A pandemia da vizinhança

 A pandemia da vizinhança

Antes de penarmos todos com este normal que já não é novo, fui contaminada, há cerca de quatro anos, por algo, talvez ainda hoje pouco comum, que a ciência definitivamente não domina e é altamente contagioso em sociedade.

Em virtude de ter sido empregada e para não ter outras preocupações que não as guerras profissionais – essas, expectáveis -, escolhi morar perto do meu trabalho, numa freguesia pela qual me apaixonei.

Neste lugar vazio, de que se diz que não tem nada nem ninguém, está a casa a que posso chamar de “lar” pela primeira vez em 15 anos, está uma pequena comunidade curiosa mas calorosa e hoje lutamos, os que ficámos, para viver comunitariamente… “Com as devidas limitações”.

Uso aspas porque as palavras são de uma das minhas vizinhas. A “Dona Maria”, vamos chamar-lhe assim. Antes de as escrever aqui, disse-lhe:

– Tenho que escrever, não sei sobre o quê. Quer ajudar-me? Tem algo para dizer?

– Sobre o vírus? -, perguntou-me, irremediavelmente.

Tenho esta ideia há algum tempo. De ter uma mesa-redonda e finalmente assumir a pivô de televisão de que sempre fugi e ter ao meu lado estas minhas vizinhas. Comentadoras fervorosas da atualidade política e da programação televisiva nacionais, sábias desafiadoras dos limites que a vida e a sociedade lhes impôs em mais de 50, mais de 60, algumas praticamente 70 anos… Mas ávidas de viver e nunca, jamais, com medo de falar.

Quando congeminei este texto, faltavam quase duas horas para o almoço. Quem tem família – seja de sangue, sejam vizinhos contaminados do mesmo Amor -, atenta sempre às horas da refeição de domingo. “Aposto que já tem tudo pronto”, pensei, enquanto acertava o relógio da cozinha.

“Não vais acreditar, ainda não fiz o almoço”, li, ao mesmo tempo numa mensagem do Facebook. Porque é assim mesmo, as famílias que não são de sangue cometem estas inconfidências, partilham rebeldias… Não é ter mais amor do que à família, é amar libertinamente.

Ri muito e, com mais de 30 anos de diferença entre nós, continuámos no nosso chat: “Meu Deus, dará para fazer um almoço em quase duas horas?”. E não são precisos emoticons. Sabemos de que sorrisos, ironias e de quantas lágrimas fazemos cada palavra.

Uma hora e meia depois, encontrámo-nos. Agora é assim, uma visita por semana, de tempo contado, com máscara retirada apenas para comer e beber.

Detrás da máscara é tudo igual: conselhos de quem não é a mãe e recados de quem não é a filha; gargalhadas saudosas, porque podemos não estar cá amanhã; mas confirmando sempre com que roupa queremos ir a enterrar…

Ainda sentada no lugar à mesa que já é o meu – que, se por doença ou alcoolemia eu esquecer momentaneamente, vou logo reconhecer por ser único que tem um prato de entrada ou a melhor parte da sobremesa já reservada -, expliquei então à minha vizinha que poderíamos, sim, falar sobre o vírus, mas que cada uma teria a sua opinião e eu identificaria aqui a dela.

E, como se obedecesse a um Código Deontológico, sentou-se para me falar de uma enorme responsabilidade. E eu recebi a minha lição de humildade: não conversava comigo apenas um ser humano que me ama – através mim, para quem puder “ouvir”, alguém abre o seu coração à Humanidade. Porque é tudo o que tem.

Desde a possibilidade de haver ajuntamentos nos cemitérios, aquando dos Finados; ao aumento de números de mortos com COVID-19; referindo que, mesmo assim, as pessoas não deixaram de participar em diversos eventos que a Direção-Geral da Saúde autorizou, a “Dona Maria” avalia a evolução da pandemia de forma sentida e rigorosa, concluindo que resta apenas que todos cumpram as regras a que estamos obrigados.

– E concorda com as regras? – desafiei-a, atrás da minha máscara, recordando-a, com o olhar, das nossas “discussões” sobre menos visitas, menos gente à mesa e o fim dos abraços.

– Eu não pensei sempre assim – respondeu. Percebeu-me, como se fossemos sangue outra vez.

– Hoje acho que devemos cumprir com o que nos é pedido. Mas acho que as regras devem ser para todos. – sublinha, recordando a ameaça de multas mediante incumprimentos, contra grandes eventos que decorrem com público autorizado.

– E o que acha que vai acontecer, no futuro?

– Vai haver muita miséria, muita fome, como antigamente, principalmente nas grandes cidades… Porque não há empregos.

As preocupações da “Dona Maria” são interrompidas por uma videochamada, em que fala com um dos netos. Naquele momento não houve mais nada. Nem eu. Apenas uma família radiosa, reunida através de um telemóvel.

Com este momento mais presente do que o futuro pouco auspicioso que prevê para a economia, perguntei:

– Nesta altura, o que a faz feliz?

– Estou a falar disto contigo mas por dentro não penso na morte.

Sorri. O que faz a “Dona Maria” feliz é falar com as filhas, tomar um café, fazer uma caminhada e receber os amigos.

A mim também.

Prometemo-nos fazer isso para sempre. Para já, “com as devidas limitações”.

Siga-nos:
fb-share-icon

Patrícia Troca

Outros artigos

Share
Instagram