A sufragista pragmática: Carolina Beatriz Ângelo (1911)
Lisboa – 1910
Carolina Beatriz Ângelo e Ana de Castro Osório, amigas e dirigentes feministas da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, entram no gabinete do presidente do Governo Provisório republicano, Teófilo Braga.
A República acabou de ser implantada em Portugal, um país pobre e atrasado. Há uma onda de esperança generalizada. É urgente mudar muita coisa e as mentalidades curtas estão incluídas.
Carolina Beatriz Ângelo estás, aqui, numa audiência com o presidente do Governo Provisório republicano, Teófilo Braga, para apresentar cumprimentos. E, claro está, para alertares os novos governantes sobre vários aspetos da desonrosa situação das mulheres portuguesas, incluindo a questão do voto.
Solicitas ao presidente do Governo para que a lei eleitoral possa permitir às mulheres votarem e serem eleitas. É da mais elementar garantia de liberdade e de justiça.
O presidente Teófilo Braga diz que a República tudo fará para que a mulher portuguesa tenha dignidade e alcance direitos até agora só concedidos aos homens.
Insistes, Carolina Beatriz Ângelo. Nos próximos meses, este país vai ter as primeiras eleições da República e é fundamental conceder, pela primeira vez, o direito de voto às mulheres.
Sais da audiência com o presidente do Governo com a mais elevada expectativa, mas tudo não passa de uma ilusão porque, em breve, vais sentir terríveis dificuldades e obstáculos, com o objetivo de impedir o voto das mulheres.
Lisboa – 1908
Um grupo de mulheres – entre as quais se encontram Carolina Beatriz Ângelo, Ana de Castro Osório e Adelaide Cabete – discute a criação da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas.
Carolina Beatriz Ângelo, não és apenas tu e um número restrito de amigas que têm participação ativa na sociedade! Cada vez mais, há mulheres a aderir à causa feminista.
És uma respeitada médica, Carolina, e ao teu lado estão Ana de Castro Osório, jornalista e escritora, Adelaide Cabete, médica como tu, e outras ilustres mulheres, muitas delas professoras.
Esta reunião está a dar início à formação da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, enquanto o Grupo Português de Estudos Feministas cessa a sua atividade.
A Liga vai passar a ter um papel ativista, ao contrário do Grupo de Estudos, que era mais passivo e ignorado. E tu, Carolina Beatriz Ângelo, vais ser uma das ativistas do movimento, que está a ser apoiado pelos republicanos e pela Maçonaria, da qual também fazes parte, através da Loja Humanidade.
A partir de agora, a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas pretende ser uma associação reconhecida e organizada que vai lutar, até à exaustão, para minimizar as desigualdades entre os géneros.
Nos próximos anos, as vozes frágeis das mulheres portuguesas não ficarão amordaçadas. Têm quem as represente, quem as defenda e quem fale por elas.
A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas compromete-se a debater pela educação e instrução da mulher, pela independência económica e pelo direito ao voto.
Tu, Carolina Beatriz Ângelo, levantarás a voz em defesa da mulher até que a morte te cale.
Juntamente com Ana de Castro Osório e um punhado de mulheres inquebráveis, Portugal vai ser falado internacionalmente como um exemplo da luta das sufragistas, contra tudo e contra todos.
Carolina Beatriz Ângelo e Ana de Castro Osório são ovacionadas na reunião da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas.
(ouvir)
O ano agitado de 1908, marcado pelo regicídio, é o prólogo de um novo capítulo da História de Portugal e do combate das feministas.
Lisboa – 1910
A República consolidou-se nas ruas de Lisboa e do Porto e um pouco por todo o país.
Carolina Beatriz Ângelo, como entusiasta do movimento republicano, colaboras empenhadamente na campanha a favor da Lei do Divórcio.
O diploma estabelece, pela primeira vez em Portugal, a possibilidade de divórcio concedido a um ou aos dois cônjuges e a oportunidade de contraírem novo matrimónio.
Carolina Beatriz Ângelo está em casa, sentada no sofá, ao lado do marido Januário Barreto, a ler, entusiasmada, o jornal em voz alta.
“O divórcio pode ser declarado por motivo de adultério de uma das partes, condenação de um dos cônjuges em pena maior, sevícias e injúrias graves, abandono do lar por mais de três anos, loucura incurável, separação de facto por 10 anos consecutivos, vício inveterado do jogo de fortuna ou azar, doença contagiosa incurável ou doença insanável que importasse aberração sexual.”
Ainda há mais legislação revolucionária para um país tão atrasado. As Leis da Família põem fim ao monopólio da Igreja Católica.
O primeiro documento estipula que o casamento é um contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente, ao mesmo tempo que esclarece que é um convénio civil de acordo com a legislação, e só esse é válido.
A segunda lei determina a questão dos filhos legítimos e dos perfilhados, da investigação da paternidade ou maternidade ilegítimas, dos alimentos e do auxílio às mães dos filhos ilegítimos.
A outra norma marcante é o direito à greve, uma antiga reivindicação da classe operária. No entanto, este diploma é bastante criticado pelos sindicalistas, que apelidam de “decreto-burla”, devido ao facto de não permitir o exercício da greve aos funcionários do Estado.
Nos dois meses após a implantação da República, tiveste uma participação efervescente, Carolina Beatriz Ângelo. Parecia um fim de ano perfeito, não fosse a inesperada morte do teu marido, o médico Januário Barreto. Ficas só com uma filha de sete anos, mas nem por isso vais abrandar a tua luta feminista.
Carolina Beatriz Ângelo e Ana de Castro Osório são de novo recebidas por Teófilo Braga, presidente do Governo Provisório da República.
Mais uma audiência com o presidente do Governo Provisório da República, Teófilo Braga. Mas desta vez, Carolina Beatriz Ângelo, a reunião não é tão afável como a anterior. Tu e Ana de Castro Osório estão a ver inúmeras mudanças políticas e diversos projetos ideológicos em Portugal, mas nenhum contempla avanços relativamente à situação inferior da mulher na sociedade.
Se nada se alterar em breve, as expectativas criadas pelos políticos republicanos relativamente à situação da mulher, designadamente o direito ao voto, ficam defraudadas. És eloquente, mas clara nas tuas palavras, Carolina Beatriz Ângelo. Dizes ao presidente Teófilo Braga que tens receio de vires a ficar desiludida com os homens republicanos, ao lado dos quais lutaste pelos mesmos ideais.
Teófilo Braga defende-se dizendo-te que na República ninguém tem o poder absoluto e que as decisões são coletivas. E mais te conta, Carolina Beatriz Ângelo. Afirma que o regime republicano ainda não está consolidado.
O índice de analfabetismo é muito elevado e a Igreja Católica, aliada dos monárquicos, controla grande parte do país fora dos principais centros urbanos. Abrir o sufrágio a toda a população é oferecer a propaganda monárquica à Igreja, argumenta Teófilo Braga.
Dizes que entendes, Carolina Beatriz Ângelo, mas receias o pior: que a tua luta tenha sido deixada ao abandono por quem agora tem o poder.
Em nome da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, entregas um documento onde estão expostos os principais aspetos da situação da mulher portuguesa que urge mudar, incluindo o direito ao voto.
Ao contrário da última reunião, não sais sorridente, Carolina Beatriz Ângelo.
A Liga Republicana das Mulheres Portuguesas tem mais uma reunião importante para definir o futuro. As principais dirigentes tomam a palavra. Mas o clima começa a ficar tenso.
(ouvir)
A Liga está cada vez mais dividida entre uma fação moderada e outra reivindicativa.
Tu, Carolina Beatriz Ângelo, juntamente com Ana de Castro Osório, integras o grupo moderado e minoritário, enquanto Maria Veleda lidera a ala radical, que recolhe a simpatia da maioria das mulheres da Liga.
Maria Veleda defende uma posição revolucionária e combativa pelos direitos absolutos e imediatos de todas as mulheres. A tua posição, Carolina Beatriz Ângelo, assim como a de Ana de Castro Osório, é a de que as reivindicações devem ser progressivas.
As diferenças são grandes e se ninguém ceder passam a ser inconciliáveis.
Defendes tu, Carolina Beatriz Ângelo, que, para começar, a prioridade deve incidir no sufrágio feminino, mas apenas para as mulheres que fossem comerciantes, industriais, empregadas públicas, administradoras de fortuna própria ou alheia, diplomadas, escritoras, entre outras.
A discussão na Liga Republicana das Mulheres Portuguesas está acesa. A cisão parece inevitável.
A intervenção firme de Maria Veleda recolhe os aplausos da maioria das mulheres.
(ouvir)
Carolina Beatriz Ângelo intervém na reunião, mas tem pouco acolhimento entre as restantes mulheres da Liga. A cisão parece inevitável.
Com a maioria dos elementos ao lado de Maria Veleda, Carolina Beatriz Ângelo e Ana de Castro Osório demitem-se da direção da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e abandonam a associação.
Carolina Beatriz Ângelo não é mulher que se renda. Novamente ao lado de Ana de Castro Osório, companheira de velhas lutas, prepara-se para mais uma etapa. Está a organizar os estatutos de uma nova entidade, a Associação de Propaganda Feminista, que tem como lema três palavras: Perseverança, Verdade e Justiça.
A associação vai centrar a reivindicação na questão do sufrágio feminino, mas estrategicamente faseado, como sempre defendeu Carolina Beatriz Ângelo.
O método da Associação de Propaganda Feminista passa por realizar conferências, escrever nos jornais, entregar petições aos órgãos de soberania, entre outras iniciativas.
Foste escolhido para presidir ao Governo Provisório, Teófilo Braga, por seres um velho republicano moderado e respeitado por todas as fações.
O governo estará em funções até à abertura oficial da Assembleia Nacional Constituinte, que será em junho de 1911, na sequência das eleições de maio desse ano.
Se é verdade que o povo das principais cidades apoia a República, o caminho português do primeiro ano republicano tem sido tortuoso e árduo.
Por estranho que pareça, o maior aliado da causa republicana foi o regime monárquico, cuja inépcia levou o país a um profundo descontentamento.
Dez anos antes, em 1890, o governo britânico fez um ultimato a Portugal, exigindo a retirada das forças militares lusas nos territórios compreendidos entre as colónias de Angola e Moçambique, terras reivindicadas pelos portugueses. Essa área de conflito diplomático será conhecida por Mapa Cor-de-Rosa.
A rápida e incondicional cedência às exigências britânicas gerou um enorme desagrado no país, ampliado por várias manifestações e protestos.
Perante a subserviência aos britânicos, que terá sido a maior humilhação da História de Portugal, grande parte da população apontou o rei D. Carlos e o governo monárquico como agentes desqualificados para estar à frente do país.
Um ano depois da humilhação portuguesa, em 1891, registou-se no Porto um levantamento militar contra a monarquia. Os revoltosos conseguiram tomar os Paços do Concelho portuense e proclamar a implantação da República. Foi no dia 31 de janeiro de 1891.
Depois dos confrontos com as forças fiéis monárquicas, o golpe foi abortado e os revoltosos detidos e condenados ao degredo em África.
O ano de 1892 foi assinalado pela bancarrota de Portugal. O país foi obrigado a pedir auxílio financeiro para a gestão corrente do Estado. Foi mais uma oportunidade para o crescimento do Partido Republicano Português, que foi criado em 1876.
Em 1909, o Partido Republicano contava nas suas fileiras com uma elite intelectual respeitada e ativa, como Bernardino Machado, António José de Almeida, Afonso Costa, António Luís Gomes e Celestino de Almeida, entre outros.
Em sucessivas eleições, o Partido Republicano conseguiu eleger vários deputados, facto que foi um indicador da popularidade que adquiriu.
Com o país endividado, pobre e subdesenvolvido, o Partido Republicano soube tirar o maior proveito da situação em termos de propaganda.
Por outro lado, a sociedade secreta Carbonária e a semi-secreta Maçonaria, ambas compostas por republicanos, dão um forte impulso ao movimento antimonárquico e à preparação para a mudança do regime.
O país estava a ser governado, em alternância, por dois partidos, o Progressista e o Regenerador. Mas nem um nem outro gozavam de grande popularidade.
Com os dois partidos demasiado encrespados, em 1906, o rei D. Carlos decidiu nomear João Franco, dissidente do Partido Regenerador, para chefe do Governo.
João Franco conseguiu convencer o rei a encerrar o parlamento, com o pretexto de implementar uma série de medidas com vista à moralização da vida política e à recuperação das finanças do Estado.
Ao aceitar a proposta de João Franco, o rei D. Carlos sancionou a instauração de uma ditadura.
Se o clima político já estava quente, com a ditadura de João Franco passou a uma bomba-relógio. O rei e o chefe do Governo começaram a ser criticados por todos os partidos, tanto os monárquicos como o republicano.
Multiplicam-se os presos políticos. A situação é insustentável.
Nos bastidores, engendra-se um plano para um golpe de Estado, inicialmente apenas para matar João Franco, mas depois incluía também o assassinato do rei. Na trama, estavam envolvidos o Partido Republicano, os monárquicos da Dissidência Progressista e a Carbonária. A intentona foi denunciada às autoridades e os vários conspiradores presos, entre os quais o carismático republicano Afonso Costa.
Com a situação quase explosiva, o rei D. Carlos, que se encontrava fora de Lisboa numa temporada de caça, regressou à capital com o objetivo de acalmar os ânimos.
O que a família real não sabe é que está a ser preparado um atentado por elementos da Carbonária.
Quando a carruagem real passava no Terreiro do Paço, um tiro de carabina trespassou o pescoço de D. Carlos, provocando-lhe morte imediata. Seguiram-se outros disparos em direção ao príncipe herdeiro, D. Luís Filipe, que acaba também por falecer.
(ouvir)
Escaparam ao assassinato a rainha D. Amélia e o príncipe mais novo, D. Manuel.
Dois dos regicidas foram mortos no local, pela guarda real, e os outros escaparam.
Após o regicídio, D. Manuel foi proclamado rei e João Franco demitido.
A Monarquia estava em agonia e a República pronta para entrar em cena.
Com D. Manuel II, no dia 28 de agosto de 1910, realizaram-se eleições legislativas. O Partido Republicano conseguiu o melhor resultado de sempre, elegendo 14 deputados.
Apesar do forte crescimento do Partido Republicano, a ala mais radical defendia a luta armada como meio para chegar ao poder a curto prazo. Num congresso, foi esta estratégia que venceu. Estava decidido o golpe de Estado.
Durante vários meses, circulavam informações e boatos de que estava iminente uma intervenção republicana.
O Governo ordenou a todas as forças para manterem o alerta máximo, mas nem isso impediu a revolta dos opositores ao regime.
No dia 3 de outubro de 1910, vários grupos de revoltosos tomaram posições em regimentos, em navios e em diversos locais de Lisboa, entre os quais a Rotunda (atual Praça do Marquês de Pombal), ponto nevrálgico da cidade. As forças do governo reagiram, apesar de algumas unidades não responderem.
*(ver filme no final do artigo)
Elementos da Carbonária tinham sabotado as comunicações telefónicas, pelo que os reforços militares que poderiam vir de outros pontos do país não chegaram a Lisboa.
Os republicanos concentraram-se na Rotunda, enquanto os navios sublevados, junto ao Terreiro do Paço, dominavam o rio Tejo e os ministérios do Governo.
O moral das forças monárquicas estava cada vez mais baixo e vários elementos desertavam e passavam para o lado republicano.
O rei D. Manuel II e a rainha-mãe D. Amélia saíram de Lisboa, refugiando-se em Mafra.
A queda da Monarquia era inevitável, até que, na manhã de 5 de outubro de 1910, um grupo de republicanos subiu à varanda do primeiro andar dos Paços do Concelho de Lisboa e proclama a República.
Rapidamente, a notícia espalhou-se por todo o país. A Monarquia já não tinha bolsas de resistência.
Uma parte da população saiu à rua celebrando a queda da Monarquia e a implantação da República.
A imprensa portuguesa e estrangeira fez grande eco sobre o acontecimento. Portugal tornou-se numa república no seio de uma Europa maioritariamente monárquica.
Em maio de 1911, realizam-se eleições. A Assembleia Nacional Constituinte abriu em junho, proclamando oficialmente a implantação da República Portuguesa.
Voltemos a ti, Carolina Beatriz Ângelo. Estás ansiosa para leres o que diz a nova lei eleitoral. Tens sentido um mau presságio e com razão! Confirmas, com os teus próprios olhos. O novo diploma consagra que são eleitores os cidadãos maiores de 21 anos, sabendo ler e escrever e sendo chefes de família.
Ainda que a lei não o indique expressamente, subentende-se que se trata de portugueses do sexo masculino, na sequência da vontade da maioria dos políticos.
O teu receio confirma-se: as mulheres estão afastadas do ato eleitoral. Sentes-te traída, Carolina Beatriz Ângelo. Tu e todas as mulheres sufragistas.
Mas não és pessoa de quebrar. Tu e as tuas companheiras da Associação de Propaganda Feminista analisam o texto da lei eleitoral. Se a norma diz que “são eleitores os cidadãos”, não está a excluir as mulheres, já que gramaticalmente a palavra no plural “cidadãos” inclui os géneros masculino e feminino.
Além disso, Carolina Beatriz Ângelo, podes invocar a qualidade de chefe de família para votar, conforme prescreve a lei, uma vez que és viúva e tens a teu cargo uma filha menor.
Ainda que saibas que o legislador quis interditar o voto às mulheres, tens forma de contornar a lei. E é isso o que vais fazer, mesmo contra a vontade dos teus parceiros políticos republicanos.
Sabes que vais levantar controvérsia, mas nada melhor do que desencadear o debate para propaganda do sufragismo feminino.
As sufragistas lançam uma campanha junto da imprensa. E tu, Carolina Beatriz Ângelo, em particular, desdobras-te em entrevistas aos jornais.
Ao jornal A Capital afirmas: “A nossa intenção não é pedir agora ao governo que introduza modificações na lei. Nós propomo-nos tomar parte no sufrágio eleitoral, mas sem que para isso seja necessário alterar uma vírgula do decreto.”
A polémica está instalada. Na imprensa, sucedem-se artigos a favor e contra a possibilidade de as mulheres votarem.
Mas sabes uma coisa, Carolina Beatriz Ângelo: a maioria dos políticos republicanos está contra o sufrágio feminino e tudo fará para te impedir de votar.
O tempo urge. Tens de passar imediatamente à ação. Tal como anunciaste na imprensa, apresentas um requerimento à Comissão de Recenseamento:
“Ex.mo sr. presidente da comissão recenseadora do 2º bairro de Lisboa. Carolina Beatriz Ângelo (…), abaixo assinada (…) como cidadão português (…) não excluída dos seus direitos públicos de eleitor por qualquer dos impedimentos (…) e estando antes compreendida em ambas as categorias de eleitoridade (…) por quanto não só sabe ler e escrever, mas é chefe de família, vivendo nessa qualidade com uma filha menor, a cujo sustento e educação prevê com o seu trabalho profissional, pretende em tempo e para todos os efeitos legais que o seu nome seja incluído no novo recenseamento eleitoral. (…)”
O presidente da comissão recenseadora, sem saber o que fazer, endereçou o requerimento ao ministro do Interior, António José de Almeida, responsável pela legislação eleitoral. A resposta foi breve: indeferido!
Agora, Carolina Beatriz Ângelo, só te resta o recurso ao tribunal.
Novamente, espantas o país e recebes cada vez mais apoio das sufragistas estrangeiras.
No Tribunal da Boa-Hora apresentas uma queixa:
“Ex.mo Sr. Juiz: – Carolina Beatriz Ângelo, abaixo assinada, viúva, médica (…) para v. exª reclama contra a sua exclusão do recenseamento eleitoral, – manifestamente ofensivo dos seus direitos políticos como cidadão português (…) A reclamante requereu a sua inserção no recenseamento, fundando o seu pedido na lei que evidentemente não exclui as mulheres do direito de eleitoridade (…) A reclamante tem capacidade eleitoral; sabe ler e escrever, é chefe de família, é cidadão português. (…)”
O tribunal decidiu o teu caso favoravelmente, Carolina Beatriz Ângelo.
O juiz João Baptista de Castro tomou uma decisão histórica. O magistrado fundamenta a sentença:
“Considerando que excluindo a mulher, apesar de ser uma ilustração, como a reclamante, de ser eleitora e ter intervenção nos assuntos políticos – só por ser mulher – é simplesmente absurdo e iníquo e em oposição com as próprias ideias da democracia e justiça proclamadas pelo Partido Republicano, porquanto desde que a reclamante tem todos os predicados para ser eleitora não pode arbitrariamente ser excluída do recenseamento eleitoral […]. Por isso, em obediência aos verdadeiros princípios da moderna justiça social: Julgo procedente e provada a presente reclamação e mando que a reclamante seja incluída no recenseamento eleitoral.”
És notícia em todos os jornais, Carolina Beatriz Ângelo. Estás radiante e as tuas companheiras também. Valeu a pena lutar. Agora, legalmente não podem impedir-te de votar. Lamentas apenas uma coisa: seres a única portuguesa que conseguiu esse direito. Mas é um primeiro passo e a história faz-se caminhando, por vezes devagar. Vai recensear-te, pois só falta um mês para as eleições constituintes.
Estamos no dia 28 de maio de 1911, Carolina Beatriz Ângelo. Chegou o grande momento, vais votar na Assembleia Eleitoral no Clube Estefânia. És a única mulher, é certo, mas vais fazer história.
Estás acompanhada por outras sufragistas e todas foram bem recebidas no Clube Estefânia, inclusive com alguns aplausos.
Diriges-te triunfante para a urna, mas os obstáculos parecem não ter fim. Caricatamente, o presidente da mesa tem dúvidas sobre a legitimidade do teu voto, por lhe ter constado que o governo tinha consultado o Procurador-Geral da República acerca da sentença do juiz, e pergunta aos outros representantes da mesa se aceitam que tu, sendo mulher, possas votar.
Como ninguém se opôs, não houve incidente. E agora, sim, vais depositar o teu voto na urna.
Faz-se história, já ninguém a pode apagar. Cumpriste com a tua ameaça, cumpriste com o teu dever, Carolina Beatriz Ângelo.
Vais ser notícia de primeira página nos jornais portugueses, mas também vais ter grande destaque na imprensa internacional.
Com perseverança, atingiste o grande objetivo: votar! Foste a única mulher que concretizou o que outras reclamavam. Quando te encontrares com Afonso Costa, ele vai apelidar-te de “sufragista prática”.
Não dás por terminado o teu trabalho, Carolina Beatriz Ângelo. Em nome da Associação de Propaganda Feminista, apresentas uma petição à Assembleia Nacional Constituinte sobre a questão do voto feminino.
Carolina Beatriz Ângelo trabalha cada vez mais na Associação, sem descurar a profissão de médica. O seu cansaço é visível, mas ela não pensa em abrandar.
Inesperadamente, é traída pelo coração, no dia 3 de outubro de 1911, cinco meses depois das eleições.
Tens 33 anos, Carolina Beatriz Ângelo, e deixas uma filha órfã de oito anos.
A tua morte causou grande pesar no país.
Nasceste na cidade da Guarda e ingressaste na Escola Médica de Lisboa, onde te licenciaste, em 1902. Foste a única mulher do curso.
Ao longo da tua carreira, especializaste-te em ginecologista e foste a primeira médica a fazer cirurgias em Portugal.
O teu sonho do voto das mulheres, a curto prazo, morreu contigo.
A lei eleitoral de 1913 determina que “são eleitores de cargos legislativos os cidadãos portugueses do sexo masculino maiores de 21 anos”.
Esta lei já não tem equívocos. No entanto, as mulheres portuguesas terão de esperar até 1931 para poderem votar, mas com muitas com restrições: apenas as que tivessem cursos secundários ou superiores.
Só depois do 25 de abril de 1974 é que as portuguesas começaram a ter direito pleno de voto.
……..
* Filme de seis minutos sobre os republicanos revoltosos, em Lisboa, a 3 de outubro de 1910, dois dias antes da implantação da República. (Créditos: British Pathé)
23/05/2022