A representatividade negra pela literatura: do passado ao presente
“Arando o passado e colhendo o futuro: a perspectiva da narrativa decolonial”, assim começou a comunicação de Itamar Vieira Junior sobre literatura e o pensamento decolonial, em Fevereiro, nos dias 12 e 13, no mês da celebração da história negra no Canadá. As conferências e rodas de conversa são uma parceria do Departamento de Português e Espanhol da Universidade de Toronto, do Instituto Guimarães Rosa e do Consulado-geral do Brasil em Toronto, desde o ano passado, quando trouxeram o escritor e investigador independente Vinicius Portella Castro (pode reler o nosso artigo intitulado “Carta para o ano de 2022 e um olhar para o novo ano”).
“O meu objetivo era registrar como literatura, o amor à terra que vi em camponeses declararem ao longo dos anos enquanto eu trabalhava em campo”, recorda Itamar Vieira Junior.
Servidor público do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), autarquia federal responsável pela regularização fundiária, hoje em licença sem vencimento, doutor em Estudos Étnicos e Africanos, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e mestre em Geografia, pela mesma instituição, Itamar Vieira Júnior ganhou notoriedade mundial pela sua literatura de ficção com “Torto Arado”, vencedor do Prémio LeYa. Ganhador de diversos outros prémios, como Jabuti e Oceanos, e inspirado pelo trabalho realizado como servidor público e pesquisador académico, Itamar Vieira Júnior trabalha na literatura a relação do tempo com a terra na construção da identidade e do pertencimento nas comunidades quilombolas.
“Foi cavalgando o seu corpo que senti que o passado nunca nos abandona”, manifesta Torto Arado.
Por meio da citação da encantada Santa Rita Pescadeira, vem a noção religiosa de possessão a conectar os tempos do passado ao presente no corpo das personagens. Uma narrativa enraizada na terra, a evocar o passado histórico da Chapada Diamantina ao Brasil actual.
“O passado por mais distante que esteja, ele continua a nos acompanhar”, diz Itamar Vieira Junior.
Um Brasil atravessado pela brutalidade do empreendimento colonial europeu a apresentar o seu passado ainda muito presente no seu diverso território. Na voz da encantada Santa Rita Pescadeira, a narrativa histórica apresenta o seu impacto tanto na individualidade quanto na totalidade da comunidade diaspórica africana da Fazenda Água Negra.
“O tempo me permitiu compreender que as marcas da história estão escritas em nossos corpos, nas nossas trajectórias, nos nossos códigos genéticos e ancestrais e não nos abandonam ainda que este seja o nosso propósito”, expressa Itamar Vieira Junior.
Entre narrativas, rupturas e violências, a escrita literária de Itamar Vieira Junior dá voz à diversidade e à complexidade da identidade brasileira e à sua relação com a terra e o tempo. Mais precisamente, Itamar Vieira Junior dá voz a Bibiana e a Belonísia, duas mulheres que representam o desejo de liberdade e de dignidade. Um desejo que advém do passado escravista dos seus antepassados e bastante actual. Na voz de mulheres, Itamar trabalha o paradigma feminista que tenta reconquistar o lugar da terra como boa mãe, atravessada pelo patriarcado que percebe a terra como recurso, bem económico a ser explorado.
Itamar Vieira Junior esclarece que escreve uma literatura de ficção e partilha mais sobre o seu processo criativo. Para ele, a literatura é escrita sobre três pilares, a conter a capacidade de observação do seu entorno, a capacidade de evocar a memória por meio de sentimentos e histórias que o constituem, e a capacidade de imaginar.
“É uma memória pessoal, mas é uma memória de sentimentos e de histórias que me constituem. Se eu preciso fazer com que um personagem chore, eu vou recorrer a essa memória do que o corpo sente quando sofre e quando chora. Se eu preciso narrar o riso, eu vou recorrer ao mesmo sentimento. Eu vou evocar essa memória”, esclarece Itamar Vieira Junior.
Esta capacidade de imaginar e de criar vem quase como um encantamento em que traz à vida um pouco da história e da memória colectiva, a representar indivíduos e comunidades por meio da literatura. Um processo que continua a dar voz a muitos.
Um país de território continental e de uma imensa diversidade identitária pode apresentar dificuldades no desenvolvimento do pertencimento da população. Uma sensação de ser estrangeiro no próprio país, por conta de sofrer com violências e preconceitos, a criarem barreiras no processo de integração. Com isso, para muitos brasileiros residentes no Brasil, o processo de identificação ainda ocorre de forma lenta. Para além da auto-identificação nas pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há uma necessidade de ultrapassar barreiras como o racismo, vividas pelas diversas minorias.
Idealizadora do Quilombo Intelectual, a professora adjunta e pesquisadora da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) Franciéle Garcês conta mais sobre a importância de se utilizar uma bibliografia negra e decolonial na academia como ferramenta contra o preconceito.
A bibliografia negra tem uma especificidade por ser feita por atores que estão historicamente à margem. Justamente por isso, ela serve como um instrumento de representatividade porque quem vai escrever sobre essas histórias e experiências negras [de] pessoas negras e, ao mesmo tempo, se utiliza dessa bibliografia como um instrumento que referencia outros teóricos e teóricas negros. A partir daí, em diversas áreas do conhecimento[,] a gente vai encontrar esse acesso por meio de uma bibliografia. Um acesso à nossa história, à memória, à cultura, com elementos que constroem uma população, principalmente uma identidade étnico-racial desses sujeitos[,] dentro dessas comunidades”, expõe Franciéle Garcês.
A professora Franciéle Garcês explicita que a bibliografia negra não é uma história convencional, portanto, uma história contada pelos “brancos”. Com isso, a necessidade de se fazer uso deste material é essencial, tanto dentro quanto fora da academia.
“Nós temos que buscar ler livros, ler autorias de pessoas negras, introduzir isso no nosso dia-a-dia através de uma literatura científica e ficcional e que[,] a partir desse momento[,] vai nos permitir conhecer outros modos de ser e estar no mundo[,] num sentido mais amplo”, sublinha Franciéle Garcês.
Por meio do conhecimento, a bibliografia negra torna-se um instrumento de luta contra o racismo, ao passo que dá voz a todos aqueles que sofreram com o memoricídio resultado do processo de escravização.
“Quando a gente fala de bibliografia negra, ela se torna um instrumento de buscar essas histórias que não estão contadas nos livros oficiais de literatura que aprendemos no período escolar, ao mesmo tempo[,] a gente tem acesso a essas informações que antes estavam colocadas de uma forma pela oralidade, seja através da oralidade transpassada de geração por geração, ou seja por intermédio do acesso a essas fontes informacionais que a gente vai ter e que são produzidos por esses teóricos e teóricas negras”, refere Franciéle Garcês.
A professora Garcês complementa sobre a importância e o papel do profissional de informação: “O papel do profissional da informação entra justamente nisso, que é armazenar, recuperar, promover o acesso a essas informações. E[,] por isso mesmo, a importância de construir profissionais que sejam voltados para essa consciência, não só do período histórico do nosso país, mas também dos instrumentos que a nossa profissão[,] enquanto bibliotecários[,] nos permitem para representação, construção, preservação, e para a disponibilização desse conhecimento negro para todas as pessoas, independentemente da sua pertença étnico-racial”.
O sinalAberto deixa ao leitor algumas sugestões de livros para aprofundar mais a questão:
- “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior;
- “Biblioteconomia Negra – Das Epistemologias Negro-Africana à Teoria Crítica Racial”, de Franciéle Carneiro Garcês-da-Silva;
- “Colorismo – Feminismos Plurais”, de Alessandra Devulsky;
- “Lugar de Fala – Feminismos Plurais”, de Djamila Ribeiro;
- “Pequeno Manual Antirracista”, de Djamila Ribeiro;
- “Quarto do Despejo”, de Carolina Maria de Jesus;
- “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves;
- “Olhos D’Água”, de Conceição Evaristo;
- “Epistemologia Social Feminista Negra”, de Leyde Klébia Rodrigues da Silva;
- “A Vida Não é Útil”, de Ailton Krenak;
- “A Terra Dá, a Terra Quer”, de Antônio Bispo dos Santos;
- “O Negro Visto Por Ele Mesmo”, de Beatriz Nascimento; e
- “Minha Mãe Usa Touca de Cetim”, de Cintia Almeida da Silva Santos.
29/02/2024