A violência criou o Brasil como um país em que a lei fica no papel

 A violência criou o Brasil como um país em que a lei fica no papel

Créditos fotográficos: Raphael Nogueira (Unsplash)

O Brasil é cenário de morte ao ritmo de guerra não declarada na cidade, no sertão e na floresta. As raízes da violência endémica, expressas em homicídios e em violência sexual, remontam ao passado colonial e não foram corrigidas, mas a sociedade civil está cada vez mais alerta. São verificações do colunista João Ruela Ribeiro, a 26 de agosto, no Público.

O anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revela que, nos últimos cinco anos, foram assassinadas mais de 280 mil pessoas, mais de um por cento da população (a baixa percentagem não tranquiliza), correspondendo a seis homicídios por hora, em média. Em mais de uma década de guerra na Síria, morreram 160 mil civis, o que indicia maior probabilidade de ser vítima de violência letal no Brasil do que em país de conflito armado.

Créditos fotográficos: Sidcley (Pixabay)

Poucos países em paz são comparáveis com o Brasil em violência. Em 2021, dois em 10 homicídios no planeta vitimaram brasileiros, mas o panorama da violência não se fica nos homicídios de rua. O mesmo ano regista uma violação sexual em cada 10 minutos e mais de 1300 feminicídios (uma mulher morta por violência doméstica a cada sete horas). E a taxa de homicídios de pessoas LGBTQ (sigla que significa lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e pessoas que se identificam como queer ou em questionamento da sua orientação sexual ou identidade de género) é das mais elevadas no Mundo: 316 casos documentados em 2021. Também a polícia brasileira é das que mais matam e morrem, em serviço ou suicídio (no ano passado, 101 agentes tiraram a própria vida – subida de 55%, em comparação com 2020). Nos últimos quatro anos, o número de assassínios atribuídos a polícias superou sempre a marca de seis mil vítimas, quando os Estados Unidos (EUA) têm a média de cerca de mil homicídios por ano.

Poucos países em paz são comparáveis com o Brasil em violência. Em 2021, dois em 10 homicídios no planeta vitimaram brasileiros, mas o panorama da violência não se fica nos homicídios de rua

O regime colonial, vocacionado para a extração de recursos naturais e associado, depois, ao movimento maciço de escravos entre África e Brasil, marcou o desenvolvimento do país, deixando um rasto de violência que a independência foi incapaz de apagar. Hoje, 200 anos após a declaração da independência, como aponta Guilherme de Almeida, investigador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), vive-se a “aceitação do fenómeno da violência”, não sendo preciso ser vítima para o comprovar. Um estudo recente mostra que 62% da população diz detetar algum tipo de ação criminosa perto dos locais onde vive e só 9% afirma não encontrar presença de crime no seu quotidiano.

Socióloga Jacqueline Sinhoretto (www.ds.ufscar.br)

A convivência diária com atividades criminosas, não raro violentas, como diz Jacqueline Sinhoretto, professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, indicia uma sociedade forjada pela violência em muitas modalidades: umas (históricas) remontam ao processo da colonização e outras (próprias) da contemporaneidade.

O sociólogo Gilberto Freyre, autor de Casa-Grande & Senzala (de 1933), descreve a violência entre senhores e escravos, a começar nas brincadeiras entre crianças, em que os filhos dos senhores de engenho faziam dos moleques serviçais para tudo: bois de carro, cavalos de montaria, bestas de almanjarras, burros de leiteiras e das cargas mais pesadas. Os especialistas veem relação direta entre as práticas coloniais associadas à escravatura, assim como o massacre dos indígenas, e a violência contemporânea. Com efeito, apesar da abolição da escravatura, em 1888, através da Lei Áurea (ou Lei n.º 3.353, que foi sancionada pela princesa Isabel, filha de Dom Pedro II), e do reconhecimento dos direitos dos indígenas às suas terras originárias pela Constituição de 1988, Sinhoretto sustenta que há muito por fazer.

Sociólogo Gilberto Freyre (www.todamateria.com.br)

Em altura propícia para análises históricas, urge o debate sobre a responsabilidade histórica das nações coloniais para com os descendentes dos povos martirizados na expansão. Efetivamente, o processo de reparação, iniciado após a Constituição de 1988, trouxe algumas políticas – como a ação afirmativa, a reserva de vagas nas universidades e nos concursos públicos para membros das minorias – mas não condiz com a capacidade do Estado de reverter um processo secular. Seria, pois, oportuno que se iniciasse um debate que incluísse Portugal e outras nações com passado colonial, já que “a riqueza e o benefício político da exploração das pessoas negras e indígenas no Brasil transcendem muito aquilo que o Estado brasileiro consegue reparar”.

Cinco séculos após a chegada dos colonizadores e o início do massacre dos povos indígenas, estes continuam alvo privilegiado no conflito pela posse das terras. E a reserva constitucional da propriedade das terras ancestrais para os povos originários não travou a violência. As terras são, crescentemente, cobiçadas por produtores agrícolas, pescadores, mineiros, madeireiros e, agora, até pelo narcotráfico. Segundo os dados do Conselho Indigenista Missionário (CIM), em 2020, foram assassinados 182 indígenas, uma subida de 63% face ao ano anterior.

Cinco séculos após a chegada dos colonizadores e o início do massacre dos povos indígenas, estes continuam alvo privilegiado no conflito pela posse das terras

Entre as vítimas mais frequentes de homicídios estão os negros (77,9%). E também os alvos da violência policial são, sobretudo, os jovens negros, que perfazem mais de 80%. Por isso, há quem fale de “genocídio” étnico. É difícil contrariar estas tendências através de políticas públicas. Não há critérios claros para a aplicação legal da força e há forte apoio social aos métodos de repressão, a ponto de a investigação e os setores responsáveis por ela tratarem o assunto como banal.

(nacoespretas.wordpress.com)

Talvez como nunca, terá essa faceta ficado exposta no mandato de Bolsonaro, que fez do gesto da arma o símbolo da sua campanha. A perseguição a qualquer tipo de criminalidade ou de suspeita de atos ilícitos é promovida pelos mais altos órgãos estatais e foram aprovados sucessivos pacotes legislativos que flexibilizaram a compra e a posse de armas de fogo. Porém, a repressão como regra de atuação do Estado é tradição tão antiga como o Brasil. Assim, Bolsonaro não será a causa da violência, mas a consequência da tolerância em relação a ela.

(© Jornalismo Júnior)

Sinhoretto chama a atenção para “as formas como se fundaram as instituições de controlo social no Brasil”, evocando a transferência da Coroa portuguesa para o território, em 1808, e a criação das forças de segurança regulares. A Coroa instituiu a Guarda Real e as primeiras formas de policiamento para a proteção dos interesses da Coroa e do Estado, que se transferiu para um território em detrimento dos direitos dos Brasileiros. Assim, a forma de criação das instituições, no quadro da colonização, deixou marcas profundas: patrimonialismo e defesa do Estado acima dos direitos. Porém, escravos e indígenas não são meros espectadores. Há inúmeros episódios de rebeliões violentas contra a exploração dos colonizadores. Habituados ao território em que nasceram, formavam, no dizer da antropóloga Nádia Farage, muralhas dos sertões, rebelando-se, fugindo, realizando emboscadas e assassinando. E a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, no livro Sobre o Autoritarismo Brasileiro (2020), conclui que nada há de idílico no (des)encontro de indígenas e colonos, contrariando a narrativa histórica europeia.

(Direitos reservados)

A modalidade de violência que melhor mostra o cruzamento de práticas opressivas com o quotidiano da população é a das milícias, grupos de mistura entre ex-polícias e agentes no ativo, que, tendo neutralizado as redes de tráfico de droga em bairro, o controlam. Gerem o fornecimento das lojas e serviços básicos (eletricidade, Internet, canais de televisão) e cobram “impostos” para garantia da segurança. A presença das milícias é mais extensiva nos bairros periféricos do Rio de Janeiro, embora se encontre noutras cidades do Nordeste. Entram nas comunidades com a visão positiva de afastar o tráfico de drogas, que exercia domínio violento, mas expulsam os traficantes e adotam as mesmas práticas. E não há instituições a que recorrer.

O ordenamento legal é considerado avançado pelos especialistas. Há experiências vistas como bom exemplo no desenho de políticas públicas, como é a Lei Maria Penha, de 2006, pacote legislativo que regula as penas relativas à violência doméstica e cuja discussão e elaboração envolveu a participação dos movimentos feministas. A lei adotou o nome de Maria da Penha, vítima de violência doméstica em mais de 20 anos, cujo caso concitou atenções nacionais e internacionais. Porém, a legislação não impede que o Brasil continue com elevada taxa de homicídios de mulheres pelos companheiros.

Nunca houve um momento em que os direitos individuais e civis realmente existissem para toda a população, sendo a legislação encarada como objeto de marketing, e não como “instrumento de mudança social efetiva”

Repete-se o padrão: à violência contrapõe-se a sociedade civil vibrante e atuante. Há uma luta grande contra a violência sobre a mulher e a favor da construção da fronteira do corpo da mulher e da proteção dos direitos civis, mas os jornais expõem, diariamente, feminicídios, violações, até de crianças, e as autoridades a dificultar o aborto legal.

Créditos fotográficos: Agência Brasil (observatorio3setor.org.br)

Os especialistas denunciam o desencontro entre as leis e a prática quotidiana, como é concretizada dos escalões mais altos ao cidadão comum. Nunca houve um momento em que os direitos individuais e civis realmente existissem para toda a população, sendo a legislação encarada como objeto de marketing, e não como “instrumento de mudança social efetiva” (não é único nisto). Esta situação indicia um percurso histórico cheio de oportunidades perdidas. A Declaração da Independência (1822), a abolição da escravatura (1888), a proclamação da República (1889), bem como o fim da ditadura militar e a Constituição de 1988 são pontos de viragem, mas falharam nas condições da sociedade sem excluídos e na divisão dos poderes.

A abolição da escravatura é paradigmática. O processo foi dirigido pela elite exploradora, que deu a liberdade nominal aos antigos escravizados, mas deixou por atribuir todos os outros direitos. E a cidadania negra não fez valer a sua ótica sobre a abolição. Foi a revolução a meio gás.

Não obstante as oportunidades perdidas, os especialistas acalentam a esperança na evolução das garantias na perspetiva do progresso relativo, pois não era expectável que se virasse a página em pouco anos e se destruísse a estrutura económica e política do Estado colonial e de exploração.

O Brasil, grande país, e os Brasileiros, belo povo, merecem esta esperança e devem ir à luta.

29/08/2022

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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