Agilizar a justiça, mormente a justiça administrativa e fiscal
O governo pretende criar o mecanismo de justiça “negociada” para processos de cidadãos com o Estado. Tal mecanismo incentivará a “extinção de processo por negócio processual” para casos judiciais que envolvam cidadãos e Estado, seja a Autoridade Tributária (AT), seja outra entidade pública (justiça administrativa e fiscal).
A ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, na abertura do ano judicial, lembrou que um dos compromissos do Governo é a otimização da eficiência dos tribunais administrativos e fiscais (TAF), “dando resposta aos legítimos anseios de cidadãos e empresas e reforçando a confiança nesta jurisdição”.
Segundo dados da Direção-Geral da Política de Justiça (DGPJ), em 2021, a duração média dos processos de natureza fiscal nos TAF de 1.ª instância tem vindo a crescer, nos últimos quatro anos, e aumentado 35%. Ou seja: em 2021, de acordo com os dados mais recentes disponibilizados, a média de duração desses processes era de quatro anos (aliás, 50 meses), enquanto, em 2018, era de três anos.
E a titular da pasta da Justiça explicou o Plano Estratégico para os Tribunais Administrativos e Fiscais, que se estrutura em torno de cinco objetivos essenciais: melhor gestão judiciária, dotando esta jurisdição de meios para reforço da capacidade de autogestão e organização; otimização do desempenho nos tribunais superiores – onde se verificam atualmente as maiores pendências; implementação da assessoria técnica para os juízes dos TAF; simplificação e agilização processual; e transformação digital e o óbvio e pedido reforço dos recursos humanos.
Assim, no início de 2023, o governo compromete-se a trabalhar para a aprovação do “primeiro pacote” legislativo da “Reforma da Justiça Administrativa”, que integra os seguintes diplomas:
- o que dota o Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CSTAF) dos meios necessários para uma gestão mais eficiente, mais célere e mais transparente da jurisdição administrativa e fiscal, promovendo o aumento da capacidade de resposta desta jurisdição;
- o que introduz alterações ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, onde se prevê, nomeadamente, a especialização na 2.ª instância e o regime da criação de equipas de juízes pelo CSTAF, especializadas e pontuais, ou de recuperação de pendências;
- o que cria um mecanismo de incentivo à extinção do processo por negócio processual: uma espécie de justiça negociada para estas ações; e
- o que cria uma forma de processo simplificada a aplicar, a título experimental, num tribunal piloto, para ações de valor inferior a cinco mil euros, de baixa complexidade, tendo como objetivos fundamentais, designadamente, que as respetivas decisões sejam proferidas em menos de nove meses e que sejam de fácil compreensão pelos cidadãos.
E o governo frisa que a transparência na arbitragem administrativa é um dos desígnios essenciais para o correto funcionamento da justiça sendo, além de imperativo constitucional, uma das formas de eliminar suspeitas de permeabilidade destes meios à secundarização do interesse público. Desta forma, será constituído, no primeiro trimestre, um grupo de trabalho, com a missão de reforçar as obrigações de publicidade, com especial enfoque na arbitragem ad hoc, o que postulará o reforço das prerrogativas do Ministério Público (MP), quanto ao acompanhamento destes processos.
Para a Associação Business Roundtable Portugal (BRP), a morosidade da justiça administrativa e fiscal é um “fator bloqueador do crescimento, da competitividade e do progresso do país”. Por isso, considera que a solução passa pelo Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD), um meio de resolução alternativa de litígios, extra aos tribunais comuns.
A BRP – que tem 42 fundadores associados – inclui nomes, como Vasco de Mello (presidente da José de Mello), António Rios de Amorim (Chief Executive Officer–CEO ou diretor-executivo da Corticeira Amorim), Cláudia Azevedo (CEO da SONAE), Sandra Maria Santos (CEO da BA Glass), Nuno Amado (presidente do Millenium BCP), Paulo Rosado (CEO da Outsystems) e Fernando da Cunha Guedes (presidente da SOGRAPE). É constituída por empresas e grupos empresariais com atividade económica relevante que, em conjunto, empregam mais de 380 mil pessoas, das quais mais de 200 mil em Portugal, gerando receitas no valor de 82 mil milhões de euros.
A BRP que lançou, a 2 de fevereiro, um relatório focado no tema, realçou a importância de maior envolvimento do CAAD na resolução de processos de litígios de natureza administrativa e fiscal.
Para Nuno Amado, líder do grupo de trabalho “Estado”, membro da direção da Associação BRP e presidente do Conselho de Administração do Millennium BCP, “a lentidão da justiça portuguesa é um dos aspetos que mais penaliza a competitividade do país. Os tempos de decisão dos nossos tribunais são muito longos, sobretudo na justiça administrativa e tributária, aquela que regula a relação entre o Estado e as empresas e particulares”.
Nuno Amado julga importante fomentar formas alternativas de resolução de litígios que aliviem a carga dos tribunais e assegurem uma justiça efetiva aos cidadãos e às empresas. “O alargamento do montante máximo admitido à arbitragem institucionalizada do CAAD de 10 milhões até 150 milhões de euros permitirá imprimir uma maior celeridade nas decisões, reduzir a incerteza para os agentes económicos e libertar recursos que geram valor”, explicita.
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Como refere o relatório do grupo de trabalho, os agentes económicos chegam a aguardar mais de seis anos por uma decisão de 1.ª instância num TAF. E os tempos de duração desses processos trazem elevados custos de contexto para as empresas, fomentam os níveis de incerteza e constituem uma barreira à atração de investimento.
O grupo de trabalho considera necessário mudar, pois o país necessita de uma justiça económica e fiscal “mais célere”, que “fomente a confiança dos cidadãos e das empresas no sistema” e que ajude a “aumentar a competitividade face aos seus pares”. Com efeito, “uma justiça lenta gera o aumento da imprevisibilidade e da incerteza, comporta custos financeiros e de litigância elevados para as empresas, causa o adiamento de decisões de investimento, impacta na criação de emprego, retira atratividade e competitividade ao país”, lê-se no documento. Por isso, a BRP propõe, como se disse, um aumento do valor máximo dos litígios fiscais que podem ser submetidos ao CAAD, passando de 10 milhões para 150 milhões de euros. Esta medida permitirá reduzir o volume de processos nos tribunais comuns; resolver litígios de forma mais rápida, já que a duração média dos processos no CAAD foi de quatro a cinco meses, em 2021; libertar recursos; diminuir a incerteza e a imprevisibilidade junto dos agentes económicos. E a medida é simples, sem custos de relevo associados, mas de efeito desbloqueador dos entraves da justiça, em prol da melhoria da competitividade, sem ser mais penalizadora para o Estado.
Apesar de reconhecer que, nos últimos anos, se fizeram esforços para minimizar o problema, o grupo de trabalho defende que a lentidão da justiça é mais preocupante, sobretudo nos TAF, “onde a duração média dos processos nos tribunais de 1.ª instância tem vindo a aumentar de ano para ano”. “E os tempos da justiça são mais extensos quando estão em causa processos de impugnação judicial, nos quais a duração média é de 6,25 anos (75 meses). Entre 2018 e 2021, a duração média destes casos aumentou 24%”, explicou.
Relativamente ao panorama europeu, Portugal é o quarto país onde os processos administrativos se prolongam por mais tempo nos tribunais de 1.ª instância. Em média, duram 847 dias. Já a média europeia fixa-se nos 358 dias. Segundo dados da Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça, só em três países é que os tempos da justiça são mais morosos: Malta, Chipre e Itália. Entre os países mais céleres está a Suécia, Hungria, Lituânia, Bulgária, Estónia e Polónia.
Por outro lado, dados do relatório “Global Competitiveness – 2019” do Fórum Económico Mundial colocam Portugal na 113.ª posição, no universo de 141 países.
Dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) revelam que o sistema judicial é apontado pelas empresas como o domínio com o indicador de custos de contexto mais elevado.
Analisando com detalhe as diversas componentes dos custos de contexto associados ao sistema judicial, ressalta o facto de as disputas fiscais serem as que representam os maiores obstáculos para as empresas. O maior entrave é a duração dos processos judiciais, apontado por mais de metade (51,7%) das quase cinco mil empresas inquiridas, que classificam a lentidão da justiça como obstáculo elevado ou muito elevado para a sua atividade. Entre os efeitos negativos da morosidade na vida das empresas, estão a falta de previsibilidade e aumento de incerteza, custos financeiros e contabilísticos elevados, forte carga administrativa e elevados custos de litigância, adiamento de investimentos e impacto na criação de emprego.
Por conseguinte, o grupo de trabalho defende o CAAD como instrumento essencial para acelerar a resolução de litígios e considera a dinamização da arbitragem tributária “fundamental” e “decisiva” para diminuir o número de pendências nos TAF.
“Em 2021, encontravam-se pendentes naqueles tribunais 1.438 processos de natureza fiscal, revelam os dados do CSTAF. No total, os processos com valor individual acima de um milhão de euros representavam um montante global de 10,9 mil milhões de euros – ainda assim, 7,3% menor, comparativamente ao ano anterior. Isto significa que existia, no final de 2021, um montante equivalente a 5% do PIB nacional “cativo” durante anos, a aguardar por uma decisão”, explicitou Nuno Amado, para quem 10,9 mil milhões de euros “paralisados” à espera de sentença significam para as empresas “menos disponibilidade de recursos para investir”. E a situação é também penalizadora para o Estado, pois estes montantes representam menos receitas disponíveis para a “máquina pública” poder desempenhar as suas funções. Portanto, a solução apresentada pela BRP passa pelo um aumento do limite máximo dos litígios de natureza fiscal a submeter ao CAAD.
A BRP sustenta que o aumento deve ser faseado, com os limites a aumentarem para 30 milhões no 1.º ano, 60 milhões no 2.º ano, 90 milhões no 3.º ano e 150 milhões de euros no 4.º ano.
É uma medida simples que pode ser decidida pelo ministro das Finanças, com a alteração da portaria em vigor. E a alteração permitirá alargar o número de processos submetidos à apreciação do CAAD, assegurando maior celeridade na respetiva tramitação. Com efeito, para o grupo de trabalho “Estado”, várias são as vantagens deste meio de resolução de litígios. Entre elas, a rapidez na resolução de conflitos, a transparência do processo e a qualidade e a independência das decisões.
Todavia, é pena que os tribunais, enquanto órgãos de soberania encarregados de administrar a justiça em nome do povo, sejam ultrapassados por uma associação de direito privado em celeridade, baixo custo e eficácia, deixando que nela os agentes económicos depositem maior confiança. De facto, o Estado de Direito democrático está aquém das suas obrigações.
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02/03/2023