A política do medo no Brasil de Bolsonaro

 A política do medo no Brasil de Bolsonaro

MIGUEL SCHINCARIOL/AFP/Getty Images

O medo sempre esteve presente na vida política como afeto constitutivo da experiência humana. Somos a única espécie capaz de sentir medo e de ter consciência de que ele existe. Temos medo de ter medo. E fomos aprendendo a identificar o que o medo pode produzir em nós. Somos movidos e deixamos de agir pelo temor de que algo aconteça ou deixe de acontecer. O medo pode prevenir e evitar. Mas por isso também limita e poda. Sufoca. Dilacera. Pode converter a nós mesmos no objeto que mais nos apavora. Racionaliza e gera irracionalidade. Nega. Afirma. Predispõe ao ódio e à benevolência. Mata. Faz viver. Podemos cometer as piores atrocidades movidos pelo medo. Mas em troca de um lugar sossegado no paraíso terrestre ou celestial – tanto faz – nos tornamos os cordeiros domesticados da civilização.

Graças à consciência da sua existência, houve quem transformasse o medo em estratégia de conquista e de exercício do poder ao longo da história. E é neste aspecto do medo que tenho pensado muito nos últimos dias. Em como o medo se converte cada vez mais em forma de controle e de domesticação de corpos e mentes. Em como ele tem sido fabricado para a obtenção de benefícios privados. E em como o medo se alimenta dele mesmo ampliando o temor que já existe ao mesmo tempo em que produz outros medos. Vivemos um ciclo ininterrupto de produção de horror como engrenagem da vida política do tempo presente.

Tem sido assim no Brasil de Jair Bolsonaro. Há medo de um lado a outro do espectro político. Entre os bolsonaristas há medo da volta da esquerda, dos comunistas que criaram a pandemia, do complô internacional que estaria proibindo as pessoas de se tratarem como a Hidroxicloroquina, a bala mágica que eles criaram como salvação para os infectados. Fora do círculo de apoio ao presidente há medo do que ainda possa acontecer com a democracia brasileira – tão frágil e juvenil. Nesta semana, a revista Piauí deu conta de uma reunião ocorrida em maio no Palácio do Planalto entre o presidente e alguns ministros militares. – Vou intervir! Dissera o presidente depois de demonstrar disposição para enviar tropas ao Supremo Tribunal Federal de onde estavam saindo muitas decisões que o desagradavam. Mas desistiu do intento golpista. Fora dissuadido pelos ministros presentes.

Na noite da vitória de Jair Bolsonaro vi amigos que viveram a ditadura chorarem pelo medo de que aquele tempo sombrio e desumano estivesse voltando. – Como pudemos produzir isto de novo? Perguntava aos prantos uma amiga querida vítima, ela própria, de tortura e novamente dilacerada pela dor da perda de companheiros seus para os porões da ditadura. Nas televisões, imagens do  presidente imitando armas com os dedos durante a campanha. Na cama do hospital onde esteve internado. A TV Globo fazia um retrospecto dos principais momentos da campanha. Dizia ser um perfil jornalístico do novo presidente. Na verdade, era, sim, um perfil, mas do horror e da tragédia diante dos nossos olhos. Enquanto minha amiga revivia o trauma das perdas e do medo que voltava vívido demais, nas ruas, os apoiadores de Bolsonaro festejavam por terem tirado o PT e destruído a ameaça comunista – um delírio de quem enxerga comunismo em um dos países mais desiguais do mundo, onde, como escrevera alguém outro dia, há elevadores de serviço para uns e elevadores sociais para outros.

Depois daquela noite, e mesmo antes da confirmação da vitória do medo, muitos artistas e intelectuais deixaram o Brasil, expulsos pelas intimidações e ameaças de morte. O ex-deputado Jean Wyllys, importante ativista da causa LGBTQIA+ renunciou ao mandato de deputado federal pouco depois de o ex-capitão assumir a presidência. Depois saiu do país. É hoje professor na Universidade de Harvard, de onde concedeu uma excelente entrevista a este Sinal Aberto há dois meses. Sua vida estava em risco já há algum tempo. Mas tornou insustentável depois das eleições de 2018.

De fato, o pleito eleitoral de 2018 baseou-se essencialmente na exploração do medo. Jair Bolsonaro recorreu a estratégias muito parecidas com as usadas na campanha de Donald Trump ou na mobilização pela saída do Reino Unido da União Europeia – o Brexit. Mas é claro que não fora ele a construir a estratégia de transformar o medo em ativo político insuperável. Por trás dele, a figura asquerosa de Steve Bannon, o mesmo estrategista de Trump e dos entusiastas do Brexit. A receita é simples mas muito complexa: levaremos as pessoas a agir pelos medos e ressentimentos que possuem. Dos mais claros àqueles que elas próprias desconhecem porque trancafiados ainda no inconsciente. Assim, conseguiram reunir ódios e ressentimentos em torno de uma figura caricata transformada em seu redentor. Mas de tudo o que Jair Bolsonaro aglutinou em torno de si nada superou o antipetismo – que não fora criado por ele! Mas do qual a estratégia do medo soube se aproveitar muitíssimo.

É essencial isto: o ódio ao PT não foi obra de Bolsonaro. Nasce de outras esquinas e vai do ressentimento da classe média pela tímida transformação na estrutura social brasileira, que permitiu que pobres voassem de avião – lembram-se da professora incomodada com o fato de o aeroporto estar agora parecido com uma rodoviária? –,  a inclusão de negros e pobres nas universidades, a concessão de direitos às empregadas domésticas, a ampliação do acesso a certos bens de consumo. Isso não foi capaz de mudar quase nada neste Brasil que continua tão desigual, mas foi forte o suficiente para despontar o ódio de classe pelo medo da perda daquilo que distingue os fidalgos dos pés-rapados. Mas é claro que não se podia admitir isso assim, embora fosse claro. Por isso, resolveu-se jogar tudo na conta da corrupção.

E aqui os meios de comunicação e até setores das instituições da república atuaram de forma a criar as condições para a vitória do medo e a ascensão da extrema-direita. Da imprensa, já falei antes: a sistemática cobertura adversária e a elevação da corrupção à categoria estruturante da política não atingiu apenas o PT, mas toda a classe política. Esta, no imaginário popular, teria de ser reformada por um salvador da pátria. Já sobre as instituições, recordo a figura de Sérgio Moro e da própria Operação Lava Jato, bajulada por uma imprensa sedenta por cenas de prisões. Só para registo: quatro dias antes do primeiro turno eleitoral, Sérgio Moro decidiu enviar a essa imprensa encantada pelas decisões de Curitiba a delação feita por Antônio Palocci – réu confesso – na qual o ex-ministro petista afirmava que Lula saberia dos desvios investigados na Lava Jato. Por que divulgar aquela delação naquele momento? Para criar fato político. Para interferir no processo eleitoral. Para aumentar um pouco mais a temperatura do medo e, assim, dar uma ajudinha à estratégia de Bannon. Quem o diz não sou eu. São os fatos. Há três dias, o Supremo Tribunal Federal anulou o uso da delação de Palocci nos processos contra Lula. O que isso quer dizer? No mínimo que Moro era cabo eleitoral de Bolsonaro, muito distante das funções que a Constituição exige de um juiz.

Até aqui venceram o medo e o ressentimento. O horror. A tragédia. Em meio à maior pandemia do último século, o Brasil de Bolsonaro regista 90 mil mortos e mais de dois milhões de infectados. 1% da população. Enquanto isso, a fabricação do medo continua. E não parece que a estratégia vá mudar. Até porque continuamos a ter medo. E é disso que a política do medo se nutre. De todo modo, não somos apenas nós os temerosos. Os fabricantes do medo também temem o seu fim. Como disse o escritor moçambicano Mia Couto num vídeo já famoso na internet: há quem tenha medo que o medo acabe.

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Bruno Araújo

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