A ucranização de Portugal

 A ucranização de Portugal

Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. (uc.pt)

Os recentes incidentes com a demissão do professor Vladimir Ivanovitch Pliassov do Centro de Estudos Russos da Faculdade de Letras de Coimbra, após 35 anos de serviço, explicam o clima de censura e a presença de forças inibidoras sobre todos aqueles que se insurgem perante uma campanha sem precedentes contra a Rússia e a cultura russa, contra o processo crescente de russofobia (que leva, de resto, muitos a radicalizar posições e a assumir uma extrema, e por vezes paradoxal, russofilia).

Depois de instalado um cenário que faz de cidadãos ucranianos, residentes em Portugal, mandatários judiciais – recorde-se a questão da Câmara de Setúbal –, passou a normalizar-se o estatuto de denunciante de forma despudorada, como não víamos depois da erosão do Estado Novo. Bastou que José Milhazes tecesse, como é seu hábito – o hábito de alguns idiotas –, um comentário leviano, assente num inconsistente artigo assinado por dois cidadãos ucranianos num pasquim ao jeito da Corneta do Diabo, para que um admirável professor de cultura e língua russas fosse sumariamente “executado”, num claro ajuste de contas, sem recurso a contraditório. Pode e deve ler-se a entrevista dada por si a Bruno Amaral de Carvalho (abrilabril.pt, 23 de Maio).

Vladimir Pliassov vive e trabalha em Portugal desde 1988. O antigo director do Centro de Estudos Russos da Universidade de Coimbra (UC) foi demitido, sumariamente, sem direito a contraditório, pelo reitor da UC, Amílcar Falcão, a 10 de Maio de 2023. (abrilabril.pt)

Longe de mim vir aqui pedir que rolem cabeças, como a do reitor da universidade em causa. Amílcar Falcão pode limpar as mãos à parede. A questão é muito mais vasta, como, aliás, o sugere Carmo Afonso, no jornal Público (edição de 24 de Maio).

Sobre este assunto, agora mais ou menos esquecido, escreveu-se um pouco, foi criada uma petição, e professores e estudantes da Universidade de Coimbra instaram a reitoria a averiguar o procedimento. Lembro que António Filipe (Expresso, 15 de Maio), Pedro Tadeu (Diário de Notícias, 17 de Maio), Alexandre Franco de Sá (Observador, 17 de Maio) e Carmo Afonso (Público, já a 24 de Maio) escreveram sobre o facto, de forma inequivocamente clara. Também Manuel Carvalho, director do jornal Público, um dia após a publicação do artigo de Carmo Afonso, surgiu a público como representante de um mundo “livre e democrático” e naturalmente dotado de razão, para apaziguar a intranquilidade das consciências. Mas vem tarde. O verniz estalou já há muito – eu diria, desde o início. E as lágrimas de crocodilo pelo professor russo de Coimbra não passam de encenação. À Ucrânia perdoa-se tudo, e ao que está por detrás dela muito mais.

(Créditos fotográficos: Nikolay Vorobyev – Unsplash)

Carmo Afonso, apoiado num estudo do jornal The Guardian, revela como Portugal é “o terceiro país do mundo com maior aversão à Rússia, só ultrapassado pela Ucrânia e Polónia”. Das duas, uma: ou fomos invadidos pelos russos numa qualquer operação militar secreta ou os norte-americanos conseguiram lavar-nos o pouco cérebro que temos. Desde quando?

A ideia de que temos um Estado e órgãos de comunicação decentes leva-nos ao engano de pensarmos que a guerra da Ucrânia se resume a um ajuste de contas do autocrata do Kremlin. Não é. Já o disse várias vezes, em artigos anteriores. Nem os nacionalistas mais messiânicos aconselhariam o seu povo à aventura do suicídio colectivo, como foi ordenada por um actor-presidente e planeada pelos falcões democratas de Washington. O erro da Rússia – que lhe sairá caro em vidas e, sobretudo, em ódio milenar e acéfalo como o português –, foi bem aproveitado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte e será exaustivamente propagado nos aparelhos ideológicos que são as televisões. Vendo bem, o preço de ter inimigos é não dar um passo em falso.

Refugiados do Iraque. (Créditos fotográficos: Facebook / Amigos do Iraque – acidigital.com)

Já tínhamos esquecido o Afeganistão, os massacres do Iraque e a Jugoslávia – alguém recorda as ondas de solidariedade por essas vítimas e se declarou, na ocasião, anti-Estados Unidos da América? –, mas agora a amnésia será total. À Ucrânia, que tem erodido a sua História nos manuais escolares (ao que parece a Rússia começou a fazê-lo também), é permitido intervir na ordem pública dos países europeus (a masturbação pública com a complacência em festivais da Eurovisão, na organização de campeonatos de futebol e nas patéticas acções de denúncia em Cannes roça o grotesco), reforçados por uma horda de delatores, bufaria da mais grosseira, insidiosa campanha anti-Rússia e, no nosso território, por um clima que ultrapassa, em muito, os limites da persuasão.

(Créditos fotográficos: Sefa Karacan/AA/picture alliance – dw.com)

O “judeu de raízes ucranianas” que enviou aos professores do Conservatório de Música de Coimbra informação sobre a presença de Manuel Rocha (director do Conservatório e músico) nas comemorações do Dia da Vitória sobre o nazi-fascismo acaba por fazer um favor à nossa democracia: evidenciar como ela está recheadinha de fascistas. Lá virá o tempo em que se ensine que as bombas atómicas caídas sobre solo japonês eram, afinal, russas. O fenómeno de ucranização do país decorre, perceba-se, de um outro mais antigo e subtil, e que se expressa em tudo o que é t-shirt de adolescente: americanização da realidade. Isto, para não falar do Grupo Bilderberg, esse consórcio de influência mundial (reunido, há dias em Lisboa) que controla os media ocidentais e a que alguns chamam Câmara Corporativa do Império anglo-saxónico, de que fazem parte políticos, empresários e detentores dos maiores grupos de comunicação social, como é o caso de Pinto Balsemão, em Portugal. O resto é fácil de adivinhar. Chamemos-lhe “1984”.

É tão simples quanto isso.

.

………………………….

Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

.

01/06/2023

Siga-nos:
fb-share-icon

António Jacinto Pascoal

António Jacinto Pascoal (nasceu no ano de 1967, em Coimbra) é mestre em Literaturas e Culturas Africanas de Língua Portuguesa, especializando-se nas obras poéticas de Nicolás Guillén e José Craveirinha. Estreou-se, em 1991, com «Pátria ou Amor» (Prémio da Associação Académica de Coimbra, prefaciado por Agustina Bessa-Luís). Ensaísta, poeta e contista, surge editado em variadíssimas antologias poéticas, é prefaciador de antologias e autores diversos, e traduziu a obra poética da chilena Violeta Parra. Publicou «Os Dias Reunidos» (1998), «A Contratempo» (2000), «Terceiro Livro» (2003), «No Meio do Mundo» (2005), «As Palavras da Tribo» (2005), «Cello Concerto» (2006), «Pátria ou Amor» (2011) e «As Sete Últimas Palavras» (2017), bem como «Mover-se o Fogo» (2018). Poemas seus estão traduzidos em Inglês e em Finlandês. Em 2018, editou o álbum fotográfico «Banda Euterpe de Portalegre – A Visão do Som». O conto «Os Joelhos do meu Pai» foi primeiramente editado na antologia «Contos da Língua Toda» (em 2018).

Outros artigos

Share
Instagram