A pele da Amazónia
Em 2009, eu dizia que o Mundo começava aqui, nos Sinais da Gente. Foi um projeto pessoal de narrativas jornalísticas, sobre uma odisseia de quatro meses, de mochila às costas, nómada pela Amazónia brasileira.
De Belém a Manaus, pelas veias fluviais da região, do Marajó ao sudeste do Pará, tomando banho de ervas, percorrendo parte da anatomia da violação de direitos humanos e do açaime aos direitos da natureza. Fui ao encontro de ilhas e comunidades das margens que são verdadeiros guardiões da nossa existência, graças à generosa biodiversidade. Admirável e mágico labirinto infinito.
Sei que Sabá não encontrou a cigana que lhe roubou o coração no meio da floresta. Começou a vê-la, fugazmente, a banhar-se nos igarapés de correntes meigas no final da vida. Ou no princípio dela quando regressamos à essência da terra. Aqueles cabelos negros da cigana eram feitiço para os seus olhos míopes de tantas horas de sol fustigante. E esse caboclo solitário poderia jurar que ela era a Iara da lenda amazónica. Felizmente, ainda há muitos como ele. Pescam nos afluentes da floresta tropical, comem uxi, carambola, cupuaçu; fazem vinho de bacaba, vivem rodeados de imponentes samaúmas, a “árvore da vida”, a “mãe natureza”, ou “escada do céu”, como lhe chamam os povos da floresta amazónica. Ela rodeia-se de raízes vermelhas, de priprioca, de formigas tucandeiras, de onças pintadas, de cipós que guardam água, de aranhas caranguejeiras vestidas de tarântulas. Dormi algumas vezes com elas, fitando-as no tecto dos alpendres, onde montei a minha cama-de-rede. No breu da noite ouvia passos de bichos que pareciam gente. Respeitamos sempre o espaço comum.
Marília, a encantadora das águas doces, continua a cuidar dos botos, os golfinhos dos rios da Amazónia, em Novo Airão, a cerca de 100 quilómetros de Manaus. Essa espécie de mamíferos continua ameaçada. É preciso mais pesquisa, legislação e proteção do habitat, alerta a União Internacional para Conservação da Natureza. A cuidadora de golfinhos, a qual entra nas águas mansas do Rio Negro, limpa-lhes as feridas das redes de pesca, sara os golpes dos arpões, salva-os das armadilhas desumanas e mal intencionadas, bem perto do Parque Nacional de Anavilhanas. A suave pele cinza destes cetáceos fica deformada de tanta maldade.
Dona Martinha de Suruacá metamorfoseou-se. Partiu da terra dos vivos para, agora, passar a contar histórias no mundo sobrenatural da sua Amazónia. Quantas gerações terão crescido com o embalo da sua sabedoria? Ela ensinou-me a lenda da cobra grande, do muiraquitã e das Amazonas, e muitas outras histórias de tudo o que existe, na Amazónia, nas matas, dos mitos, humores e vontades da natureza que são a filosofia matricial para explicar a vida. E estes tesouros da tradição oral estão a desvanecer.
Vovó Oneide deixou um legado de amor e união familiar, em Belém. O Círio de Nazaré, a maior festa religiosa do Brasil – e uma das maiores do mundo-, deve-lhe décadas de saber bem receber os peregrinos. A matriarca levou com ela o segredo da longevidade, um sorriso encantador, a memória imaterial da gastronomia paraense: pato no tucupi, maniçoba, tantos outros.
Gilberto, o caboclo, descendente de portugueses, continua a espantar o Curupira, esse pequeno duende de cabelos vermelhos e com os pés virados para trás das matas da Amazónia. E tenta denunciar a biopirataria ladrões de ervas medicinais. em Igarapé Grande, no estado do Pará. Dona Ambrósia, 99 anos em 2009, a mulher que subia ao açaizeiro como criança irrequieta, tinha os olhos de um azul celeste e cabelos de algodão. Levou com ela a sabedoria das plantas.
O açaí continua a chegar às cinco da manhã ao porto de Belém, no Pará, e junto com a mandioca, continua a ser sustento para as famílias amazonenses. Sobretudo para a maranhense Alice, do Acampamento João Canuto, no sudeste do Pará, que pertence ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e que vende bolos de mandioca para sobreviver. Quando parti do acampamento, depois de ter estado uma semana à espera de autorização para poder entrar na intimidade das histórias de condição humana sobrevivente (trabalho escravo, pobreza, conflitos agrários, etc), ofereceu-me um saco de amendoins para enfrentar a estrada tensa e de escuridão absoluta até Marabá. Quase fomos assaltados, por causa de um carro propositadamente capotado na berma da estrada, quase nos tiraram a vida.
António da Mota, o tuxaua, chefe indígena do povo Mura, em Novo Céu, Autazes, aquele que dançou a dança da Cotia, também já deve ter partido, mas os Mura continuam a mudar o mapa da Amazónia. Ele dizia que eu tinha de ajudá-los a resolver o problema da demarcação da terra indígena, para responder aos abusos de expropriação ilegal de fazendeiros. Falhei. A minha reportagem não mudou nada.
E vem tudo isto ao presente, não por causa do Dia Mundial do Meio Ambiente, celebrado a 5 de junho – e que deve ser solenizado e cumprido todos os dias, como obrigação primordial, mas porque todos esses personagens – e outros por enunciar – são parte da minha pele da Amazónia.
Surge isto a propósito porque resgatei o disco externo desta missão de quatro meses, numa arqueologia que revela o quão atuais permanecem as inquietações destas vidas. E os personagens, as pessoas do caminho, voltaram a falar, vivem em mim. E gente que me ensinou a reconhecermos o Eu pelo Outro, sendo Nós na Natureza, dando sinais da genuína essência da sua cosmogonia, não podem jamais ficar esquecidos. Em 2009, como agora – e outrora, como hoje- o mundo começa sempre aqui, nos direitos da Natureza.