A terra e o sonho através do tempo nas comunidades quilombolas
A vida dá-se por um sopro, desde os corpos quando dão o seu primeiro respiro até o vento que traz as chuvas para regar e nutrir a roça e permitir o alimento que irá à boca. A vida é movimento. Assim aprende Belonísia com o seu pai Zeca Chapéu Grande, quando nas andanças lhe ensina sobre as raízes, as ervas e o movimento do ciclo da vida.
“O vento não sopra, ele é a própria viração” e tudo aquilo fazia sentido. “Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não se movimenta, não tem vida”, ele tenta me ensinar. (Torto Arado, p. 99)
O conhecimento dos livros e o conhecimento da terra, da cultura perpassada pelo convívio e memória oral trançavam as vidas das duas irmãs. Assim se complementavam Bibiana e Belonísia. Ao apresentar questões tão profundas e tão presentes até os dias de hoje.
Escrito por Itamar Vieira Júnior, formado em Geografia, com doutoramento em Estudos Étnicos e Africanos, pela Universidade Federal da Bahia e analista do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, INCRA, Torto Arado é um livro que trata menos sobre o tempo cronológico. Ao passo que continuamente apresenta as outras faces do tempo, do espaço, das relações e das imposições. Como o tempo da terra, do movimento dos corpos, das transformações causadas pela idade de uma comunidade desprovida de suporte e de direitos. Assim como as questões continuamente presentes nas vidas de remanescentes quilombolas. O desejo de uma comunidade melhor, mais segura, mais próspera permanece aceso.
O tempo é movimento, é vida apresentado nas preocupações e aprendizados em uma comunidade quilombola. Onde a racionalidade ensinada pelos livros nas escolas, pelo cuidado dos médicos nos hospitais e pela vida da cidade é contrastada, ao mesmo tempo em que é complementada pela cura dos males que atribulam os espíritos e as almas. Por meio das ervas, das raízes e muitas vezes das festas religiosas.
Torto Arado apresenta a vida de uma comunidade quilombola na Chapada Diamantina, interior da Bahia. De acordo com a Constituição Federal de 1988, o termo quilombola destina-se às comunidades negras rurais com histórico de ancestralidade negra associada ao período escravocrata no Brasil. Segundo o artigo 2.o do Decreto 4.887/2003, a identificação dos remanescentes de quilombos dá-se por auto-atribuição e pelo pertencimento a um grupo étnico-racial, com trajetória, história própria e relações territoriais específicas. Além de possuir presunção de ancestralidade negra associada à resistência de opressão histórica sofrida.
Reconhecimento e titulação de comunidades quilombolas
Até agora, no Brasil, foram abertos 1.715 processos de reconhecimento e titulação de comunidades quilombolas realizadas pelo INCRA. Cuja concentração dá-se na região do Nordeste com 977 processos, seguido da região do Sudeste com 327 processos. Apesar de não ser o único órgão a atribuir a titulação de quilombo, o INCRA elabora um profundo trabalho de reconhecimento dessas comunidades para preservação de suas identidades, meios de subsistência e cultura. De acordo com a Fundação Palmares, existem 3.475 processos de comunidade povos de quilombo, com 2.819 certidões emitidas. Novamente, o Nordeste brasileiro apresenta o maior número de quilombos do país, seguido do Sudeste.
Dentre os diversos quilombos em casas de barro e palha, há, também os quilombos urbanos como a Pedra do Sal e Sacopã, ambos localizados no Rio de Janeiro. A comunidade da Pedra do Sal, encontra-se no bairro da Saúde, zona portuária da cidade, ao pé do Morro da Conceição e ao lado da Praça Mauá. Tomou este nome devido a desembarcação e a comercialização local do produto. Ao passo que também eram comercializados africanos escravizados nas cercanias, como no Cais do Valongo, durante os anos de 1811 a 1831. Hoje, o Cais do Valongo, é considerado património mundial da UNESCO e um espaço para conhecer mais sobre o passado escravocrata. E a Pedra do Sal consolidou-se como espaço turístico e o berço de músicas de samba e chorinho. Onde muitos músicos como Dona Ivone Lara puderam cantar nas rodas de samba.
Comunidades remanescentes quilombas
Em entrevista ao sinal Aberto, a analista em Reforma e Desenvolvimento pelo INCRA e doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional-UFRJ, Elisa Cunha, clarifica algumas questões relacionadas às comunidades remanescentes quilombolas no Brasil e a sua investigação dentro da área:
sinal Aberto – Como é feito o processo de reconhecimento de comunidades remanescentes quilombolas?
sA – Quais seriam as diferenças quando são comunidades quilombolas em espaço urbano?
EC – Isso ainda é um problema para nós… porque o processo foi pensado para atender comunidades rurais. É necessário fazer um levantamento fundiário de todos os ocupantes que serão indenizados. Então, quando se trata de uma área urbana, esse trabalho pode se tornar muito grande e demorado, pois estamos falando de imóveis. Mesmo em áreas rurais, eventualmente o território se sobrepõe a uma centena de imóveis que serão desapropriados, pequenas propriedades. Mas em áreas urbanas podemos ter mais de mil imóveis. No INCRA da Bahia temos um impasse desse tipo, com um quilombo urbano na Região Metropolitana de Salvador. Em algumas vilas e distritos, mas que incluem as fazendas ao redor, o INCRA pode reconhecer o território como um todo e definir uma área específica para fins de desapropriação. O título, nesse caso, seria emitido somente para essa área regularizada.
sA – Das comunidades que você conhece e já trabalhou, como são as casas, escolas e estruturas gerais?
EC – Na Bahia há uma diversidade muito grande de comunidades quilombolas, algumas pequenas, com 30 famílias, outras maiores, em torno de mil famílias. Nas maiores, geralmente há escola, posto de saúde. Mas as pequenas podem ser bem precárias, sem saneamento básico, sem água encanada, casas de taipa.
sA – Qual foi a sua inspiração para a sua pesquisa de doutoramento?
EC – Minha inspiração tem sido pensar sobre as linguagens em disputa para estabelecer um enquadramento do que é o real. Acredito que através dessas disputas que se dá o processo de reconhecimento, algo muito próximo do que pensou Axel Honneth, em Luta por Reconhecimento – a Gramática Moral dos Conflitos Sociais. Persigo as disputas nas falas das comunidades quilombolas, que disputam o acesso às políticas públicas com vizinhos, disputas essas que se sobrepõem aos movimentos sociais; que, por sua vez, precisam disputar seus próprios conhecimentos com os dos técnicos do INCRA; as disputas dos quilombolas com as perspectivas divergentes dos fazendeiros, advogados, gestores, procuradores e juízes… Mas o fato é que vai se consolidando na sociedade brasileira, mesmo com tantas oposições dos setores mais conservadores, pelo menos um certo campo em que os direitos e a existência das comunidades quilombolas está reconhecido, incluindo a sociedade civil e instituições do Estado.
Disputa por água potável
Dentre as muitas preocupações que ocupam o quotidiano das comunidades quilombolas, encontra-se também a disputa por água potável. Localizado ao norte do estado de Minas Gerais no município de Brasília de Minas, está a comunidade Borá. Em meio ao sertão brasileiro, a comunidade Negra Borá apresenta, hoje, cinco coletividades: Borá I, Borá II, Sumidouro, Cedro e Vereda da Onça. Em 2016, a comunidade de Borá deu entrada para o reconhecimento como remanescente quilombola. Ao longo dos anos, as famílias foram cada vez mais forçadas a fazerem suas moradas longe da parte mais fértil de terras, longe das águas. A pesquisadora Leila Ribeiro Rodrigues explica, em sua dissertação, que as águas tem se tornado cada vez mais escassas a dificultar a plantação de subsistência das famílias quilombolas.
O sinal Aberto entrou em contacto com uma família originalmente de Borá que compartilhou a sua história e parte da sua memória. António, 63 anos, nasceu no município de Itambé, Paraná, após os seus pais e irmãos terem migrado de Borá em busca de uma melhor qualidade de vida e oportunidade de trabalho. Acostumados a trabalhar em fazendas com plantio e gado, decidiram migrar para uma região farta em terras na esperança de conseguirem trabalhos melhores. António conta que seu pai trabalhava como roceiro, mas sentiu-se frustrado por não ser bem remunerado mesmo em outra cidade.
Tendo que lidar com a fome oriunda das dificuldades financeiras e frustrações pelas más condições de trabalho, a família de António decidiu retornar para Minas Gerais. Entretanto, a migração de retorno não trouxe os resultados esperados fazendo com que a família novamente fosse para o Paraná. António conta que seu pai trazia carne de caça para aplacar a fome, comiam tamanduá, veado entre outros que conseguia em suas entradas pelo mato. Mas o abandono do pai fez com que António largasse os estudos ainda muito cedo para auxiliar no sustento da família. Trabalhou em fazendas e roças como bóia-fria por muitos anos até ser empregado em uma indústria, agora em São Paulo.
Aposentado desde 2012, António hoje é pastor evangélico. Apesar de analfabeto, possui uma excelente memória que o permite recitar versículos bíblicos inteiros e assim conseguir exercer a função de pastor dentro da igreja. A força da memória oral mantém a cabeça de António fresca e afiada. Acredita que conseguiu realizar muitos sonhos, mas o principal deles ainda encontra-se como desejo:
“O sonho que eu tinha ainda de realizar não foi realizado. Que eu tinha um sonho de ter um pedacinho de terra, um sítiozinho, para voltar no sonho dos meus pais, da minha mãe. Vê criar um porquinho, uma galinha de novo e viver assim aposentado no interiorzinho. Então, esse sonho não foi realizado. Mas tenho uma casinha pra morar, tenho a minha sobrinha criada”.
Apesar de diabético, com doença de chagas e outras mazelas, António continua a actuar na igreja e a sonhar em realizar o sonho de seus pais. Já Dalila, 38 anos, sobrinha de seu António, nasceu e cresceu em Ferraz de Vasconcelos, um município localizado em São Paulo, estado que ainda reside. Formou-se em letras e pedagogia a trabalhar como professora de ensino fundamental I e II, ensino médio e universitário. Hoje é mestra em educação pela Universidade de São Paulo, universidade pública considerada uma das melhores no país. Para Dalila, as histórias da família constituem a memória e força que lhe permitem compreender melhor a si mesma.
Os ânimos e as ansiedades da comunidade
A história da família de António e Dalila em muito se assemelha à história de Bibiana e Belonísia em Torto Arado, por compartilharem questões tão presentes às comunidades quilombolas. Dalila pôde conhecer Borá já adulta acompanhada de seu tio em 2016, quando a comunidade estava em processo de reconhecimento como remanescente quilombola. Presenciou os ânimos e as ansiedades da comunidade que desejava tão fortemente receber o reconhecimento como remanescente quilombola. Lá pôde conhecer mais sobre a história da sua família e ser apresentada a familiares que ainda residem na comunidade.
“Em termos do que a minha família passa para mim, é uma questão com a terra, com a natureza e com os animais, e com a culinária também. Tem uma questão muito forte com o trabalho, com a terra, o cultivo e a plantação. Eles conhecem muitas coisas, tipos de feijão diferentes, vários tipos de frutas. Eu até aprendi a identificar alguns pés de frutas com a ajuda deles. Agora na pandemia, eu fiquei mais com a minha mãe, ela me ajudou a identificar pé de laranja, de limão e de mexerica. Para mim, eu olhava e eram todos a mesma coisa. Ela foi me ensinando que são diferentes”.
Dalila conta que muitas vezes precisava estimular os parentes a explicarem mais sobre as plantas para que pudesse aprender melhor sobre os detalhes que as distinguem. A realidade rural de sua família é muito diferente da sua realidade urbana.
“Muitas vezes eles não sabem explicar muito bem qual é a diferença e eu tenho que ir puxando. Tá, mais o que é? É o formato da folha? É o tamanho? Eu tenho que ir puxando deles para ficar mais palpável o que é essa diferença. Mas eles batem o olho e sabem, isso é pé de tal coisa. E também tem uma questão das ervas, de uso medicinal das ervas. Eles olham o que para mim seria mato, eles olham e falam “não isso daqui é mastruz”.
A princípio, o que para Dalila seria mato, para sua família pode ser algum tipo de erva medicinal. Dalila percebe que o pouco conhecimento passado pode perder-se facilmente. A vivência rural permite essa facilidade em conhecer a terra. Mas por viver em uma cidade mais urbana mantém-se distante, e percebe as visitas aos familiares como uma oportunidade de aprender mais sobre esse conhecimento.
Muitos da família de António e Dalila nasceram em Borá quando a região ainda era uma fazenda. Eles têm muito vivo a percepção da luta pela terra, por um espaço de morada e cultivo. As disputas dos fazendeiros pelas terras de maior irrigação de água, a trazer facilidades para o cultivo, fez com que a família de António e Dalila migrasse para o sul do país. O desejo de ter um pedaço de terra para plantar frutas, verduras e até mesmo criar porcos e galinhas continua presente na geração mais velha que vivenciou uma vida rural. É o sonho de ter uma terra própria, um lugar seu.
03/11/2021