, irás responder pelos crimes que cometeste. Por isso, cortaste o cabelo e vestes roupa masculina. Estás a passar por homem. Sabes fazer bem esse papel. E, se alguém duvidar da tua virilidade, tu não hesitarás em desferir um potente murro no nariz do atrevido.
Vais em direção a Lisboa, à procura de nova vida. Mas os tempos estão difíceis e tumultuosos. Já não bastava a Peste Negra para dizimar centenas de milhares de almas, como ainda o país enfrenta conflitos sucessivos.
Portugal está cansado de tanta guerra com Castela. O país está mergulhado num caos.
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Lisboa – 1381
Taberna. O ambiente é ruidoso e excitado nesta taberna de Lisboa. São tempos das guerras fernandinas. Só o álcool e a música fazem esquecer conturbados momentos.
(ouvir)
Um homem está particularmente agitado, também por força do álcool e das prostitutas que por lá circulam.
Este homem é, apenas, mais um entre muitos outros que combateram os castelhanos e que se preparam para mais uma guerra.
Vou chamar-te João Domingues, um nome comum a tantos outros, porque a tua história é igual à muitos portugueses desta época.
João Domingues conta as suas aventuras nas duas primeiras guerras fernandinas.
Estás tão bêbado como eufórico, porque sabes que o teu destino é incerto. És um veterano das guerras com Castela.
Combateste entre 1369 e 1370, porque D. Fernando, rei de Portugal, reclamou a coroa de Castela, por morte de D. Pedro I.
Numa das várias escaramuças, ficaste ferido. Acreditas que escapaste à morte devido à tua fervorosa prece ao Divino Espírito Santo.
O conflito não trouxe vitória e o esforço de guerra foi grande.
De nada valeu o Tratado de Paz assinado em 1371, porque, passado um ano, foste de novo recrutado para o exército de D. Fernando contra Castela.
Desta vez, o teu rei aliou-se a Eduardo III, de Inglaterra, que juntos conspiraram contra o monarca castelhano D. Henrique.
Esta foi a segunda guerra que durou entre 1372 e 1373. Também este conflito haveria de descambar numa derrota e no endividamento dos cofres do reino e dos nobres. A paz foi assinada em 1373.
Taberna. João Domingues está rodeado, à mesa, por outros homens e mulheres de reputação duvidosa. Dá vivas a Portugal e vaias a Castela.
Tu, João Domingues, como muitos outros joões, não entendes os jogos de poder que se fazem nos bastidores dos palácios de Portugal e de Castela. Mas não te pagam para entender, mas sim para lutar. E há uma coisa que tu tens a certeza: combates por Portugal.
Agora, João Domingues, estás em 1381 e, dentro de cinco dias, vais integrar o exército luso na terceira guerra.
Desta vez, é D. João de Castela quem faz uma investida contra Portugal.
(ouvir)
Mais uma vez, um revés militar que poderá custar caro, muito caro, à independência de Portugal.
No tratado de paz que será assinado em 1382, ficará estipulado que D. Beatriz, sucessora de D. Fernando de Portugal, case com o filho de D. João de Castela. Mas, por força da morte da rainha castelhana, D. João contrairá matrimónio com a jovem Beatriz, herdeira da coroa portuguesa.
Uma parte da nobreza portuguesa ficará inquieta com as consequências do casamento.
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Ruas de Lisboa. João Domingues passeia pelas ruas movimentadas da capital portuguesa de 1381.
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Com a morte de D. Fernando, que ocorrerá um ano depois, a herdeira do reino de Portugal será D. Beatriz, a que há de casar com D. João de Castela.
Isto poderá significar que, por via de sucessão, a nação lusa corra o risco de ficar anexada ao território castelhano.
Voltemos a ti, João Domingues. Dentro de cinco dias, partirás nas fileiras do exército de D. Fernando, para enfrentar os castelhanos que já invadiram o país.
Desta vez, de nada te valerá a tua devoção ao Divino Espírito Santo, pois morrerás num combate cruel e sanguinário.
As ruas de Lisboa são movimentadas, mas a incerteza espreita a cada esquina. João Domingues, és apenas um entre dezenas de transeuntes.
Vais deixar a tua mulher e cinco filhos em Santarém, a tratar das terras agrícolas arrendadas.
A lei das Sesmarias, que D. Fernando mandou publicar, obriga os proprietários a cultivar as terras, sob pena de expropriação.
Muitos senhores das terras, não podendo ou não querendo cultivar, arrendaram os campos a agricultores como tu, João Domingues.
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Brites de Almeida arranjou um novo ofício. Trabalha como almocreve. Tem uma mula e uma carroça. Transporta cargas.
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Estás agora em Lisboa, Brites de Almeida, diluída na multidão. Aqui, ninguém conhece o teu passado e tens uma profissão: almocreve. É certo que é trabalho de homem, mas isso, para ti, não é problema. Cumpres o teu cargo tão bem como os melhores.
(ouvir)
Não é o trabalho pesado que te incomoda, mas sim o facto de seres mulher e a fazê-lo. Não toleras gracejos pela tua condição de mulher. Muitos dos que ousaram fazê-lo jazem mortos e outros passaram a baixar a cabeça quando se cruzam contigo.
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À passagem de Brites de Almeida com a mula e a carroça, dois homens burgueses sorriem e proferem algumas palavras de escárnio.
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E aqui, em Lisboa, nada parece ser diferente das terras que conheceste. Bem pelo contrário, por estas ruas sujas e enfermas, afiguram-se mais homens brejeiros.
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Brites de Almeida pára e enfrenta os homens com um olhar intenso. Os homens sentem-se ofendidos perante a afronta de uma mulher almocreve.
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E, mais uma vez, ninguém ficará sem resposta. Tens uma força invisível mais impetuosa do que a tua vontade. Por cada ultraje que os teus olhos e ouvidos detetem, respondes com a força com que Deus te fez. E tu acreditas que não pode ser em vão que te quis assim.
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Com um gesto rápido, inibindo qualquer reação dos homens, Brites de Almeida desfere um golpe profundo com uma vergasta na cara de um dos ofensores e no outro lança um potente murro num olho. Ambos ficam atordoados e protegem a cara com as mãos, gemendo de dor.
Junta-se povo e Brites de Almeida retira-se lesta, sabendo que está, mais uma vez, envolvida noutro problema.
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Esses novos burgueses são poderosos e não descansarão enquanto não te levarem à justiça ou se vingarem. Estás, novo, metida em sarilhos.
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Lisboa – 1383
A vida está difícil, muito difícil. Há fome e miséria por todo o lado. Morrem mais pessoas de doenças do que nas guerras com Castela.
A pobreza já não é só dos pobres. Veem-se também nobres depauperados por causa dos enormes gastos com as guerras.
E, querendo eles recuperar as suas riquezas, carregam novamente nos já pesados tributos daqueles que nada têm a não ser a sua força de trabalho.
Se a sociedade está mergulhada num caos, a política do reino não está melhor. D. Fernando acaba de morrer e a descendente legítima é D. Beatriz, que está prestes a casar com D. João de Castela, por força do tratado de paz assinado em Elvas.
A impopular rainha D. Leonor Teles assume a regência de Portugal. A sua ligação amorosa com o fidalgo galego Conde Andeiro, partidário de Castela, é indisfarçável.
A nobreza portuguesa está apreensiva e exorta o Mestre de Avis, irmão bastardo de D. Fernando, a reclamar a sucessão da coroa.
O Mestre de Avis decide avançar. E o primeiro ato é assassinar o Conde Andeiro. De imediato, temendo pela sua vida, a rainha D. Leonor Teles foge de Lisboa e refugia-se em Alenquer.
Portugal mergulha numa guerra civil e está dividido em três fações: os partidários de D. Leonor Teles, os de D. Beatriz e a junção a Castela e os do Mestre de Avis.
Dentro de dois anos, o Mestre de Avis será aclamado pelo povo de Lisboa como Regedor e Defensor do Reino.
(ouvir)
Estrada de terra batida. Brites de Almeida conduz a sua carroça puxada pela mula. A estrada não tem alma por perto. Lisboa ficou para trás.
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Os teus receios confirmaram-se. Foste levada a tribunal, acusada pelos dois burgueses que espancaste. Mas o pior foi eles acusarem-te de teres matado um homem que apareceu apunhalado na rua, no mesmo dia em que fustigaste os burgueses. Cometeste vários crimes, os mais graves de sangue, mas esse homicídio de que te acusaram é falso.
Sempre escapaste à presença do tribunal, mas em Lisboa não tiveste como fugir. Três guardas e um oficial de justiça prenderam-te nas ruas da cidade. O teu ganha-pão como almocreve acabou-se aí. Ninguém confia as suas mercadorias a alguém que é acusado de sovar e, muito mais grave, de matar.
Apesar de tudo, tiveste sorte, Brites de Almeida. O juiz considerou não haver provas claras sobre a tua participação no homicídio, como pretendiam os dois burgueses, e isso também enfraqueceu a acusação deles sobre o espancamento. Foste condenada a dois anos de prisão, mas ficas em liberdade por não haver celas disponíveis para mulheres. Resta-te abandonar Lisboa.
Mais uma vez, não tens chão onde dormir e estás a caminho de uma terra que não sabes.
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Aljubarrota – 1385
Padaria. Brites de Almeida amassa farinha de trigo, perante o olhar da idosa dona da padaria. Depois de completar o serviço da amassa, leva os pães crus ao forno.
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Chegaste a pedir esmola e a passar fome, até esta mulher cuidar de ti.
Seja por piedade ou por querer redimir os seus pecados perante Deus, a quem em breve acredita que prestará contas, a velha padeira acolheu-te e ensinou-te o ofício de fazer pão.
Tal como tu, Brites de Almeida, a idosa padeira está só. O marido e um filho morreram com a terrível Peste Negra e os outros dois mancebos não tiveram melhor sorte nas guerras com Castela.
O teu infortúnio, Brites de Almeida, não foi menos do que o massacrado povo de Lisboa que, há um ano, esteve cercado pelas tropas castelhanas. Durante quatro meses e 27 dias do ano de 1384, a capital lusa esteve bloqueada.
Dezenas de galés castelhanas impediam que Lisboa fosse abastecida de alimentos e de outros bens, enquanto milhares de soldados cercavam a cidade.
Outra vez fome, miséria e doenças, castigo que se tornaria insuportável por muito mais tempo.
Se Lisboa caísse, Portugal não teria alternativa senão render-se a Castela.
Uma frota vinda do Porto tentou, desesperadamente, salvar a capital. Apesar de ter conseguido romper o cerco e entregar alguns alimentos à cidade, os barcos lusos haveriam de sucumbir perante a armada castelhana.
Nos arredores de Lisboa, o jovem general Nuno Álvares Pereira, que está prestes a tornar-se num dos maiores heróis portugueses, levou o seu parco exército a provocar algumas escaramuças contra os castelhanos.
Uns meses antes, Nuno Álvares Pereira, o condestável do reino, então com apenas 24 anos, liderou as tropas portuguesas contra o poderoso exército castelhano, infringindo uma pesada derrota na Batalha de Atoleiros.
Mas ainda não seria desta vez que o Condestável haveria de arrasar os castelhanos no reino de Portugal. Isso vai acontecer em breve.
Os portugueses tiveram um aliado minúsculo, mas tão mortal que dizimou populações numerosas e exércitos robustos.
O poderoso algoz é uma pulga, ou melhor, milhares de pulgas, que são transportadas pelo rato-preto.
As picadas dessas pulgas infetam os humanos com a Peste Bubónica, que todos conhecem por Peste Negra.
Depois de dizimar milhões de pessoas, ainda surgem resquícios da Peste Negra aqui e acolá.
As tropas castelhanas perderam inúmeros homens e muitos outros ficaram doentes ou desmoralizados.
A 3 de setembro de 1384, foi levantado o cerco a Lisboa. Portugal podia respirar e reorganizar o seu exército até ao combate final, dentro de meses.
Voltando a Aljubarrota. Quis o destino que a velha padeira, não tendo descendentes que conhecesse, te deixasse a padaria, Brites de Almeida.
Tu, que já há muito deixaste de ser a Pesqueira, serás, de agora em diante, a padeira de Aljubarrota. E fama terás quando as forças militares de Portugal e de Castela se encontrarem, dentro de dois dias, numa batalha decisiva para a independência deste reino.
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Aljubarrota. Na pequena povoação de Aljubarrota, um grupo de homens idosos está no falatório. Brites de Almeida conversa com algumas mulheres. Todos mostram estar apreensivos.
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O povo está inquieto. A 11 quilómetros estão acampados cerca de sete mil soldados portugueses que esperam o enorme contingente castelhano, composto por volta de 30 mil homens.
Se Portugal perder a batalha, desgraça a sua soberania. E o povo de Aljubarrota ficará arruinado: os homens serão aniquilados, as mulheres violadas e as casas saqueadas.
Só por milagre ou por astúcia humana, uma força tão pequena escapará ao massacre perante tão numeroso inimigo.
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Igreja. As mulheres rezam. Fazem preces a São Jorge, o santo que protege os soldados.
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Os portugueses, que são gente de muita fé, suplicam proteção a São Jorge.
Mas os castelhanos também são cristãos temerosos de Deus e, tal como os cavaleiros lusos, no passado, engrossaram as Cruzadas a caminho de Jerusalém.
Se não houver escolha de Deus ou de algum santo, os portugueses ficarão entregues ao seu destino. Para o bem ou para o mal. Por São Jorge!
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Arredores de Aljubarrota – 13 de agosto de 1385
Nuno Álvares Pereira, o general chefe das tropas portuguesas, acompanhado por um pequeno grupo de veteranos de guerra, faz uma missão de reconhecimento do terreno e do exército castelhano, que inclui cerca de dois mil cavaleiros franceses.
O Condestável avalia as condições mais favoráveis do terreno. Escolhe, estrategicamente, um campo num planalto entre duas ribeiras, impedindo assim o ataque pelos flancos do inimigo. Resta esperar pelos castelhanos e forçá-los a atacar.
(ouvir)
Campo de S. Jorge – Aljubarrota 14 de agosto de 1385
Hoje é o dia da grande decisão. Está bastante calor. A expetativa e a adrenalina quase esmagam o coração.
As tropas castelhanas já chegaram à beira do campo de São Jorge, onde as aguardam os guerreiros lusos.
Poucas horas antes, sabendo que o confronto está perto, os portugueses constroem diversas valas e covas de lobo camufladas por arbustos. Estas armadilhas serão fatais para a cavalaria inimiga.
O exército português está disposto em quadrado. A vanguarda, composta por cerca de 600 lanças, é comandada por D. Nuno Álvares Pereira. Na retaguarda, dirigida por D. João I, estão cerca de 700 lanças, besteiros e 2000 peões. Os restantes efetivos encontram-se nas alas, sendo uma delas conhecida por Ala dos Namorados.
Centenas de cavalos e os seus cavaleiros vão morrer, dentro de pouco tempo, empalados nas emboscadas portuguesas…
… ou detidos pelas flechas dos experientes arqueiros ingleses, que disparam 10 a 15 tiros por minuto, debilitando a cavalaria, à medida que se aproxima.
As valas e as covas de lobo matam inúmeros cavalos e cavaleiros; e os que freiam a tempo ficam imobilizados e em pânico.
A infantaria castelhana não tem melhor sorte. Assolados pela dantesca visão do desmoronamento da cavalaria, os peões inimigos entram em pavor.
Ao contrário, as tropas portuguesas estão fortemente moralizadas.
Com o terreno minado para a cavalaria, todo o exército luso combate a pé.
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(ouvir)
Eliminada a cavalaria e com a infantaria castelhana desorientada, os portugueses mantêm as suas posições defensivas e passam para um combate corpo a corpo.
É uma luta feroz e sem piedade. Quem não matar morre.
O moral dos portugueses aumenta à medida que a batalha se desenrola.
Como se encontram num terreno encurralado e estreito, os castelhanos não podem fazer o clássico ataque pelas alas e, sucessivamente, vão tombando homens.
A queda do estandarte de Castela põe em debandada o exército inimigo.
Milhares de soldados castelhanos fogem, sendo perseguidos pelos vitoriosos portugueses.
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Aljubarrota. Na povoação, Brites de Almeida incita as mulheres da aldeia para formarem uma milícia popular.
Aljubarrota só tem mulheres, crianças e velhos, já que os jovens foram mobilizados para a guerra.
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E agora chegou a tua hora, Brites de Almeida. Chegou o tempo da tua imortalidade como a nobre e patriota padeira de Aljubarrota.
Não sabemos se serás tu, ou se a lenda por ti, mas isso, agora, pouco importa porque está na hora de te tornares heroína do reino.
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Erguendo a pá de ferro, Brites de Almeida comanda um grupo de mulheres, armadas de forquilhas e de outros instrumentos, indo em direção ao campo de batalha.
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Lideras um grupo de mulheres com forquilhas, machados e foices, mas é a tua pá de padeira a que se ergue mais alto.
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Os soldados castelhanos estão cansados e perdidos. Tentam escapar à fúria da população que vai no seu encalço.
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Em fuga desordenada, já exaustos e desorientados, os castelhanos são perseguidos pela ira da tua milícia, Brites de Almeida.
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Alguns estão tão desnorteados que fogem em direção à vila de Aljubarrota.
Um rapaz corre para Brites de Almeida e dá-lhe um recado.
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É isso. Um rapaz avisa-te de que alguns soldados castelhanos esconderam-se na tua padaria, que estava com a porta aberta.
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Brites de Almeida dirige-se para a sua padaria.
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E lá vais tu, Brites de Almeida, decidida a fazer justiça pelas próprias mãos. Como sempre, e agora também. Não sabes quantos castelhanos estão dentro do forno, mas, seja os que forem, não escaparão à força da tua mortal pazada.
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Padaria. Brites de Almeida depara-se com alguns homens escondidos dentro do forno. Faz um ramo de palha misturado com folhas verdes, ateia fogo e põe-no à entrada do forno, provocando fumo.
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O ar dentro do forno está irrespirável. Só te resta esperar uns segundos e todos eles sairão com tosse convulsa.
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Os homens começam a ficar intoxicados pelo fumo e, um a um, saem do forno.
À medida que os homens saem do forno, Brites de Almeida desfere um potente golpe com a pá de ferro nas respetivas cabeças.
Um…
Dois…
Três…
Quatro…
Cinco…
Seis…
Sete!
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(ouvir)
Sete castelhanos mataste, diz a lenda, todos à pazada.
És aclamada pela população. Todo o país vai saber de ti. Ficarás gravada no imaginário popular como a destemida padeira de Aljubarrota.
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(ouvir)
De agora em diante, poucos saberão do teu passado delinquente, porque passas à História como heroína de Portugal.
Tudo o que acabei de contar a teu respeito pode ser lenda, mas alguma ou muita coisa de verdade terá.
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Aljubarrota 1642
Dois anos volvidos sobre a Restauração da Independência de Portugal, talvez ainda pelo fervor patriótico ou pelo simples testemunho histórico, o frade Francisco Brandão está em Aljubarrota a compilar uma série de relatos das pessoas mais idosas da vila que sabem alguma coisa sobre a história da famosa padeira.
Já se passaram 257 anos, mas os mais velhos juram que a história da padeira de Aljubarrota lhes foi contada pelos seus avós e a estes pelos avós deles.
Mais: garantem que a pá de ferro usada pela padeira está guardada e conservada nos Paços do Concelho de Alcobaça, tendo apenas sido substituído o cabo de madeira.
Cada geração pode ter acrescentado um ponto, uma vírgula ou até mesmo um castelhano, mas o certo é que Brites de Almeida foi aclamada em Aljubarrota por ter sido heroína portuguesa.
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23/04/2022