À procura do Expresso “Transibérico”
A civilização é moldada por pessoas que se encontram, compartilham ideias e, em seguida, seguem os seus caminhos, disseminando o que aprenderam, espalhando conhecimento e criando uma cultura comum. Se as pessoas são o “sangue” da civilização, os meios de comunicação e de transporte são as veias e as artérias. Embora a Internet tenha eliminado algumas distâncias físicas, as crises das cadeias de distribuição e as quarentenas durante a pandemia de covid-19 provaram que os seres humanos e os bens continuam a ter de se movimentar. Sem movimento e sem ligações, nada se desenvolve.
Dependendo da zona do corpo, o sangue circula com maior ou menor facilidade. É por isso que temos mais frio nas extremidades: quando desce a temperatura, a circulação nas mãos e nos pés é limitada para manter o resto quente1. O mesmo ocorre com a civilização: aqueles que estão mais distantes possuem menos acesso. Por isso, Portugal tem de aceitar que é, literalmente, um país periférico. Situado na extremidade de um continente, a geografia não nos oferece outra alternativa. A questão é o que fazemos para lidar com isso.
Juntando estas duas ideias – movimentos de pessoas e de mercadorias espalham civilização e criam riqueza e crescimento, pelo que são prioritários para qualquer nação –, a quantidade de decisões políticas que limitam as vias de comunicação ferroviárias do país é surpreendente. Como exemplo disso, recordo o famoso TGV2 que ia ligar Lisboa a Madrid e que, em nome da austeridade, morreu antes de nascer. Ganhou a contenção de custos, perdeu um país que parece não querer estar acima das médias europeias. Outro exemplo, paradigmático, foi o fecho do ramal da Lousã, ainda à espera de ser substituído por um “metro”3, mas que limitou o crescimento de uma vila que começava a ser uma alternativa viável a quem procurasse viver fora de Coimbra.
Apesar disso, parece que o amor ao alcatrão começa a acabar e que a aposta no caminho-de-ferro parece iminente. Passámos da ideia de que a expansão da ferrovia era um tema tóxico a uma fase de promessas de estudos de ligações entre Aveiro e Salamanca ou entre Faro e Sevilha, de comboios rápidos pelo Litoral ou, até, de expansões das linhas no Sul do país. Contudo, Portugal parece ser sempre surpreendido pelos acontecimentos, deixando outros países definirem prioridades, já que, quando a Renfe4 anunciou uma ligação entre Évora e a Estremadura espanhola, a Comboios de Portugal nada sabia. Os investimentos nunca devem ser feitos por acaso. O que precisamos é de uma verdadeira política de mobilidade que sirva os interesses do país, não devendo esperar por pressões exteriores para pensar nisso.
Quanto do Interior português (e espanhol) não beneficiaria da ligação a uma rede europeia de comboios? Os slogans turísticos escrevem-se a si mesmos: de Riga a Reguengos, uma Europa de ponta a ponta.
Se existe um “Transiberiano”, por que não um “Transibérico”? Facilitar o acesso e o movimento ajuda a espalhar os ganhos de turismo e, se calhar, espalhar os nómadas digitais que se concentram em grandes cidades e que fazem subir o custo de vida, sem darem muito em troca, sobretudo ao ambiente à sua volta. Fora do turismo, seria também uma boa oportunidade para se começar a criar e a apoiar novas indústrias inovadoras. Se houver empregos, as pessoas virão. Se houver conexões, mais fácil fica gerar essas posições. De facto, uma boa ligação pode trazer o Interior de volta à vida.
Um exemplo de como o Mundo não vive só de carros? O Reino Unido criou uma Revolução Industrial suportada por caminhos-de-ferro e, mesmo com décadas de privatizações que diminuíram a qualidade dos serviços, aumentando os preços, os comboios continuam a ser um elemento central das metrópoles britânicas.
Após um ano de muitas greves, em Janeiro de 2023, o ministro para os Transportes, Huw Merriman, declarou que, em 2022, as greves tiveram um impacto na economia de mais de 700 milhões de libras, podendo ter ultrapassado mil milhões. Note-se que 25 milhões de libras por dia laboral têm implicações na vida de pessoas que não se mexem, que não vão fazer compras de Natal ou, simplesmente, que queiram comprar um café. A Grã-Bretanha é uma ilha que poderia ter pouca importância, mas que, com um bocadinho de sorte geográfica, apostou em fortes conexões internas e criou um império global. É pena que se tenham esquecido disso na hora do Brexit, uma opção que torna os britânicos mais periféricos. E ninguém devia escolher ser periférico, pois não?
É, igualmente, claro que caminhos-de-ferro não são uma solução mágica para todos os problemas de um Interior português desaproveitado e de um país centralizado e dependente de forças externas. Porém, introduzir mais vias de comunicação e criar oportunidades será um primeiro passo para ajudar as pessoas e as mercadorias a circularem melhor. Com os bens acessíveis e as pessoas a circularem, surgirão as ideias. Provavelmente, a partir dessas ideias poder-se-á construir um futuro em que, quem sabe, mesmo estando na periferia, as distâncias serão mais curtas.
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Notas da Redacção:
1 – Refira-se que, com as baixas temperaturas, acontece vasoconstrição, devido à diminuição do diâmetro dos vasos sanguíneos, o que limita a quantidade de sangue que chega aos órgãos principais e, sobretudo, às extremidades do nosso corpo. Por outro lado, também a má circulação sanguínea nas extremidades, como as mãos e os pés, externaliza o problema com a sensação de frio.
2 – TGV sigla de “Train à Grande Vitesse”.
3 – Como regista a Wikipédia, o Metro Mondego foi um projecto para a construção de uma rede de metropolitano ligeiro de superfície nos municípios de Coimbra, de Miranda do Corvo e da Lousã, na região Centro. Foi a primeira versão do projecto do Sistema de Mobilidade do Mondego, antes de este projecto ser profundamente reformulado em 2017.
4 – Operadora que explora a rede ferroviária espanhola.
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07/09/2023