Ainda arde
Na sequência dos fogos florestais que, novamente, atingiram grande parte do território português, incluindo uma considerável extensão do Parque Natural da Serra da Estrela, ainda julgo estar a tempo de expressar a minha solidariedade para com todas as vítimas dos incêndios. A tristeza que me toca, chama-se reincidência. Quando pára esse looping?
Disse uma vez Pepe Mujica (agricultor e político uruguaio, ex-presidente da República Oriental do Uruguai) que “o bicho humano é o único animal que tropeça 20 vezes na mesma pedra”. Assistimos, outra vez, a uma severa temporada de incêndios. No meu caso, assisti ao vivo, a cores e com muito fumo. Resido na Covilhã e, em qualquer canto, travessa ou viela desta cidade, era possível perceber o que estava acontecendo. A nuvem de fogo (ou pyrocumulos) tornou a bucólica paisagem da serra da Estrela em dantesca.
Grandes áreas do território português são queimadas, anualmente, por incêndios florestais. A degradação da paisagem é contínua e progressiva. Ao apagar das chamas, apontam-se culpados, os media publicitam os factos, orientam-se meios de combate mais eficientes, mas raramente os esforços são direcionados para as consequências. Normalmente, as áreas ardidas não são objeto de reabilitação ou de recuperação, ficam abandonadas à sua sorte e autorregeneram-se de forma descontrolada. As consequências não esvanecem no ar com o abrandar dos fumos, perduram além da extinção dos incêndios.
Estamos a encarar a situação de maneira reativa. Para pôr travão à reincidência, primeiramente torna-se fulcral “perceber que se o fogo é um processo ecológico, os incêndios são uma construção social, pois têm origem na interdependência entre os sistemas humanos e naturais”, como afirmam os especialistas Fantina Tedim e Vittorio Leone (no artigo “Evitar os incêndios rurais em Portugal: a necessidade de uma visão holística do problema”, no âmbito do XI Congresso da Geografia Portuguesa, que decorreu entre 9 e 11 de Novembro de 2017, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto). A ocorrência, a frequência, a intensidade, a severidade e outras características dos incêndios estão relacionadas com as ações e influências da humanidade sobre o ambiente. A intervenção antrópica provoca constantes mudanças das características originais do meio ambiente, refletindo no comportamento dos incêndios, tornando os incêndios mais robustos e mais difíceis de serem debelados.
Traduzindo em bom Português, certamente escutou: “Foi fogo posto, é preciso pegar esse piromaníaco!” Dados estatísticos da Autoridade Florestal Nacional sugerem que entre 20% e 30% dos incêndios são propositais, os chamados fogos postos. Os incêndios intencionais, por fogo posto, podem não representar um grande número, mas não significa que, na sua maioria, os incêndios não sejam oriundos das atividades humanas.
Aproximadamente, 90% das ignições dos incêndios em Portugal decorre das intervenções do homem: estradas, motores, geradores, linhas e postes de transmissão elétrica de alta tensão, beatas de cigarro, resíduos metálicos e vidros, entre outras causas de ignição. É, justamente, a intervenção antrópica que faz soar os alarmes de catástrofes. A ação humana negligenciada com o ambiente pode criar condições para deflagrar incêndios e potenciar consequências caóticas. A realidade atual é composta por uma paisagem marcada por interações urbano-florestais, com o campo próximo da cidade ou vice-versa, acentuando as proporções dos incêndios.
A repetição da expressão “fogo posto” empregada nas ruas, na Assembleia da República, no Palácio de Belém (residência oficial do Presidente da República) e no Palacete de São Bento (residência oficial do primeiro-ministro) é um estratagema. É sabido e notório o esvaziamento e o abandono do interior do país, o desordenamento do território, a substituição da flora autóctone em detrimento do eucalipto e de outras espécies invasoras, bem como a falta de educação e de uma adequada gestão florestal/ambiental, a par dos gases relacionados com o efeito de estufa e com o aquecimento global, etc. (fique à vontade para aumentar essa lista).
Temos de encontrar alternativas para a visão conformista de “é o que é”. O fogo que arde, neste caso, não é o do conhecimento. A alegoria mitológica diz-nos que Prometeu é responsabilizado por ter roubado o fogo de Héstia (virgem grega do lar, da lareira e da vida doméstica) e de o ter oferecido aos mortais (humanos). No entanto, parece-me que, assim como o titã, estamos condenados a um ciclo de dor e de sofrimento.
27/10/2022